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terça-feira, 31 de dezembro de 2019

bora cronicar - Entre a Cruz e a Espada

Entre a Cruz e a Espada


Que eu não gosto de academia, todo mundo sabe! Já contei em crônicas anteriores minha saga quando meu paletó emagreceu e resolveu que não entraria mais em mim!
Então, ocorreu que há alguns dias de uma formatura em direito em que eu teria de usar um paletó, a Ana foi ao shopping ver os preços dos paletós, e voltou com o caso resolvido: eu teria de emagrecer! Seria muito mais barato! E a coincidência disso tudo, era que a formanda que nos havia convidado, era a Camila, personal que me acompanha nos treinos! Seriam duas semanas para diminuir alguns números no manequim!
O resultado, também já contei aqui: deu certo! Mas a que custo… foram muitos “dias de Camila”, que me fizeram gostar das segundas-feiras, porque nas segundas, “não tem Camila”!
Passado o apuro de fazer o paletó engordar para eu entrar nele, continuei a rotina de exercícios com a Camila, porque tenho hérnia de disco e, se paro com exercícios e alongamentos, começa a doer muito. Os exercícios não tem o ritmo frenético de quando eu tinha que entrar no paletó, mas “dia de Camila” é sempre um pequeno sofrimento… e eu sofro três vezes por semana: terças, quintas e sextas! Segunda não faço, porque segunda basta-se por si só! Quarta é dia de jogo do campeonato brasileiro na TV! Então, ficou assim: terças, quintas e sextas. Mas todos os “dias de Camila", sem exceção de nenhum, eu desço (faço o treino na academia do prédio onde moro) torcendo para chegar e a academia estar vazia. Não, não vazia porque não tenha ninguém treinando, não tenho nenhum problema de alguém ver minha preguiça… falo vazia de “Camila”. 
A Camila é uma ótima personal… mas tem um defeito grave, quase fatal para uma personal: ela não falta ao treino! Nunca. Nunquinhas! E pior: não se atrasa! Sabe aqueles efêmeros, mas absolutamente maravilhosos minutos de paz, em que experimentamos o paraíso, minutos que são a maçã do Édem, em que tu vês os aparelhos silenciosos, observas os pesos no suporte, ouves a música de ritmo marcado, e pensa: "é hoje, é hoje!”? Olhas para a tela do celular aguardando aquela notificação que começaria com “Luís, desculpa, mas aconteceu um imprevisto…” Sabes tudo isso? Pois é: com a Camila, não tem a menor chance de acontecer! Quando alguém me pergunta sobre a Camila, eu logo queimo o filme dela! Digo logo que ela é terrível: não, falta, não se atrasa, e não dá muita conversa; ela estuda os treinos, personaliza-os de acordo com nossa necessidade e não tem escapatória: tu só vais sair quando terminar todo o programa. Resumindo: um horror! 
Tu já passaste a experiência de ver novamente um filme que tu sabes como termina mas, assim mesmo, ficas torcendo para outro final? Pois é: eu sempre sei que a Camila vai estar lá! Moro no décimo andar e ainda assim, desço todos os dias pela escada, quando vou para academia, como que para prolongar a esperança de ela não estar… mas, então, mal abro a porta da escada para o Hal do piso da academia, e ouço: “oi Luíííííííís” (ela sempre estica uma vogal, cheia de entusiasmo ao cumprimentar)! 
Enfim, minhas esperanças morrem a centímetros da porta da academia! 
Porque estou contando tudo isso de novo? Por que ao encerrar o ano, a Camila teve uma surpresa: eu entrei entusiasmado na academia. Disse “oi, Camila” usando todos os fonemas, não apenas o meu usual resmungo:
— Oi Luíííííííííííís!
— Humpf…!
Foi assim:
— Oi Luíííííííííííís!
— Oi, Camila! 
Daí, foi assim: sobrancelhas pra cima, naquele inevitável movimento de surpresa; depois a cabeça meio de lado, como querendo entender, e a confusão mental.
Então… ela começou a unir alguns pontos:
Instantes antes de eu descer, ela recebeu um telefonema inusitado: a Ana, justamente a Ana, a pessoa que mais me empurra para a academia, havia ligado:
— Oi Camila.
— Tu já estás na academia?
— Oi Anaaaaaa. Já tô aqui!
— Tem como trocar o dia do Luís? Ele pode fazer amanhã?
— Amanhã não tenho como, porque ninguém desmarcou. Parece que pouca gente vai viajar nesse final de ano.
A Camila ficou intrigada e, obviamente, pensando que eu que havia pedido para a Ana ligar e desmarcar, porque quando preciso, peço sempre pra Ana fazer isso por mim! Então, quando eu desci e cumprimentei a Camila entusiasmado, ela não entendeu bem e ficou intrigada.
Eu notei a expressão intrigada, e expliquei:
— Sabe o que é, Camila…
(Dez minutos antes de eu descer pra academia):
— Essa prateleira tá toda bagunçada, né? — A Ana falou, referindo-se a uma das prateleiras da minha pequena biblioteca/escritório em casa.
— Hum… — (uma resposta prudente… algo que não se decifre. Tinha medo do rumo que aquilo podia tomar).
— E também o teu “cantinho de escrever" precisa arrumar, né? 
— (…). — Aqui, eu arrisquei um “é" quase mudo, algo entre um suspiro e uma concordância inaudível. Definitivamente, o rumo da conversa era perigoso… decidi que esperaria apenas mais uma afirmação!
E a afirmação veio:
— A gente pode aproveitar pra arrumar também…
Eu confesso que não ouvi o resto! Terminei de amarrar o tênis da academia correndo e, da porta, eu disse “tô indo”.
Foi nesse meio tempo que ela ligou pra Camila.
— Sabe o que é, Camila, a Ana começou a pensar em arrumar a casa…

