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domingo, 14 de maio de 2017

Pensamentos Perdidos: O Circo - um conto de Ana Isabel Rocha Macedo

O CIRCO
(Parte 7 de 7)

ANA ISABEL ROCHA MACEDO

ÚLTIMA NOTA: O blog “menna em palavras” orgulhosamente apresentou o CIRCO de Ana Isabel Rocha Macedo, que brindou o blog e seus leitores com um conto inédito que foi publicado em sete partes!  Já estou com saudades da pipoca, maçã do amor, as raspadinhas, o suco… saudades de todos que encontro no CIRCO.
Tal qual como quando criança, eu adorava os dias do CIRCO… porque eram dias de dividir amizades… 
… mas esperem… vocês também ouviram falar…? Parece que tem um TEATRO na cidade… e está fazendo testes para atores… depois do CIRCO, vamos descobrir…??
(Nota do “editor” Luís Augusto Menna Barreto)

VII

Foi então, que em uma tarde, quando quase todos do circo dormiam o sono da sesta, o trapézio me tentou mais forte, e eu fui até ele. Olhei-o, olhei-o... Lembrei-me dos tempos em que eu o dominava... Lembrei-me do amor antigo... de mim quase menina... do meu primeiro adeus... E senti saudades. 
Subi passo a passo, tentando a leveza de outros tempos. Fiquei lá em cima! Olhei para baixo, e o que havia embaixo nada me atraiu. Só o espaço em minha frente me chamava. Passei as mãos pelo sustentador e... O espaço... Minhas mãos apertando o sustentador... O espaço me chamando... Meu corpo se soltando... O espaço... O espaço... O espaço... Eu no ar... Um balanço...Mais outro... Ainda outro... A cambalhota... Agora. Não, não deu. Agoooora!!!!
AAAAAAiiiiiiiiiii!!!!!!!!
E o grito continuou soando em meu ouvido, mesmo quando meu corpo já estava no chão.
E as pessoas, muitas pessoas, muitos gritos:
- Socoooorro!! Ela caiu!
- Que horror!! Sem proteção!
- Depressa! Chamem a ambulância! 
- Depressa! Depressa! Depressa! Depressa! Depressa!!!!!
No meio de tantos rostos, o rosto do palhaço mais novo. Vi quando ele arrancou o chapéu de três bicos. Aí eu vi. Tentei falar. Não pude. Eu vi os olhos. Reconheci os olhos. E eles foram inundados. Ele tirou o nariz de bola, pegou a camisa, que molhada com as próprias lágrimas, esfregava no rosto para tirar a tinta. Era ele! E foi ele que baixou a cabeça e me beijou. 
Depois disso, uma força que veio do mais profundo de mim fez-me dizer:
- Meu..  domador...
E aquilo me bastou. Fechei os olhos.
Morri.

                         Barra Grande – BA
                           Novembro - 2016








sábado, 6 de maio de 2017

poesia de ver - "... milagres!"

Poesia de ver: “… milagres!”



Eu sei que há um pedestal…
… mas meus olhinhos de criança, viam sempre o santinho flutuando.
E aprendi a acreditar em milagres…!

Imagem e texto por Luís Augusto Menna Barreto


(A imagem é de Santo Antônio da Patrulha, Rio Grande do Sul, Bairro da Cidade Alta)

