As Eleições, o Promotor, o Morto e a Parideira
Época de eleições, é sempre um sufoco pra quem é juiz eleitoral.
Mas vou ser honesto… promotor também sofre um pouco…!
Pois lá no Marajó, por algum tempo, havia um promotor que, como eu, também viveu seus perrengues e teve muita história pra contar. Faz mais ou menos sete ou oito anos que ele saiu do arquipélago, mas ainda o considero um grande amigo! E vivemos boas histórias por lá. A etiqueta recomenda que eu não decline seu nome, então, de jeito nenhum poderia dizer que se trata do Dr. Gerson!
Enfim…
Eu lembro que ele, com seu jeito peculiar de ser, descobriu um pequeno golpe, uma esperteza, digamos assim, que eu jamais observaria. Mas ele é um guri muito esperto e, na época, estava no auge de seus menos de trinta anos.
Antes preciso dizer que, para o Poder Judiciário, a eleição não é só o período de campanha eleitoral. Não mesmo! Uma das épocas de mais trabalho é perto do tal do “fechamento do cadastro”. É o seguinte: meses antes das eleições, fecha o cadastro, ou seja, não pode mais alistar eleitores nem pode mais haver mudanças de domicílio eleitoral. O eleitor tem até o fechamento do cadastro para mudar a cidade em que vota. E normalmente esse fechamento do cadastro acaba em maio. E, no dia em que acaba o prazo, à meia noite simplesmente encerra o cadastro. Tudo via sistema. Isso: deixa eu esclarecer essas duas informações, porque serão muito importantes pro que vou contar: sim, eu disse MEIA NOITE! E, sim, simplesmente acaba a possibilidade de cadastro.
Pois é, vai chegando o final do prazo, e, especialmente no último dia, o atendimento vai direto e os servidores do cartório eleitoral ficam trabalhando realmente até a meia noite… mas DIRETO MESMO, até a meia noite! E não tem esse negócio de que "quem tá dentro será atendido”, ou distribuição de senha! O cadastro simplesmente fecha! Nem querendo, conseguimos cadastrar mais quando chega a hora.
Tá, vocês devem estar perguntando: “mas tem tanta gente assim, querendo mudar de cidade pra votar?” E eu respondo: “No interior? Mas báh, e como!”
O negócio é que quem já sabe que vai ser candidato, começa toda uma função de buscar parentes e amigos e interessados de qualquer forma que moram em outras cidades e começam um movimento migratório, de acordo com o interesse no futuro candidato (jamais falaria eu que muitas são pessoas muito simples às quais seria prometida alguma vantagem em troca da mudança do domicílio eleitoral e do voto nas eleições).
Daí, que nos últimos dias, fica um loucura.
Hoje em dia, não sei por que cargas d’água, o sujeito que quer mudar o domicílio eleitoral não precisa comprovar o endereço. Basta uma declaração afirmando que seu endereço é no município e pronto! Isso, uma declaração. Lá em algum lugar naquele papel que já veio pré impresso e que noventa por cento das pessoas que estão fazendo a mudança do domicílio eleitoral nem leem (umas porque não sabem, outras por preguiça), tem um aviso dizendo que é crime fazer declaração falsa! Tá, não vou nem falar se isso adianta alguma coisa ou não! Mas, naquele tempo, ainda era preciso algum comprovante do endereço! O talão da energia (é como o pessoal do Marajó chama o que conhecemos por "conta de luz”) servia. Só que não era exigido que estivesse no nome do eleitor, afinal, em uma casa podem morar quatro ou cinco eleitores e a conta da luz virá, evidentemente, no nome de apenas um.
Bem, o negócio é que nos últimos dias é muita, mas muita gente! Pense em uma fila de inscrição para o Big Brother ou o The Voice… pois é mais ou menos disso que estou falando!
O bom é que normalmente o fórum da Justiça Eleitoral é separado do Forum da Justiça Comum e a maior parte do tempo, eu não passo com essa pressão toda. Mas a verdade é que, nos últimos dias, nós (eu e o promotor) depois do expediente normal no fórum, íamos para a Justiça Eleitoral. E saíamos de lá normalmente depois da meia noite!