Luís Augusto Menna Barreto

31.12.2019

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

O Açaí de 20, a Plaqueta e a Black Friday

O Açaí de 20, a Plaqueta e a Black Friday

Do Bléqui nunca se soube.
Ganhou o apelido naquela sexta-feira. E do apelido, não se pode dizer póstumo, porque o destino foi-lhe incerto.
Aquela loja, a primeira de uma grande rede, instalou-se em Marajó City ao findar de outubro. Foi um rebuliço! Os nativos dividiam-se entre o amor e o ódio! Os preços realmente eram mais baixos. Mas talvez fosse coisa de inauguração. 
O fato é que do Bar do Seu Nonô ao açougue do Retalho, do Hospital à Igreja, o assunto era a loja, os produtos e os preços. 
Um dos mais irritados era o Mariposa, comerciante local que, até então, dominava na cidade:
— Meia dúzia de badulaque diferente, que o povo daqui nem vai saber usar, e já correm tudo pra lá!
Falava com o copo na mão, sem se dirigir a ninguém especificamente, enquanto o Manobra, com alguma dificuldade equilibrava-se apoiado com uma das mãos no taco de bilhar segurando o copo de cerveja com a outra, e o Retalho manejava o cutelo em uma peça de carne. 
— Fala Mariposa! Manobra, toma uma pra acordar! — Era o Goela, passando. O Mariposa logo desconfiou:
— Tá indo pra onde, Goela? Já sei, pra loja nova! Agora é isso! Agora meu comércio tá lá, às moscas. Assim, acabo tendo que demitir os funcionários!
— Que “funcionários”, já, Goela? Lá só tem o Bolacha que fica dormindo no balcão e tu não pagas ele faz bem uns 3 meses!
O fato é que o Goela estava indo mesmo na direção da loja nova. Estava com um mandado de intimação para o Rogério Augusto Pantoja, até então "Açaí de 20”. Tá, pra quem não sabe, quanto mais grosso o açaí, mais caro paga-se pelo litro. Daí, que açaí de vinte reais seria grosso pra caramba!
Pois o Goela tinha que intimar o Açaí de 20 para uma audiência de pensão de alimentos do filho da Plaqueta. Perguntando aqui e ali, o Goela soube que o Açaí de 20 estaria na loja nova! O Goela foi faceiro por ter um motivo de ir até a loja, até porque, era um dos raros lugares que tinha ar condicionado ligado direto! Na verdade, logo depois da loja inaugurar, houve uma espécie de “surto de resfriado” na cidade. O pessoal, que não estava muito acostumado com ar condicionado, adorou ficar entrando e saindo da loja bem fresquinha, e pronto: com os constantes choques térmicos, na semana da inauguração foi um festival de tosse-tosse na cidade!
Mas, enfim, o fato é que o Goela encontrou o Açaí de 20 na frente da loja, em uma cadeira de plástico. 
— Fala, Açaí.
— Qual é, Goela? Nem vem pro meu lado com papel do Fórum!
— Já era! Te botaram na justiça. Ou tu assinas, ou tu assinas, sabe como é!
— Quem foi? A Vera Vira Copo ou a Delícia? 
— A Plaqueta!
— Égua, dessa eu não esperava! Já tinha falado com essa pequena que ia dar uma forra pra ela! Ia comprar umas fraldas pro moleque nascido.
— E porque tu não compras, leva pra ela e tentas resolver antes da audiência?
— Tô esperando a “bléqui fráidi”. 
— Égua! Que é isso, já?
— Bléqui fráidi, Goela. Tá aí na faixa, olha!
Em cima da entrada principal, havia uma faixa anunciando que a loja abriria na quinta-feira, às 23h59min, com toda a loja em promoção, descontos de 50% até 80%.
— Já tô esperando, Goela!
— Tá doido, Açaí? Hoje é terça! 
— Daqui não saio, Goela! Vou ser o primeiro a entrar e vou comprar o que puder e revender nas ilhas. Vou “enricar”! 
A notícia espalhou-se rápido. Muito mais eficiente do que a faixa ou o comercial na rádio local que tocava duas horas por dia nas caixas de som amarradas aos postes, foi o Goela ter falado para a Tutela, que o Açaí de 20 já estava fazendo fila esperando a tal “bléqui fráidi”.
Para maior desespero, ainda, do Mariposa, todo mundo começou a ir para a frente da loja, para ver se era verdade. Como muitos sequer sabiam ler e os que sabiam tinham preguiça, ficavam com a notícia do boca-a-boca. No Bar do Seu Nonô, já estavam comentando:
— Pois é, o “Bléqui" disse que tem coisa quase de graça, na meia noite!
O “Açaí de 20” já havia virado “Bléqui”. E a notícia dos descontos da loja nova virou febre.
Na quinta-feira, eu estava terminando de despachar o último processo do dia, por volta da 16h, e perguntei para o Goela:
— E aí, Goela? Tu vais pra fila da black Friday, também?