quarta-feira, 3 de maio de 2017

crônica - Eu, o Pilha e a Velha

Eu, o Pilha e a Velha

Agora tudo finalmente parece que faz sentido…
Lembra aquela vez que contei que eu e o Pilha atravessamos a cidade e fomos até um circo? Deu muita confusão naquele dia, porque o Palhaço pegou o Pilha passando moleques por baixo da lona. Daí, ele levou o Pilha e fiquei apavorado, mas, depois, deu tudo tão certo, que o Pilha fez eu voar, e ele se vestiu de palhaço. Foi a vez que eu vi o Pilha mais feliz desde que eu conheço ele.
E eu voei! E quando caí lá do alto, Deus me segurou. Tá, eu sei que foi a rede de proteção do trapézio, mas é que foi tão gostoso, que parecia Deus! E o Pilha resolveu tudo naquele dia. E eu até sabia que ia levar uma surra da mãe, porque não tinha ficado na sinaleira e todo o dinheiro que a gente conseguiu com os moleques e com o isopor de refrigerante, o Pilha pagou o Palhaço. Na hora, o Palhaço reclamou que faltou dez pilas… mas deixou assim. Daí, quando eu cheguei em casa e achei que ia apanhar da mãe por não levar dinheiro, o Pilha tirou dez pilas escondidos na cueca e me falou: “Toma, não vai apanhar no dia que tu voou”. 
Mas não era disso que eu tava falando quando disse que agora tudo faz sentido.
Antes da gente sair do circo, tinha uma senhora terminando de vender churrasquinho. Aqueles que a gente chama de “churrasquinho de gato”. O cheiro tava muito bom e tinha bem poucos espetinhos. E a gente tava na maior fome! 
“Tia, quanto tá o espetinho?” O Pilha que perguntou. Eu fiquei sem entender, porque sabia eu tinha visto ele dar todo o dinheiro pro palhaço. 
“Dois real”.
“Tia, eu cobro dois real por uma piada. Vou fazer um negocio com a senhora: conto duas piadas, a senhora paga só uma, e eu deixo a senhora nem precisa me dar dinheiro. Eu aceito um espetinho”. 
Eu acho que a senhora caiu na conversa do Pilha, porque ela sorriu de um jeito esquisito e entregou um espetinho:
“Toma. Essa tua cara pintada de palhaço já vale o espetinho”. O Pilha ainda tava com a cara pintada. 
Daí ele quebrou o espeto e me deu a metade. Mas logo que a gente saiu do circo, tinha uma velha parada na esquina com a mão estendida, pedindo dinheiro.
O Pilha parou e perguntou se ela queria um pedaço. Eu fiquei meio brabo e coloquei logo dois pedaços do meu na boca, pra garantir. A gente ali, morto de fome, não tinha nem pra gente e o Pilha oferecendo pra velha?!
“É de quê esse churrasco, moleque?”
“De carne!”
“Só gosto de frango. Vaza daqui, moleque.” 
Que velha mais metida! Toda fedorenta e rasgada, e ainda tava querendo escolher? Quando eu tô trabalhando na sinaleira, não fico escolhendo nada. Tudo o que me dão, eu aceito! Agora, olha essa velha, querendo escolher. Não tem onde cair morta e tá de frescura? Eu hein?!
Já ia zoar dela com o Pilha quando ele falou:
“Peraí”. E se mandou correndo de volta pro circo. 
Não faço idéia do quê o Pilha fez, mas não demorou e ele voltou com um outro espeto de frango.
“Esse é de frango!” Ele disse todo faceiro com a cara pintada de palhaço. Fiquei passado. Pra nós ele tinha conseguido só um pra dividir, e agora, iria dar um inteiro pra velha?
“Vaza daqui, moleque, que não quero a comida de vocês. Vocês não tem onde cair morto. Vaza, vaza”
Eu fiquei com raiva da velha, mas passou logo, porque como ela não quis o espeto, o Pilha dividiu comigo. E ele nem comeu toda a parte dele, e ainda me deu um pedaço dele que sobrou. Velha desaforada! Mas rendeu um espetinho a mais.
Depois fomos embora e ele me livrou da surra da mãe dando os dez pilas da cueca. Isso eu já contei, né?
Mas é que depois, o Pilha passou umas duas tardes sem ir no parquinho comigo. Quando a gente ganhava um troco bom, ele saia correndo, dizia “já volto” e só aparecia no outro dia. Eu perguntava onde ele tava indo e ele só dizia “olhar um troço”.
Fiquei com medo dele ter arranjado outro amigo menos burro que eu. Porque eu sei que atrapalho muito ele.
Daí, que teve um dia que eu arrumei coragem não sei de onde e resolvi ir atrás do Pilha. 
Eu fui bem escondido e bem de longe, pra ele não ver. Logo logo, vi que ele tava indo lá pros lados de onde tava o circo. Achei que ele tava querendo ganhar uns trocados sozinho. Mas ele parou antes do circo. Ele ficou parado na esquina, meio escondido, olhando umas lojas daquelas que vendem roupas em balaio, na frente. Eu fiquei bem longe em outra esquina, mas, de repente, o Pilha se virou e gritou pra mim: 
“Vem logo, mané! Ou vai ficar olhando pra minha bunda?”
