O Fila-Bóia, o Cara de Cuspe e o Júri - parte 1
Meus dias de “Odorico Paraguaçu” Haviam terminado!
Assim como o personagem da novela “O Bem Amado” que, sendo prefeito de Sucupira queria inaugurar o cemitério e ninguém morria, eu também estava há quase dois anos querendo inaugurar o salão do Tribunal do Júri sem que ninguém quisesse matar ninguém. O promotor estava mais ansioso do que eu, porque ele estava na comarca há quase dez anos e louco pra realizar um júri… e ninguém matava ninguém!
Reza o folclore popular que o promotor era apelidado à boca pequena, de Cava-Cova, porque nesses dez anos que ele estava lá, por três vezes ele denunciou alguém por homicídio… e os três morreram antes do júri. O Fatiado que matou um antigo desafeto que o havia legado o apelido, depois de cortá-lo várias vezes com um terçado, morreu no mato, dizem que picado por cobra. E dizem que havia matado seu desafeto menos pelos cortes que levou na briga anterior, e sim porque não gostou do apelido que recebeu por ter sido cortado. O Espoca-Bota morreu de cirrose um mês antes do júri. Ele havia matado o dono do bar do barco em que viajava, quando este disse que não venderia mais cerveja pra ele antes que ele pagasse o que já havia bebido. Com esses dois, o promotor ganhou o apelido de Cava-Cova. E espalhou-se a notícia de que se ele denunciava, o caboclo morria. Isso evidentemente contribuiu para evitar muitos homicídios. A população acreditava que o fato de ser denunciado, já era a pena de morte: o caboclo morreria antes do júri! O terceiro, apenas confirmou a fama do promotor: o Medida, assim que soube que tinha sido denunciado, resolveu abreviar a angustia, já que acreditava que, tendo sido denunciado a morte era certa, e se jogou de cima de uma árvore, com uma corda amarrada no pescoço. Dizem que queria enforcar-se, mas calculou errado a medida da corda e morreu mesmo foi da queda, levando a corda frouxa no pescoço. Ganhou o apelido de Medida depois da morte. Antes, era Sagüi.
Pois eu também estava ansioso.
Primeiro, eu pensava numa inauguração pomposa, em grande estilo, um homicídio desses de televisão, com cobertura da imprensa nacional, quem sabe uma notinha no The New York Times, ou no Le Monde… depois fui meio que perdendo as esperanças e pensei em um homicídio que fosse notícia na cidade, ao menos, com o pessoal da rádio local (aquela com caixas de som penduradas em postes de luz) gastando horas de programação com especulações…
… mas aqui numa das menores cidades do Marajó, depois de dois anos sem nem notícia de homicídio, acabei me contentando com a denúncia que o Promotor ofereceu afirmando que o Cara de Cuspe tentou matar o Fila-Bóia.
Os motivos, o início não se sabia, mas a contenda terminou pelo Fila-Bóia sendo arremessado no leito do rio pelo Cara de Cuspe. Até aí, nenhum problema haveria, não fosse por dois motivos: o Fila-Bóia não caiu na água, mas por cima de um casco* que estava atracado ali. A queda foi de três metros, e o Fila-Bóia demorou um pouco a levantar. Quando se equilibrou no casco, nitidamente tonto, pulou no rio… mas a água estava pequena** e bateu a cabeça no fundo, tendo sido levado às pressas para a unidade de saúde.
Foi então que o promotor em vias de aposentar-se (e queria um júri mais que eu), decidiu por denunciar o Cara de Cuspe que empurrou o Fila-Bóia “com o nítido dolo de ceifar sua vida por meio cruel, empurrando covardemente a vítima para o abismo de modo que, caindo, desencadeou a série de nefastos eventos que colocaram em risco a sua vida, agindo de modo que impossibilitou a defesa do sacrificado, não obtendo o resultado morte por motivos alheios a sua vontade: cabeça dura da vítima”. Arrolou como testemunha, a Dona “Falo-Nada” que ganhou o apelido, porque normalmente começa a conversa com “ulha, nem falo nada, mana…"
O fato é que o caso ganhou um tamanho tal, que toda a cidade ficou ansiosa pelo “júri”, mesmo que quase ninguém soubesse o que era isso, ou como funcionava.
Teve o dia que cheguei no fórum e tava uma agitação só: além da Maria Sem Sossego gritando "justiiiiiiiiiiiiiiiiça" na frente do fórum, segurando um cartaz onde estava escrito “Canhoto não pagou a pensão da Meia-Vaga”, havia uma fila imensa na frente fórum.