— Não, doutor. Eu e o pessoal da bola já temos outra estratégia. Vamos concentrar no açougue do Retalho, tomando uma, e esperar a muvuca da entrada passar. Daí, a gente pretende ir na loja na madrugada, quando tudo estiver calmo.
— E o que vocês pretendem comprar?
— Nada demais, doutor: a gente quer mesmo, é comprar bebida, que diz que até bebida vai ter em promoção!
Guardei o “hein?!” pra mim, e resolvi nem argumentar sobre não entender a vantagem de concentrar bebendo e pagando caro por bebida, para depois comprar bebida barato… conhecendo o Goela e o pessoal da bola como eu conhecia, a probabilidade de eles beberem muito mais do que iriam comprar depois, era enorme! Mas, enfim, era a febre da “black Friday”.
O movimento em direção à loja, foi algo inacreditável! Por volta de 20 horas, não havia mais condições de nenhum veículo passar na rua da beira, em frente à loja! Segundo contaram, o Bléqui (antes Açaí de 20) havia ficado todos os três dias na frente da loja. Até tentou organizar uma fila, mas depois ficou impossível, e as pessoas empurravam-se em frente às portas fechadas que abririam às 23h59min. Contaram que o Bléqui chegou às vias de fato um sem número de vezes, com cada um que falava em entrar primeiro. Reivindicava a socos o direito de ser o primeiro a entrar. Mas de um tempo pra diante, nenhuma briga mais ouve, porque a aglomeração era tanta que não havia sequer como espichar o braço para dar socos. 
A cidade, com exceção da rua da Beira, estava vazia, e toda a população parecia aglomerar-se na rua da loja. O fim da multidão já havia chegado no açougue do Retalho, e muitos dos que esperavam a loja abrir, passaram a entrar na “concentração" do pessoal do Goela. O Retalho nunca vendera tanto, afora o fato de que ele não tinha nada a ver com os descontos prometidos, e vendia caro o litrão de cerveja e o copo de cachaça!
Naquela mesma noite de quinta para sexta-feira, eu viajei para Belém. Quando o navio encostou no trapiche, por volta de 22h, a multidão na rua da Beira já era inacreditável. O Padre reclamava que na procissão da padroeira não havia tanta gente. Houve muita gente desembarcando e correndo no sentido da multidão. O navio partiu para Belém com muito pouca gente e foi uma das viagens mais confortáveis que já fiz, tendo muito espaço pra atar minha rede no navio!
Do havido, eu soube somente quando cheguei na semana seguinte:
Da turma do Goela, dizem que apenas o próprio Goela e o Tronco deram conta de entrar na loja. O resto ficou pelo caminho, ou amanheceu dormindo no açougue do Retalho. O Goela, sem querer, marcou pontos com a Afrodite, porque disseram que quando ela saiu de casa procurando o Goela com o dia amanhecendo, ele estava dormindo abraçado a um liquidificador bem na porta do fórum. Como de bobo ele não tem nada, logo disse que tinha encarado a multidão pra comprar o liquidificador pra Afrodite, embora ele não faça a menor idéia do que houve para aquele liquidificador aparecer na mão dele. 
Descobriu, pela fatura do cartão de crédito, que havia comprado na loja do Mariposa, pelo dobro do preço! 
O Bléqui (que jamais voltou a ser Açaí de 20), desapareceu! Ninguém lembra dele na loja, ninguém lembra depois! Quer dizer… notícia teve: a loja, que tanto rebuliço causou na cidade com a tal “black Friday”, fechou as portas. 
Tu estás te perguntando "o que isso tem a ver com o Bléqui?”, caro leitor?
Bem… como ele desapareceu, logo começou a correr notícia de que uma visagem dele passou a aparecer para pessoas que compraram na black Friday. E essa notícia espalhou-se também. Quem mais a divulgava, inclusive, era o Mariposa! 
Tem quem jure, aliás, que desde a noite da black Friday, o Mariposa ocasionalmente era visto à noite, levando um lençol branco meio escondido… Mas depois da Tutela ter sido perseguida pela visagem à noite, a notícia não teve mais volta e ninguém mais entrou na loja nova! 
No dia da audiência, já em março, nem notícia dele, e a Plaqueta jurava que ele estava com uma morena numa ilha próxima, onde havia montado, ele mesmo, um armarinho. 
O nome do estabelecimento era “Bléqui Fráidi - a loja onde todo dia tem desconto”
Foto real da frente da loja Americanas em Breves, Marajó, Pará, na noite de quinta para sexta-feira em  28.11.2019, às 23h30min.
Luís Augusto Menna Barreto

