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sexta-feira, 27 de maio de 2016

crônica - Só Fiz Ponhar a Ficha

Só fiz “ponhar" a ficha

Originalmente  publicado no antigo blog
"Menna Comentários", precursor deste.
Data da postagem original: 09.02.2016.
Comentários na postagem original: nenhum
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Desta vez, não foi comigo que aconteceu. (Ufa, ainda bem que nem todas as situações inusitadas são comigo!) 
 Esta quem contou foi um colega (Dr. Miguel), enquanto todos colocávamos os meiões antes de uma partida de futebol. Aliás, alguém pode imaginar como é difícil a arbitragem num jogo de futebol entre juízes? O pobre árbitro apita a falta e quase gagueja dizendo: 
“Desculpa, excelência, mas acho que foi falta… mas se o senhor entende que não foi, eu devo estar errado”. 
O problema é que quem sofreu a falta também é juiz… enfim… não é fácil. Claro que alguns de nós aproveita pra tirar uma onda e xingar o juiz de ladrão! Mas essas são outras histórias, e o que quero contar é o caso que o Miguel falou.
 Hoje o Miguel tá com a vida mansa, uma jurisdição tranqüila na capital. Mas já passou o perrengue dele no interior. E foi num desses interiores de caboclos não letrados (mas nem por isso pouco espertos) que teria acontecido.
 O caso era de pedido de alimentos. Um caboclo mal acabado, mas de bom papo, que sai espalhando muitos filhos por aí. Há quem o chame de “boto”, porque tem muitos filhos de boto nos Estados da Amazônia. 
 O que acontece normalmente nesses casos, quando o caboclo sequer tem um emprego (muitas vezes são pescadores semi-artesanais, ou vivem "no mato”, derrubando uma ou outra árvore, sem receber nem um décimo de salário mínimo por mês), é que eles tentam ficar com a criança, para não ter de pagar alimentos. O pouco que recebem é precioso demais para dar parte para um filho, já que tem festa todo o final de semana em algum trapiche do interior, e sempre se pode comprar uma garrafa de cachaça e uma coca-cola para misturar! Fora isso, existe o argumento previamente decorado por esses “botos”:
“Doutor, ela fica gastando o dinheiro com festa e deixa a criança sozinha em casa, passando fome!” Ah, tá bom… eles podem e elas não teriam direito, é…?!
 Com esse tipo de argumento, o caboclo tenta evitar o pagamento de alimentos e, quando não consegue um acordo do tipo “Doutor, eu me comprometo a ir dando conforme eu for conseguindo”, o que tenta é ficar com o filho pra não pagar nada. E a matemática é simples: o filho será entregue para a avó paterna e será mais um que ela vai criar, dando um jeito aqui e outro ali, mais um neto chamando a avó de mãe e a vida segue.
 Mas, segundo o Dr. Miguel, a história com esse foi diferente.
 Na sala de audiências, entre uma e outra audiência de alimentos, a sala toda preparada, Juiz, Promotor e Defensor Público, uma digitadora que também faz o pregão, entrou a mãe da criança com o bebê aparentando quase um ano, dormindo em seu colo com uma fraldinha de pano no rosto. Quase junto entra o caboclo. Diferente do que é comum, este não entrou com aquele ar desconfiado, quase assustado, olhando pra tudo e cabeça baixa. Entrou tranqüilo, passo firme e, achando que seria o certo, estendeu a mão para cumprimentar a todos, desistindo porque o promotor que já estava entediado com tantas audiências, disse apenas: 
 “Sente aí!"
 O meu amigo, Dr. Miguel leu o processo e viu que se tratava de um pedido de alimentos. Sem perder tempo, como é sua característica, foi logo dizendo ao caboclo:
 “Amigo, vamos resolver logo isso. Quanto tu podes pagar de pensão todo o mês? Porque alguma coisa vais ter que pagar, porque pai tu não negaste que és."
 O Caboclo, aparentando alguma timidez, mas evidentemente já com seu discurso previamente ensaiado na cabeça, retrucou:
 "Doutor, vamos fazer assim: eu fico com a criança e ela não precisa me dar nada."
 A mãe da criança quase pulou da cadeira, de raiva. O Defensor público tentou acalmá-la colocando a mão em seu ombro, mas ela disparou, exaltada:
 “E tu vais dar de mamar como pra ele, seu infeliz?!”
 O caboclo não pareceu alterar-se e continuou dirigindo-se ao juiz.
 "Doutor, o filho é meu! Tem que ficar comigo."
 "O filho é dela também, amigo!" - Disse-lhe Dr. Miguel. Foi aí que o caboclo usou sua “lógica” para convencer Dr. Miguel que ele deveria ficar com a criança:
 “Doutor, o senhor já foi no aeroporto, em Belém?"
 “Fui. O que tem isso…?” Perguntou-lhe Dr. Miguel, sem disfarçar a curiosidade.
 “Pois lá não tem umas máquinas de refrigerante?"
 “Sim, o que tem isso?"
 O caboclo continuou:
 “Doutor, se eu “ponhá" uma ficha, sair a latinha, a latinha não é minha? Não posso levar pra casa?”
 Não deu nem tempo do Dr. Miguel responder e o caboclo, com cara de quem vence um debate, falou:
 “Pois doutor, eu só fiz “ponhá" minha ficha nela, doutor. Saiu a criança a criança é minha.” - E cruzou os braços dando o assunto por encerrado.
 …
 Pois é… não me lembro qual foi a decisão! Acho que o Miguel nem falou… e o jogo de futebol já tava começando.

