Páginas

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Aleatórios

  

Enquanto Esther olhava para a imensa porta de entrada da Basílica de Nossa Senhora de Nazaré, com o coração cada vez mais acelerado, ponderando se entrava ou não, Suellen pedia uma cuia de açaí no mercado do Ver-O-Peso, ao mesmo tempo em que Deyse, no trabalho, ligava para o filho.

Esther sentia um medo real, e por isso hesitava… 

Suellen estranhou quando viu a dona da barraca de açaí pegar uma pá e enfiar no isopor com gelo em escama e colocar no fundo da cuia…

Deyse consultou o relógio e ponderou o horário…

“Tem uns postes de luz queimados na rua, Eduardo, não vais tarde pra casa”, disse Deyse, no mesmo instante em que Suellem soltava um “égua, não”, em protesto à dona da Barraca que colocava o açaí por cima do gelo em escamas, enquanto Esther finalmente cruzava a porta da Basílica, de olhos fechados, com sincero medo de que morresse queimada, por jamais ter entrado ali antes e agora ter decidido entrar porque queria pedir a bênção da Nazinha para passar no exame da OAB.

Elas trabalham juntas todos os dias. Todos os dias tem assuntos em comum. 

… e mesmo assim, a vida é deliciosamente aleatória…!


Luís Augusto Menna Barreto

11 de dezembro de 2024


PS:  Isso tudo realmente aconteceu. Essas meninas maravilhosas trabalham na mesma equipe… e um dia qualquer (aleatório) eu simplesmente parei e as ouvi contando  estes fatos ao mesmo tempo, enquanto Deyse, conversando e ao mesmo tempo falando ao telefone com Eduardo, recomendava-lhe que chegasse cedo em casa.

Então eu sorri, e agradeci à Deus, entendendo por um instante, como a vida pode ser deliciosamente cotidiana!

sábado, 7 de dezembro de 2024

O Baguda, o China, a Dívida e o Leilão


O Baguda, o China, a Dívida e o Leilão 


— Alô…? Doutor…?

A ligação estava péssima! Eu estava, ainda, no navio, tentando chegar na comarca, mas deu prego. Um dos dois motores levou farelo, e então, a viagem que seria de umas dez horas já estava com quase quinze. 

No trajeto entre Belém e a comarca, no Marajó, tem alguns pontos onde a gente consegue um “resto" de sinal de celular. Daí que eu estava tentando ligar para o Fórum para avisar do meu atraso e a Tutela atendeu. 

— Doutor, o Baguda veio aqui ver a decisão e não entendeu nada!

— Traduz para ele, Tutela.

— Égua, Doutor… de rocha, também não entendi muito.

— Pede para o Goela traduzir para ele, tutela!

— O Goela já vai sair de rabeta pro interior, fazer intimação, doutor. E o Baguda foi bem ali.

“Bem ali” é aquele lugar indecifrável mas que simplesmente faz parte do cotidiano Marajoara, em que todos (menos eu!) entendem exatamente o que quer dizer e, muitas vezes, até quanto tempo o caboclo vai levar para voltar!

— Fala para o Goela deixar escrito, Tutela.  Ou pede para o Barganha.

— O Barganha tá pra…..

Foi-se o sinal.

O caso era que o Baguda havia entrado com um processo contra o China. O processo não tinha muito cabimento, e a Dra. Quaresma somente deu entrada porque, sendo a advogada da Prefeitura, quando ela ia na cidade duas vezes por mês, na falta do que fazer, atendia como se fosse defensora pública. O Baguda deve ter perturbado muito a paciência da Dra. Quaresma para ela entrar com o processo, porque ela não era de dar entrada em coisas do tipo:

O Baguda, para escapar de ser preso por pensão de alimentos do filho que fez com a Virada, emprestou do China para pagar em dois dias, quatrocentos e cinquenta reais que o China iria usar para pagar a conta que já estava ficando grande no açougue do Retalho. No dia combinado, o Baguda não tinha o dinheiro. Daí, o Baguda, sem ter mais para quem pedir, foi na loja do Mariposa e pegou fiado um motor rabudinho* por quatrocentos reais, e queria dar em pagamento ao China. O China não aceitou, não precisava de motor. Queria o dinheiro, e estava cobrando do Baguda.