24.12.2019

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

O Sumiço do Gerente e a Black Friday

O Sumiço do Gerente e a Black Friday

O Gerente jogava muito. Dono de um estilo elegante, adonava-se do meio campo, com a cabeça erguida, toques rápidos e passadas largas. Era um Zidane Marajoara! Ganhava a vida assim, nos gramados do arquipélago, ora jogando por uma cidade, ora por outra. Os prefeitos sempre o “contratavam" para levar o time da cidade até a final do campeonato, o que sempre dava muito status e rendia frutos políticos, especialmente em anos eleitorais. Gerente chegara a tentar a sorte na capital, no clube do Remo, mas não deu certo. Não lhe faltava futebol. Faltava-lhe disciplina! No Marajó não havia treino. Era chegar no domingo, fardar, entrar em campo e fazer o que sabia fazer: conduzir os companheiros com toques precisos que imprimiam uma velocidade alucinante ao time. 
Ele encostava pouco na bola, dificilmente dava mais de dois toques antes de encontrar o espaço exato numa linha às vezes reta, às vezes curva para que a bola passasse entre várias pernas adversárias e chegasse no ponto exato onde o companheiro de time haveria de estar segundos após ele tocar na bola. Sua precisão organizava o time e ele gesticulava aos companheiros. Era como se gerenciasse a equipe, determinando o que cada um haveria de fazer, sem que ele precisasse realmente ficar com a bola. Daí que lhe rendera o apelido: Gerente!
Como já era certo acontecer, o time que o Gerente defendia, estava na final! Seria domingo, dia 29 de novembro de 2015! Na quarta-feira, dia 25 de novembro, Gerente estava no açougue do Retalho, jogando sinuca com o Manobra, motorista da ambulância, e com o Mariposa, que se fingia interessado no jogo, mas todos sabiam que estava esperando a Pequena passar para jogar uma saliência. Como o açougue fica na rua da beira, dava pra ver o navio apontando longe no rio. Dali com meia hora haveria de encostar no trapiche municipal, perto de 23h, onde não demoraria mais do que 10 minutos. Já dava para ver alguma movimentação das pessoas que iriam para Belém, movimentação de carregadores que saltariam para o navio antes mesmo de estar atracado, bem como alguns “amigos do alheio” como a Estrupício, que geralmente entrava de pés descalços e saía com sandálias e alguma mochila nas costas, bens dos mais desatentos ou dos que dormiam profundamente nas centenas de redes atadas nos dois conveses. 
Mas a surpresa deu-se quando o Navio estava para encostar e o Gerente despediu-se do Manobra e falou para o Retalho pendurar a conta do goró. Gerente foi para o trapiche com ares de quem embarcaria, o que causou espanto! O retalho tirou a caneta da orelha e anotou a dívida num bloco pendurado em um barbante perto da parede atrás do balcão, sem dar muita atenção. O Manobra apoiava-se com dificuldade no taco de bilhar e não entendeu direito, e também nem percebeu os dois enfermeiros que passaram ofegantes, carregando um doente na maca e xingaram o Manobra por não estar no hospital para conduzir o doente na ambulância até o navio. Mas o Mariposa, que havia apostado dois mil reais no Glorioso, o time da cidade, arregalou os olhos! Foi até frente do açougue e espichou o pescoço para o lado do trapiche! Era fácil ver o Gerente que se destacava pela altura acima da média marajoara. 
— Ele tá embarcando! Ele tá embarcando, Retalho!
— Quem? Tá doido, Mariposa?
— O Gerente, ele tá embarcando…
O Mariposa foi saindo em direção ao trapiche com um copo na mão, enquanto o Retalho não entendia muita coisa, mas não deu importância… ele estava acostumado a ouvir conversas sem sentido depois de alguns copos dos fregueses. O que ele estranhou, foi que quando a Pequena passou pelo Mariposa e olhou daquele jeito malicioso de canto de olho, o Mariposa nem deu atenção e seguiu como se nem a tivesse notado. Acostumada com os gracejos do Mariposa e de olho em descontos na loja dele, ela ficou furiosa de ter sido ignorada! Na mesma hora apressou o passo e o Retalho ouviu apenas algo parecido com “ah… mas ele vai ver a pssica que vou jogar nele!”  
Quando o Mariposa venceu os duzentos metros que separam o açougue do Retalho até o Trapiche, o navio estava, já, desatracando, e o Gerente, subindo para o convés superior, onde fica a lanchonete do navio. O Mariposa tentou gritar:
— Gerente! E o jogo? E o Jogo? 
O Gerente, tendo ouvido o Mariposa, tentou gritar de volta, mas tudo o que o Mariposa conseguiu ouvir, por cima do barulho do motor do navio e das marolas do rio, foi algo como:
— … “frade”!
“Frade”? O Gerente iria rezar, pedir proteção, confessar os pecados? O que aquilo queria dizer?
Não entendeu direito. Pensava nos dois mil reais apostados e sabia que sem o Gerente no meio campo, o Glorioso nunca ganharia o título! E agora? O prefeito! Tinha de avisar o prefeito! Era caso de interesse municipal! 
A manhã de quinta-feira foi agitada. Com a notícia que recebera do Mariposa na madrugada, o prefeito marcou uma reunião de emergência com a base aliada na Câmara dos Vereadores (seis dos nove vereadores), com os comerciantes próceres da cidade, e com o Aglutina, o técnico do Glorioso! Decidiram por fazer sair a lancha particular do prefeito, pilotada pelo Dentadura, o piloto de lancha mais rápido do Marajó, que faria o percurso até Belém em menos de 6 horas, para procurar o Gerente. Mas onde? Não importava! O importante era fazer alguma coisa, mostrar para a população que havia empenho para trazer o Gerente. 
Eu soube disso tudo na sexta-feira. No meio da manhã, o Recado, um dos assessores do prefeito, entrou no Fórum apressado e pediu para falar comigo. O prefeito havia pedido para o Goela ir com o Dentadura e realizar a missão de achar e trazer o Gerente a tempo do jogo de domingo!
Claro que diante de uma situação de interesse municipal desta envergadura, concordei e chamei o Goela!
— Ele não está doutor! — Apressou-se a Tutela a vir na porta do gabinete dizer-me!
— Como assim?
— Ele saiu na lancha do prefeito hoje cedo!
— Hein?
Pois é, o Goela já havia ido, e o Recado deu-me a mensagem com quase um dia de atraso.  Mas, enfim, era um caso de interesse municipal, e relevei o Goela haver saído sem avisar
O comentário na cidade não era outro. No bar do Seu Nonô, no açougue do Retalho, na loja do Mariposa, no trapiche, na praça… “O Gerente voltaria a tempo de dar o título ao Glorioso?"
Eu viajei na sexta-feira à noite, mesmo. Às 22h, embarquei no navio que, depois de mais ou menos 10 horas, atracaria em Belém, e até aquele momento, ninguém sabia se encontrariam o Gerente, se ele jogaria ou não a final.
O que foi? Sobre um final para isso? Eu fui embora, não vi nada! 
Tudo bem, o que eu soube depois, foi que o Glorioso foi campeão. Gol do Gerente cobrando uma falta marcada de forma duvidosa aos 38 minutos do segundo tempo. Cartão vermelho para o Rasga Diabo, zagueiro do time adversário, o que rendeu quase vinte minutos de confusão tendo que o Tonelada, policial militar entrar com o contingente todo: dois policiais (contando com o Tonelada). O cartão vermelho parecia brilhar. Aliás, os cartões amarelos generosamente distribuídos durante o jogo, também pareciam brilhar.
O que o Gerente gritou do navio, para o Mariposa, foi “tô indo comprar na black Friday”!
Voltou de Belém com uma “chopeira”, chuteira nova e uma camisa do Remo.
Ah!, e no vestiário dos árbitros, havia um apito profissional e dois cartões novinhos em folha, em cima de um envelope volumoso, cujo conteúdo eu não faço a menor idéia do que havia! 

Luís Augusto Menna Barreto

2.12.2019. 