Naquela época, o cartório eleitoral contava com 3 servidores e havia 4 computadores! Um luxo! Daí que chegava perto de dez horas da noite, eu resolvia sentar no computador como os outros servidores para atender também. E o promotor ia pra fila fazer uma triagem! Pois no primeiro dia da triagem, já foi uma loucura o que a fila diminuiu e acabamos rápido! Tô dizendo: o guri era bom!
A primeira providência que ele fez, foi organizar a fila! A fila era um problema! A partir do portão do pátio do cartório eleitoral pra dentro, a fila até que estava mais ou menos em ordem… mas do portão pra rua, era cruel! O pessoal meio que se aglomerava em um amontoado que de fila não tinha muita coisa, daí que quanto mais perto do portão do cartório, mais confusão tinha! Pois o promotor resolveu rapidinho: chamou o Tonelada, policial militar sobre o qual já falei algumas vezes, especialmente sobre a sua “delicadeza”, e num instante a fila foi arrumada! O Tonelada foi no começo da fila, deu dois gritos, tirou o cacetete, ficou balançando na mão e começou a andar ao longo da fila! Num instante a fila ficou organizada e silenciosa! Tem jeito com gente esse Tonelada, vou te dizer!
Pois, organizada a fila, o promotor começou a fazer a triagem. Ele olhava o caboclo, abria um sorriso imenso (ele sempre sorri, é um guri realmente simpático) e pedia para dar uma olhada nos documentos. O caboclo, inocente, entregava para o promotor. Daí o promotor perguntava:
“O senhor veio mudar o endereço?”
“Vim, sim senhor”
“E qual é o seu endereço?”
Pronto… o caboclo começava a gaguejar…
“Tá, tá aí no papel que o senhor pegou”.
“Isso eu sei! Quero que o senhor me diga o endereço!”
“Ãnnh… doutor, é que eu mudei faz pouco…”
“Qual o bairro”, perto do quê?”
O caboclo tava ainda respirando pra responder, e ele atalhava!
“Vai-te embora daqui, seu lesado, pensa que vai enganar? Volta pra tua cidade!”
E lá saía o caboclo da fila! O resto do pessoal começava a arregalar os olhos. Ele passava pro outro. Mesma coisa:
Pedia documentos, “veio mudar o endereço pra votar aqui?”, “empreste-me seus documentos”, "qual o endereço”, “não gagueja que é mentira”, “vai-te embora daqui”!
Passava pro outro.
Certo, vocês estão pensando: ah, mas assim que o pessoal começou a ver o promotor fazer isso, passaram a ler rapidinho o endereço na conta de luz, pra dizer quando o promotor chegasse!
Ta… isso serviria na Suécia! Estamos falando do Marajó, onde lamentavelmente existe uma população ribeirinha muito grande que não tiveram acesso à escola! Mais da metade não tem condições de ler, ainda mais ler rápido e sob pressão e, ainda, decorar o endereço.
E pra fila esvaziar rapidinho, olha o que o esperto do promotor fez: gritou bem alto:
“Tonelada, continua a triagem! Quem não souber ou gaguejar o endereço, recolhe que falo com ele amanhã!”
Já viu né?! Todo mundo que não vinha mudar-se de verdade (e mais os gagos!) foram embora da fila!
Pois o promotor era assim!
Teve uma vez, já no dia da eleição, que deu problema numa seção de votação, em que um cidadão queria votar, estava com o título, mas o presidente da mesa de votação não deixou ele votar.
No dia da eleição tem sempre muito problema e passamos o dia de um lado pro outro, visitando locais de votação, coibindo boca de urna, resolvendo um ou outro problema. Como sempre tem muita coisa, nós nos dividimos, o promotor para um lado e eu para outro. Pois esse chamado, ele que foi atender.
No local, confusão armada, chegou o promotor… com o Tonelada!
O eleitor, um senhor velhiiiiiinho, mal sabia desenhar seu nome, segurando o título e dizendo que queria votar.
“O que está havendo?” Perguntou o promotor para o presidente da mesa.
“Ele não está na lista de eleitores, doutor. Não tem como votar”.
“Mas tá aqui meu título, é esse número de seção!” Exibia o eleitor.
O promotor pegou o título e conferiu. Era a zona e seção certas. Problema!