O processo do Baguda contra o China era para que “a Justiça” obrigasse o China a aceitar o motor pela dívida, e ainda que o China devolvesse mais cinquenta reais que o Baguda precisava para dar para o Mariposa, para rolar a dívida do rabudinho que pegou fiado.

Indeferi:


“Vistos os autos. 

Indefiro o pedido de tutela de urgência, porquanto não vislumbro a verossimilhança do direito alegado, uma vez que, não havendo qualquer prova documental, e tendo sido o negócio jurídico de mútuo, não se pode obrigar o credor a receber de modo diverso do que fora contratado, ainda que verbalmente.

Marque-se a audiência.

Cite-se o demandado. Intime-se o autor.”


Esse despacho que o Baguda não entendeu e, pelo jeito, a Tutela não soube explicar.

Fiquei torcendo para que alguém pudesse esclarecer a decisão para o Baguda, e voltei para minha rede para aproveitar o balanço do navio que, com apenas um motor empurrando, estava sendo ultrapassado até por mururé!

Já era noite quando, depois da curva, avistamos as luzes da cidade, particularmente iluminada por conta da festa da padroeira! Era dia de bingo na frente da igreja, e a rua inteira estava tomada por mesas e cadeiras com praticamente toda a cidade jogando no bingo. De tempos em tempos, entre as rodadas do bingo, ocorrem leilões onde são leiloados bens que a comunidade doa para a igreja, ou outros que não são doados, mas que a igreja fica com um percentual da venda.

No caminho do trapiche até o pequeno quarto onde eu morava na cidade, passei pelo bingo e estavam leiloando justamente um motor rabudinho. 

“Ouvi 300? 300 reais? Vou vender por 300 reais?”

Murmurinho daqui e dali, ninguém aumentando o preço, e eu vi o China, chegando do outro lado da rua, na companhia da Jaguatirica, que logo já sentou em uma mesa de amigos, e já estava pegando uma cartela e recebendo uma latinha de cerveja. O China, que já chegou com a latinha na mão, parecia já ter tomado umas. Subiu no canteiro da rua e gritou meio porre: 

— Quinhentos, seja lá o que for que estão vendendo!

Era isso mesmo. Ele nem sabia o que era!

“500! Tenho quinhentos do amigo China, um rabudinho novo em folha! Ouvi 550? Alguém para 550?”

A Jaguatirica logo deu o ralho: 

— Tu tá doido, China? De onde tu vais tirar quinhentos pra um rabudinho, que nem um casco velho tu tens pra colocar motor!

— Só pra dar uma animada, que alguém já sobe o preço! —  Falou sorrindo, já animado das cervejas que havia tomado no Pretão.

O locutor continuava:

“550? Alguém para 550? Dou-lhe uma!” 

Enquanto eu passava devagar, puxando minha pequena mala, o China estava alegre e rindo…

“550? Ninguém? Vamos pessoal, um rabudinho de primeira! Alguém? Dou-lhe duas por 500.”

O China pareceu ficar preocupado. A Jaguatirica mandou um olhar que dizia “em casa a gente conversa”.

“Dou-lhe três! Vendido para o China por 500!”

Gritos dos amigos em volta, festa pela compra, e passei com minha mala!

Estava cansado da viagem, e da feita que cheguei, caí na cama e dormi. 

No dia seguinte, pedi logo para chamarem o Baguda, para eu poder explicar o despacho. 

— Não precisa mais, doutor, já está tudo resolvido! Paguei o China e dei o dinheiro da entrada para o Mariposa, já, como o senhor mandou.

— Hein? Como assim, eu mandei?

— Tá aqui no papel que o senhor mandou o Goela me dar, doutor! Óh…

Quem colocou o rabudinho em leilão, óbvio, foi o Baguda! O que aconteceu no bingo-leilão, foi que o China, não tendo o dinheiro para pagar o Rabudinho, começou a arrecadar com os amigos que estavam no bingo! Conseguiu juntar entre 11 amigos, o dinheiro e pagou na hora o leilão, especialmente porque quem arrecadava o dinheiro do leilão era o Tonelada, que vocês já conhecem de outras crônicas! O Baguda pegou o dinheiro, descontada a taxa da igreja, e pagou o dinheiro do China lá mesmo, que devolveu o dinheiro na mesma hora para os amigos. 