domingo, 24 de novembro de 2019

O Escritor

O Escritor

Ele escrevia. Às vezes, depois do trabalho, às vezes à noite, quando a esposa e os filhos dormiam… Foram inúmeras vezes que, embora cansado, vinha-lhe uma idéia na cabeça, e então, ele esperava que dormissem, fazia um café quase em silêncio e punha-se a escrever.
Eventualmente, publicava algumas linhas em redes sociais. Havia, sempre, quem fizesse algum comentário. Com o tempo, foi criando uma pequena rede de amigos. Amigos virtuais, que passaram a ler seus escritos e passaram a acostumar-se com o ritmo do que ele escrevia, que riam, emocionavam-se, quase mesmo participavam de suas criações.
Diziam-lhe uns, que ele tinha talento. Ele mesmo achava que tinha. Escolhia, sempre, com cuidado as palavras. Algumas vezes, ficava como que ruminando em sua mente uma ou outra frase, porque não a entendia pronta. Ou porque achava que a frase estava boa demais para que fosse postada sozinha, sem haver todo um texto que justificasse a existência daquela frase.
Algumas vezes, os textos ficavam com ele tanto tempo, sem irem para o papel, que chegava a criar uma espécie de intimidade com o texto e, ao escreve-lo, parecia a despedida de um amigo que faria falta. 
Ele não vivia dos seus textos. Trabalhava. Mas o inevitável sonho era viver de sua literatura. Às vezes, irritava-se, sem qualquer modéstia, ao ver uma frase pobre ganhar notoriedade da noite para o dia em redes sociais, escrita por uma pessoa que sequer se preocupava tanto com as palavras, como ele. De alguma forma, ele se abatia ao ver tantos livros escritos por pessoas que ele tinha certeza que não tinham um mínimo de talento, um mínimo de respeito pela literatura. Pessoas que, de alguma forma, estiveram no lugar certo, na hora certa, fizeram-se descobrir, algumas vezes até mesmo pela vulgaridade com que se exibiam, e tinham livros de parcas idéias, de histórias comuns, de pobre literatura, tão vendidos…
Tantas foram as vezes em que ele quase desistiu. Em alguns momentos chegou a ficar sem escrever por semanas… mas era sempre vencido, como se as palavras escritas fossem-lhe um vício. 
Sonhava. Sonhava que um dia, a literatura de qualidade que ele sabia fazer, seria descoberta, que então seriam os seus livros nas prateleiras; que um dia, seria reconhecido pelo cuidado de uma vida, com as palavras. 
… sua vida, porém, foi passando entre escritos quase anônimos, e elogios de alguns amigos fieis às suas publicações em redes sociais. 
Já em tempo de espera e preparando-se para a morte que encarava como uma fato natural, catalogou tudo o que escreveu e deixou arquivado, com uma carta para a esposa e filhos. Tinha a convicção de que a posteridade seria sua redenção! Que os filhos e a esposa viveriam, ainda, as benesses faustosas de seu legado literário.
Morreu. Havia quase um sorriso ao pensar em sua família encontrando a carta com as orientações que deixara. Depois de velado, a esposa foi ao seu pequeno escritório em casa, cheio de livros, papéis, revistas… e encontrou a carta, junto com duas grandes caixas de material que ele catalogara. Ela pegou a carta com carinho. Leu detidamente… olhou as caixas…
… suspirou. 
“Era um sonhador”, ela pensou com carinho sincero.
Alguns anos depois, quando ela se mudou para um apartamento menor, porque os filhos haviam, já, alçado seus vôos próprios, as caixas estavam, ainda, lá, e eram grandes demais para o pequeno apartamento novo.
“Se a senhora quiser, podemos levar para a cooperativa de reciclagem dos catadores”, ofereceu o motorista da empresa de mudança.
Ela assentiu com um gesto de cabeça, separando apenas a carta.
“Era um sonhador”, pensou.
Luís Augusto Menna Barreto

22.11.2019

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Quinto Micro Conto de Amor

Quinto Micro Conto de Amor

Desde o dia em que se conheceram e apaixonaram-se irremediavelmente, ele passou a dizer-lhe “eu te amo” todos os DOMINGOS.
Passaram a namorar e ele ligava para o trabalho dela, na farmácia onde a conhecera, todas as SEGUNDAS-FEIRAS, bem cedo, para dizer-lhe “eu te amo”.
Ao ficarem noivos em uma comemoração simples, em que trocaram alianças na mesa da calçada daquele bar, entre alguns amigos, todas as TERÇAS-FEIRAS ele lhe enviava mensagem dizendo “eu te amo”.
Ao casarem naquela igreja de periferia, numa cerimônia em que os amigos ajudaram a realizar, todas as QUARTAS-FEIRAS, ele deixava um bilhete escrito “eu te amo” junto à garrafa térmica com o café que preparava às 4h30, antes de sair para sentar-se no banco de cobrador do primeiro ônibus que partia da garagem.
Tempos depois, ensinou pelo exemplo, aos filhos, a dizerem, todas as QUINTAS-FEIRAS, “eu te amo”, para ela, que era uma mulher e mãe com uma vida simples, porém feliz.
Já perto do ocaso de ambos, quando ele acordava, às SEXTAS-FEIRAS, agora já aposentados, ele dizia “eu te amo” a ela, antes de ligar aos netos para ambos o dizerem.
Depois que ela expirou, mesmo com os joelhos doendo, ele ia, devagar, todos os SÁBADOS, com alguma flor colhida do jardim que ela cultivara e que lhe restara de herança, depositar em frente à lápide, e dizer-lhe, ainda, “eu te amo”.
O que lhe restava de vida, era para aguardar o momento de juntar-se a ela, com o coração leve, sabendo que jamais perdera a oportunidade de dizer-lhe que a amava. Por toda a sua vida, ele soube ama-la de domingo a domingo. 