Fui perguntar pro Goela o que era aquilo e ele disse que era tudo gente querendo ser jurado. A lista de jurados para o tribunal do júri é sempre feita no ano anterior, e mesmo sem nunca ter havido um júri por ali, a lista era feita todo o ano. Mas pelo jeito a população não sabia disso. Ainda assim, eu estranhei o número de pessoas querendo ser jurado, porque normalmente acontece o contrário: as pessoas querem é se livrar do encargo. Mas o Goela explicou:
“É que tão falando que tem almoço e lanche pra quem for jurado, doutor”!
Esse era o clima na cidade, quando o júri foi marcado. Acho que nunca um processo de homicídio tinha corrido tão rápido. Mas o fato é que nem o promotor nem a advogada da prefeitura (única na cidade e que fazia as vezes da Defensoria Pública que naquele tempo não havia por lá) recorreram de nada e o caso foi a julgamento rapidinho.
O Cara de Cuspe não estava preso. No dia do fato foi levado em flagrante para a delegacia e foi atendido pelo Brédi-Piti, o preso que ajuda o delegado. Mas o Cara de Cuspe confessou que havia empurrado o Fila-Bóia no rio. Como o Delegado achou que era só um caso de pequenas causas, afinal, empurrar alguém no rio não era lá essas coisas, o Brédi-Piti fez o TCO*** e o Cara de Cuspe ficou solto.
Surpresa foi quando o promotor denunciou o Cara de Cuspe. Mas nem o promotor pediu a prisão, nem eu decretei. O Cara de Cuspe foi em todas as audiências e sempre assumiu que empurrou o Fila-Bóia. O motivo é que ele nunca falou.
No bar do S. Nonô e no açougue do Retalho, as pessoas discutiam se o “Cara de Cuspe” deveria ou não ser condenado.
“O Deitado já até furou o Fila-Bóia e não deu nada! Que negócio é esse de júri, já?”
“Diz que pode ser preso pra sempre!”
“Acho que o Cara de Cuspe vai levar farelo. A mãe dele tá despombalecida na cama!”
E por aí, iam os comentários.
O dia do júri virou evento! Teve até foguetório pela manhã, tinha ambulante vendendo lanche na porta do fórum e a criançada toda na praça querendo ver alguma coisa. Sim, porque alguma coisa deveria estar acontecendo, né, e criança quer sempre ver e pronto!”
Daí que entrei no salão do júri, e senti cheiro de naftalina. Não, não era do salão… era da minha toga, que eu não usava desde a cerimônia em que tomei posse como juiz, e já fazia quase quatro anos, naquela época.
E tava tudo bonito, as pessoas todas arrumadas.
O Goela tava até com gel no cabelo, D. Boneca que cuida da copa do forum tava com vestido novo, o efetivo da polícia (dois policiais militares) com uniforme limpo.
Na primeira fila, o prefeito, a primeira dama e (dizem!), na outra fileira, estavam a segunda e a terceira dama também! Os vereadores todos, e as figuras mais importantes da cidade. Os ventiladores de teto do salão não davam conta e as janelas estavam abertas com a criançada tentando espiar, disputando lugar com alguns curiosos.
O promotor chegou já suando na toga, todo sério, e com vários livros embaixo do braço e mais o assessor com duas outras sacolas de livros. A advogada da prefeitura entrou discreta e trazendo a toga em um cabide. Vestiu lá mesmo.
Todo mundo por ali, aquele burburinho imenso, e começamos os trabalhos.
Pra quem não sabe a primeira coisa que acontece numa sessão é o sorteio dos sete jurados que comporão o que se chama de Conselho de Sentença (aqueles que, no fim, votam “sim” ou “não" para dizer se o réu é culpado ou inocente). Pois parecia bingo. Cada um torcendo pra ser sorteado. E, quando saía um nome, a pessoa era aplaudida como se tivesse ganhado uma rifa!
Formado o conselho de sentença pelos sete sorteados, tomado o compromisso, foi lida a denúncia e a minha decisão que determinou pela realização do júri.
Confesso que foi emocionante! Lembro, ainda, de cada detalhe!
… inclusive de um, que quase passou despercebido…:
Onde, afinal, estava o réu?
(Continua…)
*“Cascos” são pequenas embarcações semelhantes a uma canoa, que pode ser movida a remos ou a um pequenino motor portátil acoplado na parte traseira, apelidado de “rabudinho”.
**Como o rio é diretamente influenciado pelas marés oceânicas, o povo daqui fala que a água “tá grande” quando a maré está alta, ou seja, quando o rio está cheio, e fala que a "água tá pequena” quando está raso.
*** “T.C.O. (abreviatura de “Termo Circunstanciado de Ocorrência) é o nome do expediente feito nas delegacias para casos de delitos de menor potencial ofensivo, em que o apontado agressor assume o compromisso de comparecer em juízo quando for chamado, e é liberado sem prisão em flagrante nem inquérito.
Por Luís Augusto Menna Barreto