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quarta-feira, 1 de março de 2017

crônica - Eu o Pilha e o Circo

Eu e o Pilha e o Circo


A minha perna ainda tava com gesso. Só na canela, porque a parte que descia pro pé, eu mesmo fui arrancando. Queria era tirar tudo, mas o Pilha disse pra não tirar que rico fica com pena de criança quebrada!
Faz tempo que eu tô com esse gesso. Nem lembro quanto. E também não sei se já tinha que ter tirado ou não, porque eu e o Pilha saímos fugidos do hospital. Tava com medo que me levassem para o juizado e o Pilha me salvou! Ele arranjou uma cadeira de rodas e saiu me empurrando à toda velocidade; mas os caras do hospital correram atrás de nós. O Pilha disse que eram os polícias do juizado disfarçados… daí, ele jogou a cadeira na frente de um carro e me levou na cacunda!
Depois, nunca mais voltamos no hospital e tô com o gesso na perna, ainda!
Tava muito quente de novo… por isso que viemos pro parquinho, ficar na nossa árvore.
“Eu queria voar, um dia…"
Eu tava olhando o céu, pelo meio das folhas da árvore… eu achei que tinha só pensado, mas acho que eu falei alto… porque o Pilha falou:
“… às vezes, eu queria ser ator…”
Eu fiquei meio sem saber o que dizer. O Pilha nunca falava assim… mas achei que eu tinha que dizer alguma coisa!
“… iiihhh… cheirou cola vencida? Ficou doido, Pilha?”
“Doido é tu, que quer voar. Até por cima de carro já voou, mané!”
“Não sei que graça tem em ser ator, Pilha… ficar vivendo a vida dos outros!”
“A graça não tá em viver a vida dos outros, otário! … só acho que seria bom poder não ter que viver a nossa vida um pouquinho…”
Eu não entendi muito bem… Mas achei engraçado imaginar o Pilha, todo pequeno, numa roupa de gente grande e fazendo biquinho pra falar…! Porque é assim que ator faz, né?!
Mas depois, achei estranho que o Pilha passou o dia mais quieto. Parece que tava com o pensamento longe.
No domingo, normalmente o Pilha vai pro centro ajudar o irmão dele vender DVD que eles pegam com um chinês. Mas nesse domingo, o Pilha chegou cedo no muro onde a mãe tinha arrumado pra gente dormir. 
"Bora mané”! 
“Onde Pilha?”
“Shhh! Bora. Vamos ganhar uma grana!”
Eu fui com o Pilha. Ele sempre sabe o que fazer. Acho que caminhamos umas duas ou três horas, atravessando a cidade, até que lá, depois de uma curva na Zona Norte, apareceu uma baita barraca de lona. Era um Circo!
“Vai trabalhar no circo? Virou palhaço, Pilha?”
"Cala a boca, mané! Tu é muito burro!”
O Pilha é mesmo esperto: o ingresso pro circo tava trinta pilas. O Pilha descobriu um lugar meio escondido, que dava pra passar embaixo da lona. Daí, que ele começou a passar umas crianças por baixo da lona, por 2 pilas cada. Eu ficava cuidando, enquanto ele passava as crianças! Mas eu só podia olhar de um lado, né? E o circo é redondo, então, não tinha como cuidar os dois lados! Daí, que um palhaço chegou pelo outro lado e pegou o Pilha! Ouvi ele gritar! 
Eu saí correndo desesperado. Tinha que dar um jeito de salvar o Pilha! Mas como é que se salva quem vive salvando a gente? Quando cheguei correndo, vi o Pilha sendo arrastado pelo braço pra trás de um caminhão. Corri o mais que pude, mas quando cheguei não vi mais eles, e nem ouvi os gritos do Pilha!
Fiquei desesperado! Comecei a procurar por tudo que era lugar.
Quando eu tava olhando um domador dar comida para dois leões que pareciam mais magros que eu, tomei um susto com uma mão no meu ombro! Era o Pilha!
“Bora, Mané! Ainda dá pra ganhar mais uns pilas.”
“Mas Pilha, o que houve? Como tu te livrou do palhaço?”
O braço dele tava meio vermelho, mas era só. Eu nem imaginava o que ele fez, mas o Pilha sempre dá jeito em tudo!
“Depois te conto, bora!”
“E se o Palhaço volta?”
“Não vai voltar!”
E o Pilha logo logo arranjou mais crianças pra passar por baixo da lona! Eu fiquei cuidando de novo. Mas tava apavorado!
Depois, começou um barulhão. Parou de chegar gente! Ia começar o Circo. Tava louco pra ver. Mas o Pilha disse que a gente tinha que conseguir mais dinheiro. Não entendi muito bem, porque o Pilha não era louco por dinheiro. A gente sempre conseguia só pro que tava precisando! O Pilha nunca foi de juntar e ficar guardando. Ele sempre fala que dinheiro que a gente não usa é só papel velho que não serve pra nada!