Telefonou para o cartório eleitoral. Passou a informação. Veio a resposta:
“Consta como falecido, doutor!”
“Égua!” (Fosse eu, teria saído um “hein?”. Mas o promotor é paraense da gema!)
Com seu jeito peculiar, ele falou com toda a calma para o eleitor velhinho:
“O senhor tá morto, não pode votar!”
… (Olhos arregalados, aquele momento em que a gente pensa em alguma coisa pra falar, e o promotor encarando o velhinho e sorrindo!)
“O senhor morreu. Tá morto. Consta no cadastro!”
“Mas doutor… eu tô aqui, não tô?”
“Não. O senhor tá morto!”
O caboclo olhou o promotor que sorria, o Tonelada atrás dele, muito sério, e falou:
“Olha, doutor… eu achava que não, mas o senhor tem mais estudo… vai ver eu já morri mesmo… Obrigado, doutor, vou ver se aviso a família…” E foi saindo!
…
Tá, tudo bem… depois disso, claro que o promotor levou o caboclo para o cartório eleitoral e resolveram o problema. Era caso de homônimo. Devia ser proibido pessoas com apenas um pré nome e um só sobrenome! Será que não pensam na justiça eleitoral quando batizam os filhos?!
Pois bem, estávamos nós no último dia do cadastro. Quando eu cheguei com o promotor no cartório eleitoral, por volta de três da tarde. Ainda tinha um monte de mães e pais com criança no colo, “furando a fila”. Pois é! O pessoal leva os filhos de propósito, porque com criança de colo, tem preferência, como as grávidas, deficientes e idosos.
Eu estranhei, porque normalmente (não sei porquê) esse pessoal que tem alguma preferência, vai bem cedinho! Mas, como sempre tem muita gente, também nem me chamou a atenção tanto assim.
Pois o promotor, desde a chegada, sempre muito comunicativo, vai fazendo a triagem mas sempre brinca com as crianças de colo. Até pegar algumas no colo, ele pega.
E assim foram passando algumas horas, e a todo o momento vinha uma mãe ou um pai com bebê de colo. O promotor começou a estranhar quando viu uma ou duas crianças chorando quase desesperadas, querendo, a todo o custo sair do colo. O pai da criança estava mesmo meio sem jeito. O promotor foi lá e o sujeito ficou nervoso. O promotor, bem mais jeitoso do que aquele pai, acalmou a criança. O pai fez o cadastro, pegou a criança e vai ela chorar de novo. E assim aconteceu com mais um ou outro!
Lá pelas tantas, eu lembro que saí do cartório, acho que fui no mercadinho ali perto comprar água com gás e, na volta, vi uma cena curiosa que achei interessante e comentei com o promotor:
“Tchê, Doc., olha, caiu meu queixo agora! Achei muito legal que uma mãe, ali na sombra do mercadinho tava trocando a roupa do bebê!”
“O quê?” Perguntou ele com uma desconfiança que eu não entendi. Pra mim, aquilo foi uma grata surpresa, ver uma mãe, em pleno Marajó, em que as crianças às vezes usam a mesma roupa a semana toda, trocar a roupa do bebê, numa fila em um dia quente. Imaginei logo que a criança deveria ter suado muito e a mãe, prevenida, trocava o bebê.
Pois o promotor olhou mais uma criança que chorava no colo de uma mãe sendo atendida, olhou pra mim e disse:
“Égua!” E saiu ligeiro!
Fiquei com a minha expressão de “hein" no ar.
Depois de uns minutos o promotor voltou e sentou sorrindo. Em seguida, chegou uma Conselheira Tutelar:
“E a criança, doutor?” Perguntou para o promotor.
“Leva pro conselho. A mãe vai ficar detida só até à noite, depois vou liberar e tu devolves a criança para a mãe”.
“Hein?”
…
Pois não é que a Maria Parideira arranjou de ganhar uns trocados no fechamento do cadastro? Dos nove filhos que tem, estava alugando três, pra quem queria furar a fila: um de quatro meses, um de quase dois anos e um de três e pouco! Alugava, trocava a roupa e alugava de novo!
E dizem que quem estava pagando era um cidadão que queria ser candidato na próxima eleição!
Foi. E se elegeu!
Por Luís Augusto Menna Barreto