Ainda durante o bingo, o China anunciou o rabudinho nos grupos de whatsapp que participava, e acabou achando comprador do motor por seiscentos reais; separou o dinheiro para pagar o Retalho, e ainda tomou cem reais em cerveja com a Jaguatirica, jogando bingo, e proibido de abrir a boca em outro leilão.

Sobre o papel que o Baguda mostrou-me? Era a tradução do meu despacho, que o Goela deixou escrito para o Baguda, em papel timbrado e tudo:


"Dei uma olhada 'nos teus papel'. 

Me admiro de ti, fazer um pedido desses. 

Sal. 

Não me vem com pavulagem que o combinado não sai caro. 

Te puxa e dá teus pulos.

Juiz"

 

Luís Augusto Menna Barreto

7 de dezembro de 2024

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

O Marido, a Mimosa e a Ameaça


Foi o Tonelada quem chegou com a notícia de que havia acabado de prender o Marido.

Antes, tenho de esclarecer que “Marido" é o apelido do caboclo, não marido do Tonelada… O Marido, na verdade, era o companheiro da Mimosa.

Ele ganhou o apelido em um caso anterior que até acho que já contei, mas conto de novo. Antes, entretanto, aviso que é preciso saber uma das versões para quando a gente refere “amigo da onça”. Não conheces? Pois eu vou contar a que aprendi: “disk" (uma expressão daqui, muito usada no Marajó para referir algo que já ouvimos e não sabemos precisar nem a fonte, nem se o que se conta é verdadeiro); pois “disk” um caçador ia saindo com sua espingarda e um amigo perguntou:lhe”

— Vais caçar?

— Vou!

— O quê pretendes caçar?

— Porco do mato!

— E se aparecer uma onça? 

— Atiro nela!

— E se tua arma falhar?

— Eu corro!

— E se a onça correr?

— Atravesso o rio!

— E se a onça atravessar o rio?

— Subo em uma árvore!

— E se a onça subir na árvore?

Então já incomodado com as perguntas, o caçador pergunta ao amigo:

— Vem cá, tu és meu amigo, ou amigo da onça?

Pois dizem que daí que teria surgido a expressão “amigo da onça”, aquele que torce para o amigo se dar mal!

Então, "disk" o Marido, que antes era o “Fexecler”, casou e rápido descasou com uma morena das brabas! Entre os tapas e beijos, mexe e remexe na rede, tiveram um filho. Com o descasamento, mesmo sem nenhum acordo, toda semana a morena ia cobrar um dinheiro para a merenda do pequeno. O Fexecler até tentou ir no Navio da Ação Social, para fazer uma acordo na presença da Defensoria Pública, mas a morena nunca quis! Queria mesmo, é ir pegar a merenda como sempre fazia, e decidindo ela mesma, quanto seria o necessário! Nessa função, era fácil dar barraco, e o Fexecler acabava sempre pagando, e mesmo assim não saía sem levar uma esculhambação da morena. Então, teve o dia que o Fexecler pediu para a mãe dele entregar o dinheiro para a morena! Quando a morena chegou, a mãe do Fexecler foi para a ponta do trapiche que ligava a terra até a casa que ficava por cima de um gapó, e o Fexecler ficou na porta de casa. 

Quem disse que a morena pegou o dinheiro com a mãe do coitado? Pois ela empurrou a velha e foi atrás do Fexecler! O Fexecler fechou a porta, mas como não tinha tranca, a morena empurrou a porta e entrou! O Fexecler foi para a cozinha, atrás da casa, e a morena foi atrás. O Fexecler entrou na casinha afastada, que fazia vezes de banheiro, e a morena foi atrás. O Fexecler tentou ficar segurando a porta, mas a morena forçou tanto, que acabou entrando e o Fexecler não teve por onde escapar. Daí que empurrou a morena e ela caiu da ponte entre a casa e a latrina. Foi na delegacia e registrou queixa de violência doméstica. 

O caso logo se espalhou e o pessoal falava que era como a história do amigo da onça e logo o Fexecler ficou conhecido como o “Marido da Onça”. A morena, cujo nome nem se sabe, até hoje virou só “Onça” e o Fexecler, tendo virado “Marido da Onça”, com o tempo, acabou só “Marido”.

Quando o caso veio para mim, com pedido de medida protetiva que a Onça estava pedindo, eu dei a medida “ao contrário”: determinei que ela abrisse uma conta no banco postal, e a partir de então, arbitrei uma pensão mensal para o pequeno, e proibi a Onça de ir atrás do Marido.

