Páginas

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

bora cronicar - O Gesto de Agnes

Bora Cronicar

O Gesto de Agnes

Quando eu morava no centro de Porto Alegre, num “kitnet", e trabalhava no Bamerindus (entre 1988 e 1995), havia uma livraria que eu ia todas as terças e quintas-feiras, na Rua da Praia, que, na verdade, chama-se Rua dos Andradas (mas que já foi Rua da Praia, foi)!
Depois que eu fui promovido a “chefe dos caixas” aos 21 anos de idade, eu tinha uma hora pra almoçar. Daí, eu saía como um foguete do banco, no horário de almoço, corria para um restaurante que parecia uma lancheria, e devorava um almoço tipo “prato feito”, no balcão mesmo! Toda essa operação, acreditem, levava menos de 10 minutos! Daí, eu tinha 50 minutos todos meus pra fazer duas coisas que eu adorava: ir no fliperama e ir na livraria!
Havia um fliperama um pouco mais acima, na mesma rua da minha agência, a Rua Vigário José Ignácio. Eu jogava em uma máquina de pimball que se chamava “Vortex”. E eu era tão bom na coisa, que eu comprava apenas uma ficha e, às vezes, tinha de abandonar a partida, porque acabava meu horário de almoço e eu ainda não havia perdido as 5 bolas. Depois vieram umas máquinas mais modernas com apenas 3 bolas, mas a “Vortex" tinha 5! Eu ia no fliperama nas segundas, quartas e sextas-feiras. Terças e quintas-feiras, eu ia na livraria.
Eu li alguns livros ali, em pé mesmo! Eu pegava um livro, ia para um canto e ficava lendo. Daí, quando terminava meu horário de almoço, eu dobrava a página do livro, e “escondia" em uma prateleira de livros que eu achava que nunca eram vendidos, e colocava atrás de outros. Daí eu decorava onde estava e, na próxima terça ou quinta-feira, eu o procurava e continuava a leitura. Tá, se fosse hoje, não precisaria decorar, bastaria tirar uma foto do local onde teria escondido e pronto. Mas naquele tempo, era tudo mais “artesanal”. Naquele tempo a gente decorava muita coisa. Até número de telefone a gente sabia. O número daquela menina linda que morava na Rua Tiradentes, eu sabia de cor e de trás pra frente! Era comum a gente saber vários números de telefone. Hoje, a gente às vezes não sabe o nosso próprio! Mas, enfim, eu ia dizendo que eu lia escondido na livraria. Algumas vezes, claro, eu ia procurar o livro e ele não estava lá. Isso me deixava furioso! Onde já se viu alguém tirar do lugar o livro que escondi? A vontade que eu tinha era de reclamar para o atendente. Mas a prudência mandava eu ficar quieto, procurar outro exemplar e tentar achar a página em que eu estava. Daí, eu ia lá pro meu canto e continuava a leitura. Em pé. Naquele tempo, as livrarias não eram como hoje, com cafés, lugar pra sentar, e todo um ambiente convidativo. Eram corredores, prateleiras e livros.
Pois foi nessa pequena livraria da rua da praia que eu li meu primeiro Milan Kundera que naquela década, chegou a ser cogitado para Nobel de literatura com o clássico “A Insustentável Leveza do Ser”. Na verdade, eu achava quase insustentável ler Milan Kundera. Era uma leitura densa. E ele era monótono. Nos livros dele não acontecia muita coisa. A maior parte do tempo, ele descrevia por páginas e páginas alguma situação que se passava em segundos. Mas por algum motivo, eu simplesmente não conseguia parar de ler Milan Kundera. Agora que percebo que vai ver o tal era bom mesmo!
Enfim, mas não foi a "Insustentável Leveza do Ser" que me conquistou. Foi outro: "A Imortalidade"! Nesse livro, Kundera alterna a vida contemporânea com um inusitado encontro de Hemingway e Goethe no céu! Isso me encantava! Imagina um escritor com talento para falar de Agnes, em Paris, ao mesmo tempo em que falava de Hemingway e Goethe no céu! Ah, sim, Agnes era a protagonista terrena e profana de seu romance! Eu fiquei apaixonado por esse livro. Mas não o tenho, porque eu li na livraria e por lá ele ficou! Mas eu gostei tanto, mas tanto, que decorei a frase mais bonita, perdida no meio do primeiro terço da história: “A verdadeira vocação da poesia não é nos deslumbrar com a descoberta de uma idéia surpreendente, mas sim, fazer com que um instante do ser se torne inesquecível e digno de uma insustentável nostalgia!” 
Eu li isso apenas uma vez na minha vida há mais de 25 anos atrás e jamais esqueci. Tenho certeza que a frase é exatamente esta sem jamais a ter lido novamente. Acho que foi essa frase que me fez aguentar o resto do livro. Porque em um determinado momento, Milan Kundera conseguiu a proeza de usar duas páginas inteiras e um pedaço de uma terceira, para descrever um gesto da Agnes. Isso: um, unzinho, um mínimo e solitário gesto que Agnes fazia com a mão! Mais de duas páginas! Mas aquela frase que citei, far-me-ia aguentar 10 páginas de gestos se fosse preciso. Aquela frase, valeu o livro!
Eu jamais imaginei que algum escritor pudesse levar mais de um parágrafo para descrever um gesto. Quer ver? Pois vou descrever em poucas palavras, um gesto que fiz quando estava olhando a revista da National Geographic que eu assino (revista física, que a gente tem que pegar no colo e folhear). Usarei poucas linhas e você, atento leitor, saberá de que gesto trata, sem eu precisar gastar duas páginas. Lá vai:
Na página 19 da edição de janeiro de 2019, na reportagem “Elegia a um leão”, há a fotografia do leão “C-Boy” (esse é o nome dele), um dos mais longevos e queridos leões que se tem notícia, falecido recentemente. Eu achei seu olhar triste, e quis ver de perto. Então, coloquei a revista na mesa, coloquei meu polegar unido com o indicador em cima da figura, bem onde eu queria ver melhor e comecei a afastá-los… 
Preciso dizer mais alguma coisa?