Luís Augusto Menna Barreto

10.11.2019

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

As Bruxas de Gual Dídimo - uma crítica desautorizada

As Bruxas de Gual Dídimo

Eu chorava quando via o Papai Noel. 
Era frustrante para minha mãe. Lá por meus cinco, seis anos, perto do Natal, o pai levava todos nós para algumas compras e passear nas lojas no centro de Porto Alegre, num tempo em que não haviam shoppings. Então, íamos na Loja Renner e na Mesbla, uma em cada esquina, frente a frente na Rua Dr. Flores, ou no Hipo Incosul, também na Rua Dr. Flores, na esquina de baixo. Eram lojas que ocupavam prédios inteiros. Eu achava o máximo entrar no elevador, com ascensorista, e ouvir as palavras rápidas, decoradas: “2º andar, cama, mesa, banho… 3º andar, moda masculina, feminina e infantil… 4º andar, móveis, eletrodomésticos e restaurante…
Então, nessa época do ano, cada uma dessas lojas tinha o seu Papai Noel, que eu achava que ficava indo de uma para a outra. Eu meio que ficava com medo, só de olhar. A mana, não! Ela ia toda feliz falar com o Papai Noel, contava e o que queria, ganhava doces… Eu? Eu me agarrava no pescoço da mãe, berrando constrangedoramente, e a mãe, coitada, tinha de sair dali comigo; e com isso, eu ainda atrapalhava o barato da mana!
Mas hoje eu sei que aquele medo, aquele choro todo, era meu maior elogio ao Papai Noel! Eu sentia medo, porque eu acreditava. Eu realmente acreditava! E eu acreditava que, não tendo sido sempre bonzinho, não ganharia os brinquedos que tanto queria.
Na mesma medida em que fui aprendendo a desacreditar do Papai Noel, eu fui perdendo o medo. 
Eu morria de medo do bicho-papão! Um dos piores terrores de minha infância, era acordar no meio da noite. A mana, que dividia o quarto comigo, dormia tri tranqüila, e eu ali, acordado! Eu tentava tapar a cabeça com o cobertor, mas ficava com medo que, então, o bicho-papão chegasse sem eu perceber e eu levaria um susto maior ainda. Então, com olhos arregalados, eu enchia os pulmões de ar, e lá ia:
— Mãããããããããeeee… 
E, poucos segundo depois, aparecia a mãe ou o pai, com a paciência própria dos pais, para pegar-me no colo e levar-me para dormir com eles, entre eles, atrapalhando a todos. Quando a mãe estava mais cansada, ela mesma deitava um pouco na minha pequena cama, e fazia-me dormir novamente. 
Bicho-papão foi real para mim… até que fui crescendo, e desacreditando… e perdendo o medo!
Eu nem sei mais, quando foi a última vez que eu senti este tipo de medo, mas sei que foi lá atrás, em algum momento entre o desenredar-me da infância e o descobrir-me adolescente… 
Por tantas vezes, eu quis, novamente, encontrar dentro de mim aquele garoto com medo. Por tantas vezes quis reviver aqueles medos, falar com o guri assustado, descobri-lo, ainda em mim. Procuro por ele, e o espelho mostra-me cada dia mais distante, cada dia mais na direção errada. Mostra-me rugas, cabelos brancos, olhos cansados…
Então, na sexta-feira, dia 1º de novembro e no sábado, dia 2, aconteceu a mágica!
Eu estava ao lado do meu pequeno João. Estávamos no alto… e, pelo espaço de mais de uma hora, eu confesso que me perdi, perdi o tempo, e sequer sabia exatamente onde eu estava! Eu olhei para os olhinhos curiosos do João, ávidos de mundo, abertos às surpresas todas da vida, aberto a simplesmente deixar-se emocionar e vi espanto… vi sorrisos… vi sustos! Vi expressões que se somavam em uma velocidade de quem tem a pressa da vida inteira ainda… eu vi medo em seus olhinhos, alguns instantes! Então, de repente, eu olhei em minha volta, e havia uma multidão; espalhavam-se quase que amontoados em um imenso círculo e todos, absolutamente todos, comungavam das mesmas expressões do João! Eu vi sustos! Vi tensão, notei corações acelerados, mãos que se retorciam, alguns roíam os cantos dos dedos… outros pareciam querer gritar, querer avisar, mas pareciam enfeitiçados em um silêncio de quem venera, de quem está absorto, de quem está em êxtase, um transe coletivo…
… então, de repente, foi como se eu olhasse a mim mesmo e eu me senti, inarredavelmente, parte daquela comoção que a todos arrebatava. Eu me vi olhando lá pra baixo… e eu me descobri sentindo algo que há muito não sentia: eu me descobri sentindo, de novo, medo… Medo! Eu estava, de novo, ligado ao menino que chorava diante do Papai Noel, ao garoto que se escondia nas cobertas e gritava pela mãe, para que me socorresse do bicho-papão! Eu senti medo!
Lá de baixo, vinha uma energia como eu nunca havia visto em situação semelhante! Oito mulheres, lá embaixo, faziam emanar uma vibração que penetrava naquelas mais de duzentas pessoas em volta, elas gritavam, acusavam-se, ameaçavam-se, enfrentavam-se, temiam-se… Era como se elas estivessem, por magia, conduzindo a todos pelos mesmos caminhos em que estavam, pelas mesmas acusações, pelos mesmos temores… E eu senti medo!
Aquelas mulheres, não eram comuns: eram bruxas! E eu senti medo! Um medo real! E por aquela mais de uma hora, aquelas bruxas fizeram eu reencontrar o garoto que fui. Aquelas bruxas fizeram o feitiço de lembrar, experimentar e reviver meus medos e eu ser menino novamente!
Eu e meu pequeno João assistimos à peça na sexta-feira e foi impossível não voltarmos no sábado, arrependidos por não termos ido desde a quarta-feira e na quinta-feira!
A peça chama-se “As Bruxas de Salém”*. Escrita e dirigida por Gual Dídimo. Gual acertou em tudo: desde a eleição do elenco, ao iluminador; emprestou ao seu maravilhoso texto, a velocidade de um trem bala, sem nunca exigir pressa da platéia! Ave, Gual! Tão obrigado! Tão obrigado…
Obrigado Tainah Leite, Luana Oliveira, Layse Souza, Nathália Nancy, Rita Ribeiro, Mônica Moura, Kátia Menezes e Lohane Takeda!
Tainah exalava leveza na interpretação, quase flutuava, à vontade pelo palco. A veracidade que emprestava à personagem, nas variações de humor, quase assustavam, convencendo a platéia do seu poder!
Luana, de discreta participação no início, cresce muito além do seu tamanho e revela um talento e uma força de interpretação que não conseguimos compreender como tanto se agiganta!
Layse causou-me medo: olhos vidrados quando ela própria sentiu o medo da morte a assombrar-lhe e fez deste medo a energia com que furiosamente acusava!
Nathália carregou a grave responsabilidade de abrir o espetáculo em uma cena solo eminentemente corporal. Não havendo com quem dividir o peso, suportou sozinha e com louvor a pilastra sobre a qual os acontecimentos desencadearam-se!
Rita foi surpreendente. A voz macia e a placidez com que conduziu sua personagem, arrebatou a todos com o surpreendente desfecho!
Mônica parecia desafiar a si mesma. Emprestou sua frágil aparência à potência da personagem, estabelecendo o ideal contraste de quem impõe a autoridade pelo temor e não pela força!
Kátia foi além! Pontuava as cenas com o cinismo que a personagem exigia. Queria ver-se e ser vista sofrida, mas exigia que reconhecessem sua força. Segura do primeiro ao último momento em cena!
E, finalmente, Lohane, esteve soberba: teve a dificílima missão de destencionar o público em pinceladas de alívio com um humor que deveria ser percebido sem ser declarado, em meio à intensa dramaticidade do texto. E ela o fez com maestria!
Ofereço a vocês todo meu aplauso! Ofereço a vocês, o meu medo! Ofereço, o sorriso encantado do garoto que vocês, com o feitiço do palco, fizeram eu reencontrar.
Obrigado, bruxas... as bruxas de Gual Dídimo!

- - -

*As Bruxas de Salém,  peça teatral com dramaturgia de Gual Dídimo, foi apresentada, em segunda temporada, no Teatro Experimental Waldemar Henrique em Belém do Pará, nos dias 30 e 31 de outubro e 1º  e 2 de novembro, com casa lotada  nos quatro dias e merecida ovação da platéia em cada uma das apresentações!
NÃO PERCAM UMA TERCEIRA TEMPORADA!