Não sei como o Pilha é tão sabido! Eu tinha me escondido direitinho e ele não se virou nenhuma vez!
"Preciso duma camisa!”
“Mas tu tem camisa, Pilha!”
“Preciso de uma nova!"
“Tu vai roubar, Pilha?” E eu fiquei mesmo assustado! A gente sempre aprontava, eu sei… mas aquilo era tão diferente…
“Que mané roubar nada! Vou pegar emprestada.”
“Mas tu tem camisa, Pilha”
“Preciso de uma bonita, nova!”
“Mas desde sempre a gente usa roupa velha e gosta!”
“Hoje não é sempre! Tem vez que a gente precisa de roupa nova pra ser gente!”
O Pilha tava sério. E pela primeira vez, eu fiquei com medo da gente estar deixando de ser criança… fiquei com muito medo. Se o Pilha pegasse mesmo a camisa, acho que ele não ia só roubar uma roupa… acho que ia roubar nossa criancice… Mas mesmo assim, eu não podia deixar o Pilha na mão. Ele é meu melhor amigo!
“O que a gente vai fazer, Pilha?”
A gente não vai fazer nada. Eu que vou. Tu fica aqui olhando. Se me pegarem, tu corre e conta pro mano, que ele tenta falar com a mãe dele tem que tem prego de carteira assinada que ela faz alguma coisa.” 
“Mas…”
E o Pilha saiu correndo como uma flecha, passou pelo balaio das camisas, enfiou a mão dentro e pegou uma. Uma vendedora chegou a pegar ele pelo braço, mas acho que ele tava tão rápido, que ele conseguiu soltar, e se mandou.
Meu coração parecia que ia sair pela boca… correram umas cinco vendedoras pra ver a moça que quase pegou o Pilha e dois caras saíram correndo atras dele. Mas logo voltaram sem nada. O Pilha tinha escapado. Eu tava numa mistura de susto e acho que um pouco de tristeza… O Pilha sempre resolvia tudo, nunca a gente precisou roubar. 
Eu não sabia o que fazer, nem pra onde ir. De repente ouvi uma vendedora dizendo: “olha aqui!” e apontou para o balaio de onde o Pilha pegou a camisa. Fiquei curioso. “O moleque pagou”. Eu não entendi direito, mas logo ela pegou o que pareceu umas notas de dinheiro. 
Nossa! fiquei tão feliz. E logo levei um susto que quase fiz xixi! Senti uma mão em meu ombro! Era o Pilha! 
“Por que tu fez isso, Pilha? Se tu tinha o dinheiro pra comprar, pra que tu não comprou que nem gente?”
“Tu acha que eu não tentei, mané? Mas tenta chegar lá perto, mesmo com dinheiro pra tu ver?! Os segurança já vem te correndo dali, nem querem saber se tu tem dinheiro. Acham logo que a gente é ladrão!”
“E pra que tu quer a camisa?”
“Já te falei: pra ser gente! Bora. E para de fazer pergunta. Tu fala muito, mané!”
No outro dia, o Pilha de novo não foi trabalhar na sinaleira. Mas quando chegou mais ou menos na hora que a gente sempre ia pro parquinho, ele apareceu. Tava estranho. Limpinho. Cabelo penteado e com um chinelo de dedos novinho no pé. E tava com a camisa nova. Linda a camisa. Quando cheguei perto tava com cheirinho bom, de coisa nova. Acho que cheiro de roupa nova é o melhor cheiro do mundo! Fico imaginando como deve ser bom fazer que nem rico que compra roupa nova todo ano! Porque rico compra roupa todo ano, né?!
“Vai casar, Pilha?”
“Que mané casar! Bora.”
Tava muito diferente. E tava engraçado, porque o Pilha nem parecia moleque de rua. Pelo menos não parecia até olhar pra unhas dele, que ainda estavam todas sujas.
Eu não sabia onde a gente tava indo, mas era pro lado do circo. Será que o Pilha tinha arrumado emprego no circo? Mas pra quê, se a gente já tinha nosso trabalho na sinaleira? 
Quando a gente dobrou numa rua, vi de longe aquela velha folgada que fica pedindo. O Pilha parou.
“Tu fica aqui, mané, que tu tá muito feio!”.
Não entendi nada! Mas fiquei.
Daí, eu vi de longe o Pilha falando com a velha que, dessa vez, não gritou com ele. Ele falou um pouco e saiu ligeiro. Depois, voltou com um pacote de biscoitos. Recheados! O Pilha comprou biscoitos recheados pra velha fedorenta! Nem a gente come desses porque é muito caro! E eu vi que ele deu um abraço na velha. Que doido. Aquela fedorenta ia tirar todo o cheiro bom da camisa do Pilha! Quase eu grito pra não abraçar ela.
Depois o Pilha veio, com a camisa meio amassada do abraço. E nem sei se tava ainda com o cheirinho bom.
“Endoideceu, Pilha? O que tu foi fazer? Pra que tudo isso com essa velha desaforada?”
“Tu não queria voar, mané?”
“O que isso tem a ver, Pilha?”
“Tu queria voar. Eu queria deixar de ser eu por um dia. Tu voou e eu fui palhaço! A velha queria que alguma gente fizesse algo por ela.”
“Mas a gente falou com ela. Tu até ofereceu churrasco pra ela!”
“Tu não entende nada, mané! Bora!”
Daí eu olhei pro Pilha, todo arrumado, com camisa nova. E olhei pra mim. Acho que eu entendi.


Por Luís Augusto Menna Barreto