Luís Augusto Menna Barreto

19.2.2019

18 comentários:

  1. Você disse tudo!!
    O que me prende de uma tal forma,Menna, é essa riqueza de detalhes dos teus escritos...Nos leva para dentro do texto,em algumas vezes,chego a sentir-me a própria personagem... São textos gostosos de se lerem...E quanto ao gesto do indicador com o polegar... Hahaha...E aí,qual a sensação quando se deu conta que a revista era física??

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Mil obrigados, Michele....!!!!

      ... mas que atire a primeira pedra, quem nunca fez isso🤦🏻‍♂️🤣!!! A primeira reação foi olhar para os lados pra ver se tinha alguém vendo....!!!🤣😂

      Excluir
  2. Bons tempos hein? !
    Não é à toa que hoje tens histórias pra contar. E ricas de detalhes.O melhor é que sabes contar muito bem. Cronicar diário revelou de vez O Cronista. Muito bom!!! 🌹

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Sílvia... fico sem saber o que dizer...
      Estou adorando a experiência... acho que me imagino na redação de um jornal, TENDO de escrever para preencher a coluna diária...! Está sendo incrível isso!
      E, com tema "livre" como me propus, fica sempre simples de achar algo pra comentar, e fazer a gente tomar um café da manhã a cronicar com amigos!!

      Excluir
  3. Imaginando aqui a cena do senhor querendo aumentar a imagem rsrsrs, suas crônicas prende qualquer atenção e desperta a vontade de querer cada vez mais ler, sua sensibilidade é notada nas palavras que escreve. Que Deus continue te abençoando com esse dom maravilhoso da escrita.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ah... acho que Deus dá-me muitos presentes... como esse, de receber tanto carinho e gentileza de volta...!

      Mas, cá entre nós: nunca te pegaste tentando dar zoom numa revista??

      Excluir
  4. Ler é viajar sem sair do lugar, gosto de ler, mas principalmente, de entender o que leio. Quem lê, é um ser rico, admiro quem aproveita cada momento para "enriquecer"👍👍👍 ah, qto ao gesto com os dedos, fiquei imaginando vc verificar se não tinha ninguém olhando kkkkkkkkkkkk

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. É cada uma né...??? Mas que acuse de cabeça erguida, aquele que nunca tentou dar zoon no jornal ou revista! Outro dia vi uma senhora tentando dar zoon no rótulo de lata de leite em pó no supermercado!!!!

      Bora enriquecer de leitura, amiga Nice!!!