Mas fui com ele. E não sei de onde, ele conseguiu um isopor cheio de refrigerante. Era enorme, a gente quase nem podia carregar!
“Bora vender que fica mais leve”, ele falou.
Entramos no Circo e começamos a andar pelo meio das pessoas. No começo não vendemos nada, mas, depois da metade, começamos a vender muito. Quando dava, eu espiava um pouco. Mas o Pilha ficava o tempo todo contando o dinheiro e dizendo pra gente vender mais.
Antes de terminar, o Pilha me falou pra ficar com a caixa perto da saída que ele já voltava. Eu fiquei. Terminou o circo e ele não voltava. Comecei a ficar com medo, e me escondi com a caixa vazia atrás de uma arquibancada. Vi quando uma menina pouco maior que nós começou a subir lá no alto. Não acreditei quando ela pegou o balanço e começou a se balançar lá em cima! Só num circo, mesmo, pra ter um balanço tão alto! Vi que ela caiu e meu coração quase saltou! Mas tinha uma rede… e depois que eu vi que ela começou a pular na rede, achei até bonito. 
Ela saiu, depois, com o cara que tava dando comida para os leões. E eu tomei outro susto! Quase morri. Era o Pilha de novo! Mas tava muito diferente! Tava engraçado demais. E ele tava muito alegre! Tava com a cara toda pintada de palhaço e com uma roupa colorida! E o palhaço que tinha pego o Pilha tava logo atrás, com cara de brabo. Mas não tava correndo a gente dali. Chamou:
“Vem moleque. Anda logo, senão não vai dar!”
O Pilha me puxou e foi me levando até o meio, lá no poste com escada. E disse pra eu subir. Eu tava tão espantado que nem perguntei nada, fui subindo. O Pilha também! Mas ele tava numa alegria que era bonito de ver. Daí, eu não sabia se ficava com medo da altura ou feliz com o Pilha. Misturei os dois, e fui subindo. Quando vi, tava com o balanço da menina. O Pilha disse pra eu segurar. Eu tava me pelando de medo, mas segurei. E não é que o doido do Pilha me empurrou? 
Acho que dei o grito mais forte da minha vida. E foi tudo muito louco: acho que no circo, as coisas ficam mágicas, porque parece que o tempo começou a ficar devagar, porque eu sei que pensei num montão de coisas, enquanto o balanço foi até o meio, não aguentei o peso e caí… deu tempo de ver o Pilha rindo numa alegria que eu nunca tinha visto, deu tempo de lembrar do dia que eu tinha voado por cima do carro, e lembrei que eu me achei o super-homem… e pensei que eu era o super-homem de novo! Deu tempo de pensar que eu ia morrer quando chegasse lá embaixo, porque nem lembrei da rede… e quando achei que eu ia morrer fiquei feliz de saber que a última coisa que eu ia ver era meu melhor amigo feliz, porque ele tava rindo tão gostoso, com cara de palhaço!
… mas daí, parece que bati numa coisa mole. Era como se Deus tivesse me pegando no colo de um jeito bom e me jogando pra cima de novo! daí, parece que eu acordei e vi que eu tava balançando na rede! E Vivo! Foi ali que eu vi que o circo era mágico, porque hoje, cada vez que penso em tudo, levo um tempão lembrando! Não dava pra pensar em tudo no tempo só de cair! Eu sei que de algum jeito o mundo tinha dado uma freada!
Depois, quando saí da rede e o Pilha desceu, tirou a roupa que tinha colocado e devolveu pro palhaço que ficou o tempo todo com a cara fechada, olhando a gente da porta do circo. E o Pilha também deu todo o dinheiro pra ele. 
“Tá faltando dez real.”
“Mas é só o que consegui."
“Tá. Vazem, moleques”. 
Quando voltamos pra casa, a mãe tava furiosa. Eu tava com medo. Mas o Pilha tirou um saquinho da cueca. Tinha dez pilas. 
“Toma, não vai apanhar no dia que tu voou!”
Era verdade! Eu disse que queria voar, e o Pilha me fez voar! 
Nossa! Eu tinha voado! 
Não sei o que deu em mim, mas dei um abraço no Pilha!
“Tá doido, mané?!”… mas deixou eu abraçar.
E enquanto me abraçava, ele falou: 
“Acho que se não fosse tu, eu não ia ter sido um palhaço, hoje… foi tão bom não ser eu.”
Daí, ele me largou de repente e saiu correndo:
“Tchau, mané. Chega cedo amanhã no trabalho, que tu tá me devendo dez pilas!”
Fiquei pensando depois, em como o Pilha ficou diferente e feliz vestido de palhaço. Parecia que ele tinha ficado triste quando voltou a ser ele de novo.
Daí, eu não ri mais. Acho que fiquei triste… porque eu adoro minha vida… e quando ficar mais velho, tudo o que quero, é ser sabido como o Pilha…!