Por Luís Augusto Menna Barreto

23 comentários:

  1. Kkkkkkkkk O pior é isso! Tem muito homem "ponhando" a ficha onde não devia... Ah, poeta! Ri muito, mas o caso é sério! Hoje temos muitas crianças sendo criadas por avós, que já estão cansadas da dura vida... já criou seu monte de filhos e por isso, recebe os netos, simplesmente e assim eles vão vivendo, sem nenhum ensinamento, sem educação, sem limites... Tudo por causa de alguém, que "ponhou" a ficha e não quis assumir a sua "latinha"! Triste! E a fila só vai crescendo...

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    1. Evidentemente triste, professora! Embora eu tente retratar com algum humor, o caso sugere alguma reflexão. E tudo passa, inevitavelmente, pela educação...!!

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  2. Hahahahahha.....essa foi demais....que comparação mais louca e o pior que ele acreditava estar certo....fico imaginando o rosto perplexo de todos e da mulher ao ser comparada uma máquina de refrigerantes....

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    1. No dia a dia, amiga Tel, ouvimos as mais criativas histórias de "ponnhadores de fichas" que, infelizmente, só pensam na latinha quando alguém vem cobrar por ela!!!!

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  3. Sempre rio muito dessas histórias, porém ao olhar de forma como é retratada a vida cotidianamente, isso tudo torna-se muito triste.

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    1. Sem sombra de dúvida, Silvina! Como crônica, a história sugere muito humor...! Como realidade, sugere a tristeza de quem trata a vida como uma despesa a ter de livrar-se!!

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  4. Sem dúvida tua leitura da nossa cultura é de se admirar... Os detalhes, a fala, o ambiente... Muito bom!
    Quanto ao fato, não esqueçamos de que são as mulheres que parem e criam os homens...

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    1. Ah, Sylvia... em primeiro lugar, obrigado por achares que tenho conseguido retratar a cultura locar, das plagas que escolhi para viver; em segundo lugar, não... não esqueço! Mais que isso, faço questão de lembrar e deixar na lembrança dos "ponhadores de fichas", que eles têm, sim, de assumir suas "latinhas"... é o ideal seria dividindo os cuidados!!

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    2. Sempre acertivo. Além de generoso. Não poderia esperar nada mais coerente...

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  5. Eita, que perigo! Esse homem, filho de boto, solto por ai, pondo fichas sem nenhum tipo de critério!... Só rindo mesmo!
    Fico pensando como vcs conseguem resolver esse problemas tão "fora do comum" e, ao mesmo tempo, tão próximos da realidade do povo!...
    Muita sabedoria pra vcs! É o que desejo! rsrsrsrsrsrs

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    1. Ah, poetiza...... é exatamente o que desejas que necessitamos: sabedoria e discernimento para separar a ignorância da esperteza....! Mil obrigados, poetiza!

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  6. Kkkkk...como pode!!! Cada história que não dá para acreditar que acontece!! Sempre querem arranjar um jeito para não pagar pensão alimentícia...e essa comparação com a máquina de refrigerante, aí meu Deus!!!

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    1. Camila.... pra tu veres a esperteza do caboclo!!!! Socorro!!! É essa é só uma das tantas histórias criativas que nos chegam!!!!

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  7. O que me resta comentar sobre tuas crônicas, L. A. Menna Barreto?! Só, talvez, enfatizar que tu consegues burilar o trágico da nossa cultura e transmutá-lo em um texto, no qual o humor fica como colcha fina a cobrir um conteúdo denso.

    Ah! Mas na verdade, meu cronista querido, esta tua crônica me prestaria para diversas teses, não fosse um nobre afazer me puxar para o cumprimento de uma promessa.

    Então, mais uma vez, seguem meus parabéns e o meu abraço de bem-querer!

    Tu bem sabes o quanto és bom quando escreves crônicas.

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    1. Quanto ao teu afazer na maravilhosa Barra Grande de "Navegar é Preciso" (vide no YouTube), pensa que seja o jantar a que por promessa ficaste obrigada! Pois desejo que tudo te tenha corrido bem e os convidados terminem a noite no descanso de uma rede à brisa marinha....!!!

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  8. Ah!!! Tuas histórias do interior estão se superando a cada dia. Essa de "ponha" a ficha está demais!!!
    Embora, por aqui, seja um interior diferente também tem muito gaúcho "ponhando" a ficha e achando ruim depois. kkk

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    1. Ah pois é, mana! É também por aí, acumulam-se histórias que, para nós, dariam ótimas crônicas.... para quem as vive, da angústias.....!!!!!

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  9. Amigão esta foi demais, criar um filho que nos trás tanto carinho, amor e compromisso, e comparar com o texto da crônica que vc retrata tão bem o homem que pra justificar seus atos se sai com uma história tão hilárica e pra ele tão certa no seu ponto de vista. Foi demais.

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    1. Obrigado, Dr. Izamir!!!! Pois essa é só uma, entre tantas, das histórias que nos chegam no dia a dia!!!!
      Muito obrigado!!!!!

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  10. Caro Menna, eu digo o seguinte: Você, em seu texto, adoça um café amargo, acrescenta ainda raspas de limão, uma pitada de canela....e ...hum....fica esse delícia! Bom demais. Parabéns!

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    1. Barbaridade!! Bora tomar esse café, Poeta!!!!!!
      Mil obrigados!!!

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  11. A delícia de ler suas crônicas, é nos fazer refletir sobre assuntos super pertinentes com muito bom humor e simplicidade... E não apenas a simplicidade da forma com que escreve, mas também a simplicidade e astúcia dessa gente do Norte e Nordeste! Ri muito! E refleti muito!
    Beijo grande!

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    1. Ah, guria!!!!!!
      ... mil obrigados!!!! O que faço (ou tento fazer!) é trazer o caboclo, o ribeirinho, o simples, para mais perto de nós.....!!!

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