Nunca mais havia ouvido falar dos dois até que o Tonelada chegou com essa notícia.

— Sob controle, “Merendíssimo"! 

O Tonelada, às vezes queria trazer pompa ao que falava, e cometia pequenos equívocos, mas considerando o tamanho do Tonelada, era prudente eu achar que não era de propósito.  Vai de “Merendíssimo” mesmo!

Pois o caso foi que a Mimosa havia ido prestar queixa de ameaça contra o Marido, na Delegacia. Chegando lá, ela foi atendida pelo Brédi Piti, o preso que cuida da delegacia na ausência do Delegado e quando o Fechadura, carcereiro, saía para diligências, fazendo as vezes de investigador. Daí, o jeito era o preso servir como carcereiro, mesmo! A mimosa chegou na delegacia nervosa e com uma lesão acima do olho, como quem levou uma pancada na “esquina" da testa.

— O que houve Mimosa?

— Cadê o delegado, Brédi? 

— Tá pra Belém, vem pra semana, só.

— Cadê o Fechadura? 

— Saiu pra estrada. 

— Então tu tens que ir lá resolver, Brédi!

— Não posso, Mimosa. Se eu saio da Delegacia, levo farelo. Pego ralho do delegado e o Tonelada me dá logo uma pisa.

— Égua, Brédi, o que eu faço? 

— Me fala o que houve, pequena? Quem te fez isso?

— O Marido me ameaçou, Brédi. Tu tens que ir lá resolver.

— Ah, Mimosa, dá teus pulos, que não tem visagem que me faça sair dessa delegacia!

A Mimosa foi então procurar o Tonelada lá para o açougue do Retalho, onde todo mundo passa para fazer uma fezinha no jogo do bicho, jogar um bilhar e tomar uma cerveja… às vezes até se compra carne por lá! 

A Mimosa só achou o Fiapo, de folga, e o Manobra tomando uma. Mas quis o destino que o Tonelada fosse na delegacia, dar uma olhada no Brédi, e ficou sabendo do ocorrido. Não teve dúvidas e foi atrás do Marido, encontrando o pobre, quando ia sair pra mariscar. Sem muita conversa, pegou pelo “cangote”, jogou numa cela, olhando feio para o Brédi:

— Quero que tu me deixe ele sair, Brédi! Só te digo isso: quero que tu me deixe ele sair…

O Brédi entendeu a ameaça e por nada o Marido iria conseguir sair daquela cela!

Foi quando o Tonelada entrou no Forum para relatar-me da prisão do Marido, que a Mimosa viu e correu lá, onde soube que o Marido havia sido preso.

Quando entendi toda a situação, resolvi ouvir a Mimosa, ainda que sem o rigor de um interrogatório formal, afinal, não havia nem mesmo uma ocorrência registrada!

— O que houve, Mimosa?

— O Marido me ameaçou doutor!

Estranhei. O Marido não era disso, sempre pacato, discreto, sem notícias de confusão, diferente de muito nó cego, que a gente fica sabendo de alguma história toda semana.

— E tu ficaste com medo, Mimosa? — Por definição, o temor de sofrer um mal, é elemento do crime de ameaça! Se a ameaça não tem potencial de causar temor na vítima, não há crime.

— Muito doutor! 

— Certo, e tu queres alguma medida protetiva? Queres que eu determine o afastamento do Marido do lar? 

— Não, doutor, quero o contrário! 

— Hein?

— O contrário, doutor, quero que o senhor proíba ele de sair de casa um tempo. 

— Mas ele não te ameaçou, Mimosa?

— Ameaçou, doutor. Faz dias que eu to me atrapalhando no almoço, e acabo queimando o arroz, ou deixando muito cru o frango… ele ameaçou me deixar e ir pra vizinha que sabe cozinhar, doutor!

— Hein?

— Ele me ameaçou de me trocar por aquela uma, doutor!

— Foi ISSO, Mimosa?

— Foi, doutor!

— E esse machucado na testa? Não foi o Marido, então?

— Não, doutor… esse é que eu fui lá dizer pra ela não arrastar a asa pro Marido, e acabei pegando uma panelada.

Pois é… coisas do Marajó. 


Luís Augusto Menna Barreto

12 de novembro de 2024