Por Luís Augusto Menna Barreto



35 comentários:

  1. Emocionante o Pilha realizando o sonho do amigo de voar e o próprio sonho de ser ator...muito bom o Pilha passeando no Circo da Ana Macedo e presenciando o início do romance da trapezista e o domador...

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    1. A idéia foi justamente essa...: uma pequena intromissão desautorizada no talento da escritora Ana Isabel... não resisti e quis, de leve, deixar meus personagens visitar o Circo...
      Obrigado, Tel...
      ... e obrigado, Ana Isabel...!

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    2. Acabo de chegar de Porto Seguro, nas cinzas das praias, do carnaval e na entrança da quaresma. Mas li. Li e fiquei tão emocionada, que de forma nenhuma dá para comentar este texto TÃO LINDO agora.

      Tu és, de fato, MEU CRONISTA PREDILETO.

      Podes me ensinar a escrever assim?
      Queres ser o MEU PILHA?

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    3. Queria eu saber, Ana Isabel, escrever um pedaço do que teu olhar generoso lê...!

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  2. Amigão, brilhante as artimanhas da dupla para satisfazer suas emoções. As artes desta epopéia são como sempre com o Pilha em ação, mas o que vale é a felicidade. Foi legal.

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    1. A felicidade sempre vale!!!!!!!
      Um baita obrigado, amigão!!!

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  3. Realizar sonhos, contempla a nossa imaginação e gera uma felicidade imensa, no faz de conta de nossa vida. Os dois estavam realizados. Apesar das artimanhas vividas. Tudo estava nos conformes do Pilha e no meu por osmose, com o nosso artista Pilha. Valeu amigão.

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  4. Essa é realmente uma verdadeira amizade!
    Um realizando o sonho ou desejo do outro.
    Se todos tivessem um Pilha em sua vida, não seria o mundo mais belo e as pessoas mais felizes?
    Quem saberá?

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    1. Ah, essa eu sei responder... o mundo seria mais belo se tivéssemos um Pilha... e mais belo ainda, se fôssemos os Pilhas de nossos amigos!!

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  5. O entrosamento e cumplicidade desses dois garotos é maravilhosa, um se preocupa com o outro de um jeito magnífico, de se arriscar tanto para realizar o sonho de ambos, um quer voar, o outro quer experimentar uma vida que não é a sua pelo menos um pouquinho, sonharam... foram atrás...realizaram. E ainda avistaram uma menina-trapezista e seu domador "gato". Muito bom.Gostei.