Luís Augusto Menna Barreto

7.11.2019

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Os Éguas do Edyr

Os Éguas do Edyr


Um dia há alguns anos, menos de vinte, porque eu já morava aqui no Pará, em algum aeroporto, em uma conexão, eu fiquei sem ter o que ler! É, eu sei: vacilo meu!
Daí, fui até uma revistaria na área de embarque, e comecei a bisbilhotar. Um título chamou minha atenção: “Um Crime na Holanda”. Em formato de livro de bolso, avaliei bem e pensei: tenho 2 horas de viagem pela frente, mais uns 40 minutos aqui na sala de embarque… fiz aquela folhada em que as páginas passam rápidas pelo polegar, e decidi: vou levar. 
Naquele dia, fui apresentado ao inspetor Maigret. Foi meu primeiro “Simenon”. Eu confesso (envergonhado) que não o conhecia. Se gostei? Respondo dizendo que hoje eu tenho mais de 40 livros de Simenon, sendo 36 com o inspetor Maigret.
Eu me policio para variar de leitura. Então, raramente leio em seguida duas obras do mesmo autor. (Isso só faço com os gibis do Tex, que coleciono até hoje). Pra quem não sabe, Simenon é o mais profícuo escritor de romances policiais que se tem notícia. Ao ler seus livros, passeamos, tranquilos, pelas ruas de Paris, somos conduzidos pelo inspetor Maigret pelo interior da alma humana, e ficamos inevitavelmente envolvidos pela atmosfera maravilhosa que nos apresenta Simenon. Eu confesso, sem qualquer pudor, que prefiro muito mais Simenon à Agatha Cristie. Prefiro Maigret a Hercule Poirot. 
Atualmente, um autor vem “assombrando" a cena literária europeia e mundial com romances policiais, já tendo mais de uma obra transformada em filmes: Jo Nesbø, com o seu protagonista Harry Hole. Talvez vocês já o tenham lido ou visto em filme, como “O Boneco de Neve”, ou “Headhunters". Um escritor que prende a gente do começo ao fim.  Eu tenho 7 livros dele, faltando eu ler dois, ainda. 
Mas daí, eu fui na Feira Literária do Pará - FLIPA, evento da livraria FOX, em Belém! (Tá, eu também participei com “Pilha & Kadu” e “O Teatro”). Mas o fato é que foi preciso acontecer a FLIPA para eu descobrir vários autores “nossos" maravilhosos. E, quando digo “nossos”, não estou referindo-me ao Brasil como um todo, que tem autores não tão badalados, mas que são brilhantes. Outro dia haverei de falar em Tabajara Ruas, que escreve livros que a gente lê de um fôlego só (certamente tu já viste algo dele, como a série / filme Neto Perde sua Alma). 
Uma outra obra, esta não de ler de um fôlego só, mas de tirar o fôlego: “Oeste" de Alexandre Fraga. 
Estes dois, são maravilhosos, mas não são nossos. Estou falando “nossos" apropriando-me da naturalidade paraense para referir-me a autores daqui, deste distante Norte, do portão de entrada da Amazônia! (E olha que legal, uma matéria no G1, a respeito do lançamento do livro “O Teatro” - (veja aqui a matéria no G1) - classificou-me como “autor paraense” e, confesso, senti algum orgulho disso).
Na FLIPA, bisbilhotando os inúmeros estandes de livros de autores paraenses, eu me defrontei com pérolas da literatura, que eu sequer desconfiava que existiam. Eu já conhecia Inglês de Souza, quem eu considero uma espécie de “José de Alencar” da Amazônia, porque a literatura de Inglês de Souza é quase prosa… é fluida, suave, parece embalar nossa alma ao contar-nos a história, ainda que seja ela cruel e sangrenta, como, por exemplo o conto “A Quadrilha de Jacó Patachó”. Inglês de Souza está num patamar acima, daqueles que são extraclasse. Se algum dia tu, leitor, deparar-te com qualquer obra dele, não vaciles: adquire-a! Há alguns e-books de Inglês de Souza por preços inacreditáveis, como R$ 2,99! 
Também encontrei Dalcídio Jurandir, que tem obras como “Três Casas e Um Rio”, “Marajó”, e “Chove nos Campos de Cachoeira”. Dalcídio escreve com alguma melancolia, que vai tomando conta da alma e remete-nos às agruras e mazelas da vida à beira do rio… literatura imersiva. 
Foi possível encontrar, também, na FLIPA, títulos curiosos como “Armagedon na Cidade do Pará e a Polêmica Ressurreição do Egolecobra”, de Flávio Nassar, um texto burlesco e maravilhoso! Algo entre Garcia Marquez e Dias Gomes.
Mas hoje… ah… hoje eu quero apresentar-lhes outro autor. Sequer eu o conhecia. (Obrigado, FOX, pela FLIPA!). Lembram que comecei falando sobre autores estrangeiros de romances policiais (Simenon, Agatha Cristie e o atual Jo Nesbø)? Lembram que eu comentei sobre Maigret, Hercule Poirot, e Harry Hole? Pois eu gostaria, com profundo orgulho e um mea culpa por não o ter conhecido antes, de apresentar EDYR AUGUSTO PROENÇA. Eu comprei, quase por acaso, na FLIPA, o livro “Os Éguas”. Ora, com um título desses, somente poderia ser paraense, né?! Pois eu quero dizer-lhes que esta obra nada, absolutamente nada, deve a nenhum dos autores citados! 
“Os Éguas”, escrito em frases que dificilmente chegam a duas linhas, com diálogos próprios de quem escreveu muitos roteiros de teatro antes de aventurar-se ao romance, é um livro que não permite que paremos de ler! Uma trama elaborada com fina técnica de juntar pontas aparentemente soltas, um suspense que não antecipa em nada o que virá pela frente, uma escrita muito longe de algum erro piegas de ter obrigação de concertar o final (“concertar" com “c" mesmo, de entrar em acordo, de ter de combinar com o leitor o final). Edyr Augusto coloca-nos a passear pelas ruas de Belém vendo os lugares e sentindo seus cheiros e aromas. Principalmente, coloca-nos a participar da humanidade de seu protagonista, o delegado Gil, tão mais real que qualquer um dos estrangeiros citados. 
Gil é um de nós, alguém que se tornou policial menos por vocação e mais pela oportunidade do concurso público, com a segurança de salário fixo e garantido. Sofre as mazelas da corporação das polícias estaduais, tão abandonadas, com tantos vícios e algumas virtudes lutando na contramão de antigas práticas. Não tem a vocação evidente de Maigret; não tem perspicácia de Hercule Poirot; não tem a infraestrutura da polícia escandinava de Harry Hole. O delegado Gil, tem a experiência que temos, a realidade que vivemos, e as fraquezas que escondemos.
Enfim, descubra-o. Descubra Edyr Augusto Proença e seus títulos tão regionais, mas de histórias que fazem qualquer nacionalidade parar pra ler: “Pssica", "Casa de Cabas”, "Um Sol Para Cada Um”, entre outros.
“Os Éguas”! Uma obra absolutamente maravilhosa. Talvez seu protagonista somente possa ser comparado a um outro, ainda desconhecido: “Tomás”, o investigador de polícia de um romance em construção a 4 mãos (eu e Sandra Carreiro)… ah… mas isso, é pra outra crônica…!