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    1. Ah, Eunice.... ter visto a menina trapezista foi uma estrepolia deste autor, que quis botar um dedinho na história da escritora Ana Isabel!!!!

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  6. Isso que tu fizeste, meu cronista predileto, foi o uso daquilo que a Linguística Textual chama de INTERTEXTUALIDADE, ou seja, a interpenetração de um texto em outro.



    Por princípio todo texto tem INTERTEXTUALIDADES, vez que há sempre outros textos dentro de qualquer texto. Por isso é que tal ramo da Linguística considera a INTERTEXTUALIDADE como um dos FATORES DA TEXTUALIDADE. Daí poder afirmar a não existência da originalidade absoluta.


    Contudo, algumas INTERTEXTUALIDADES são utilizadas como recursos literários, a fim de enriquecer texto ou textos que subjazem ao aparente.

    E tu fizeste isso, meu amigo, com mestria.

    Parabéns!

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    1. Perdoe-me, amigos queridos! É que, de quando em vez, a professora volta, "baixa" em mim e eu a incorporo.

      Mil perdões pela chatice!

      Um beijo carinhoso em todos!

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    2. Adoro!!!!!
      Fico sempre esperando!!! Não fazia a menor ideia dessas coisas!!!

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  7. Corrigindo: PERDOEM-ME, amigos queridos!

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  8. Olha só uma professora pedindo perdão pelo que esina...
    Sempre imenso prazer aprender contigo Dona Ana...
    E que texto!! Que Menna danado de bom das palavras!!!

    Ahh como eu queria conhecer o Pilha e ser sua amiga e poder participar dessas aventuras...

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    1. Vem, menina.... bora conhecer o Pilha!!!
      Ele tá sempre na sinaleira, junto com aquele amigo com um gesso todo sujo na canela!!!!

      E dia 7, ele certamente vai aparecer pelos comentários do CIRCO da Ana Isabel....!!!

      Bora conhecer o Pilha!!!!

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  9. Ah Menina sapeca!!!
    No dia em que tu fores debutar, vou te dar um presente próprio, adequado, um vestido bem contado. Sabes como é, toda menina quando enjoa da boneca... Huuumm!!!

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  10. Na serra, não sei, mas "na SECA é o sinal que a chuva chega no sertão."

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  11. "Quando FULORA", meu cronista preferido!

    É que tu és dos pampas e lá o linguajar é doutra maneira, não é assim?

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    1. Mas bah!
      E olhas que eu me esforcei.... rsrsrsrs!!!!!
      A primeira vez que ouvi essa foi na voz de Marisa Monte, no primeiro LP dela!!!!!

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  12. Quando a menina, enjoa da boneca e sinal que o amor já chegou no coração. Parabéns amiga Ana, adorei sua aula. Só os verdadeiros mestre, fazem de forma tão correta e sensível a exposição de seus saberes e partilham democraticamente com os seus. Obrigado.

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    1. A quem não sabe, Dr. Izamir, entre outras coisas, é professor também, da Universidade Federal no Estado do Pará, em Belém!

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  13. E para quem sabe, vale a pena repetir que, a cima de tudo, Izamir é uma pessoa extremamente gentil e generosa.

    Abração, Izamir!

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  14. A genialidade do Pilha sempre me surpreende !

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    1. Ah, Dr. Jackson... a genialidade criada na necessidade de sobreviver...!
      Como o maravilhoso Suassuna nos ensina pela personagem maior de Maria: "a esperteza é a arma dos pobres"!!

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  15. Com tanta gente grande assim... Nem vem vontade de crescer! Vou ser menina pra sempre mesmo quando a "fulor" florescer!

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    1. Ô menina...! Se puderes, ensina-nos o "elixir de Peter Pan", para que também nós não cresçamos...!!

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  16. Eu já disse que sou fã número um do Pilha??????

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    1. Bem, se não havias dito, disseste agora!!
      E até hoje, és a primeira que reivindica este posto!!!
      ... mas divida-o conosco!!!

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