Luís Augusto Menna Barreto

31.10.2019

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Clarissa, Analu e Cristina… ou o tempo das decisões

Clarissa, Analu e Cristina… ou o tempo das decisões


De repente, já quase no final do expediente, enquanto media os dois metros do tecido que a cliente a sua frente escolhera, Clarissa, aos 22 anos, fora acometida de um pensamento que sequer buscou, que sequer pode dominar, que sequer sabe de onde ou porquê, surgiu. Era uma espécie de voz de si mesma em sua mente, perguntando-lhe: “é isso que tu queres?” 
Naquele mesmo dia, em outra cidade, outra realidade, Analu aos 34 anos, estava em casa, olhando a filha de 12 anos desenhar com esmero as letras do título do trabalho escolar. Na sua mão, o smartphone onde num movimento de baixo para cima do indicador, fazia desfilar imagens de praias, onde o sol quase se pondo levava um brilho dourado às águas. Lembrara da última vez, há três anos, que estivera com a filha nas areias de uma praia. Perguntou-se se essa era a vida que escolhera, ou a vida que se deixou ter.
Conforme a súmula vinculante n. 31, é inconstitucional a cobrança de ISS sobre locação de bens móveis…”.  Cristina sabia que deveria prestar atenção… estava pagando caro por aquele curso de mestrado. Estava cada vez mais qualificada. Começara a ser valorizada no escritório e finalmente veio-lhe o convite para ser sócia. Tinha o dinheiro para integralizar a sociedade. Mas, naquele instante, sem saber por quê, ela sentiu vontade de receber o vento no rosto no alto de algum paredão rochoso natural. Queria respirar perto das nuvens. Aos 31 anos, tinha a certeza que continuaria sua ascensão profissional, e haveria de ter todo o conforto que dinheiro honesto, fruto de trabalho árduo, poderia proporcionar. Mas por que, afinal, a ideia de escalar montanhas não lhe saía da cabeça, durante aquela aula?
O dia continuou, afinal de contas, para todas elas, em suas rotinas, fruto das escolhas até então. Até mesmo “não escolher” é, enfim, uma escolha!
Aos 52 anos, Clarissa olhava para si mesma satisfeita. Era gerente daquela loja em que trabalhava há 35 anos. Tinha a plena confiança dos donos. Estava satisfeita. Casou-se, separou-se, criou um casal de filhos e olhava satisfeita para a foto em sua parede, mostrando-a na Ricoleta, em Buenos Aires, a viagem de sua vida! Todos os dias enviava e recebia mensagens dos filhos e fotos dos netos. Lembrava, sempre, do dia em que  perguntou a si mesma, se era feliz. E, naquele mesmo dia, decidiu: era! Faria o seu melhor com o que tinha! 
Segurando com carinho aquele livro de Dalcídio Jurandir que ganhara há trinta anos, ela ainda pensava a mesma coisa de quando tinha 34 anos: quando sua vida iria mudar. Vira a filha crescer, tornar-se uma mulher absolutamente linda, ganhar o mundo, casar-se… não houve dia em que não se comunicasse com a filha, não importava onde, no globo a filha estivesse: sempre chamava a filha pelo apelido que lembrava doces, e sempre ouvia "te amo, mamãe”, ao final da ligação ou conversa por mensagens. Desligando, suspirava e pensava para si mesma, que se a filha estava feliz, havia cumprido sua missão… Mas a verdade é que, dentro dela, voltava sempre a pensar: “quando sua vida iria mudar”. Jamais teve a resposta; talvez porque jamais pensara: “quando eu mesma mudarei minha vida”.
A mão de Cristina doía muito. Ela olhou a mão coberta de pó de magnésio e poeira, misturada a um pequeno filete de sangue, e sorriu! Sentiu o vento no rosto. Sentou-se a menos de um metro da borda do paredão e contemplou. Aos 61 anos, talvez fosse uma das últimas escaladas da sua vida. Os amigos, todos, vieram correndo, abraçá-la. Ajudaram-na em quase toda a subida de 40 metros. Ela sorrira. Agradeceu a Deus por tê-la dado a coragem de mudar sua vida. Pediu perdão por haver demorado tanto. Foi somente aos 52 anos, que largara o escritório, os compromissos, e que usara pela última vez um Tailleur. Fora o pai que a olhara nos olhos, uma das últimas vezes e dissera: “não espera mais…”.  Naquele dia, ela decidira. Não mudara tudo, simplesmente, como em um ímpeto. Foram dois meses preparando os sócios, os filhos, o marido, os amigos, e ela mesma. Então, quando completou o curso de escalada na Chapada dos Guimarães e do alto daquele paredão de 15 metros fez uma chamada de vídeo com seu pai, e viu a lágrima dele, que valia mais do que todos os sorrisos em sua vida, teve a certeza: havia feito a escolha certa!
...
Sejam pelas mudanças feitas, sejam pelas mudanças não feitas, haviam descoberto, ao final: o tempo que a vida levaria para mudar, era o tempo que levaria para que decidissem.
O tempo de tua espera, é o tempo de tua decisão.

Luís Augusto Menna Barreto

29.10.2019