      Excluir
  5. Rindo aqui (com respeito) da senhorinha dando zoom na lata de leite em pó...😀

    ( Tá bom,eu confesso,dei zoom uma vez em uma imagem no livro didático,a sorte é que as criancinhas nem perceberam🤦)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Vem sentar com a gente no banco dos réus....
      (Ainda não achamos ninguém pra julgar...!!!😂😁😅

      Excluir
  6. Se há algo sobre o qual não tenho nenhuma dúvida é que você, Luís Augusto Menna Barreto, é um excelente cronista. Seja lá por qual corrente das divergências teóricas eu me pautar, vou sempre chegar à mesma conclusão.

    É que na, Teoria da Literatura, os caminhos se bipartem, quando da definição do gênero da CRÔNICA: é um texto literário ou um texto jornalístico? Não há dúvida sobre a sua SUPERESTRUTURA: é um texto NARRATIVO. Disso não há quem divirja. Entretanto, quando se fala em crônica como um dos gêneros literários, a grita começa. E o mesmo acontece, quando se diz que a crônica é uma obra jornalística.

    Pois, no meu parco entender, a crônica pode ser uma coisa, OU ser outra. E mais: ela pode ser, também, ao mesmo tempo, uma coisa E outra. Porém, isso é no meu entender. Um entendimentozinho de merda que não vale nada. Mas que eu acho isso, acho.

    Vejamos, por exemplo, as suas crônicas, Menna Barreto! Aquelas do Marajó, do Pilha, do Kadu e talvez outras similares. Elas são predominantemente construídas em cima de pilares subjetivos. Por isso, não tenho o menor temor em classificá-las como textos literários. Elas são retalhos da realidade, costurados com as linhas da ficção. Ou então, são totalmente fatos fictícios costurados com fios da realidade. E ainda: as lacunas das narrativas, tanto em um tipo como no outro, quando aparecem, são artisticamente, sem qualquer temor, preenchidas com “tiradas” da ficção.

    Já as últimas crônicas de sua autoria que li, como a do WhatsApp, a da Fila, a do Bombril e outras mais, eu as classificaria como textos literário-jornalísticos. E não vai aí nenhum julgamento de valor. Simplesmente tal classificação se pauta em eu ter notado que você, como autor, comandante de sua obra, nestas novas crônicas, resolveu experimentar novas construções textuais que tivessem uma baixa do componente subjetivo, em função da sustentação de conclusões sociológicas advindas de observações pragmáticas do cotidiano. Isso é um propósito válido. E diga-se de passagem, você pôs em prática com extrema competência.

    Agora, quando digo que não há em minha análise qualquer julgamento de valor, é a pura verdade. No entanto tal afirmação não me impede de dizer que gosto mais das suas crônicas, cuja a ficção impera. Aquelas em que você inventa gentes e nomes, troca os cenários, burla a cronologia, mente a “mentira” da imaginação, para fazer o leitor, ou você próprio, rir, ou chorar, ou ter raiva, ou revoltar-se...

    Só que me sinto na obrigação de esclarecer que essa minha preferência tem mais a ver com os meus pendores, minhas tendências, minhas “manias” do que com o valor da sua obra. Você bem sabe que eu sou chegada à “trapaça” literária, à invenção de realidades fictícias, à “mentira” da arte.

    Isso é doideira? Talvez.

    Contudo, não se apoquente, viu? Você continua a ser o meu cronista predileto.

    Grande beijo em sua careca!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Barbaridade... adorei TUDO que li!!!
      E penso que CONCORDO com tudo.
      O projeto 'bora cronicar' é exatamente isso, essa outra vertente, que, pra mim, é mais fácil e ágil e me permite conseguir escrever uma crônica por dia, justamente como se fosse uma coluna de jornal.
      As deliciosas Crônicas de Marajó City, o Pilha, o Kadu, estes são textos que sempre exigem mais de mim, e dependem, muito, de acontecimentos específicos, onde coloco o olhar, seja de marajoara (nas primeiras), seja de criança (nos últimos)...
      Eu sinto muita satisfação quando finalizo um texto de Marajó City, Pilha ou Kadu... Mas esses, eu não consigo desenvolver um por dia...
      De forma alguma, eu os vou abandonar. Mas estes, ficarão para serem construídos nos finais de semana!
      Marajó City, ainda é minha paixão literária, é onde posso soltar um pouquiiiiiiinho do meu "realismo fantástico" (que me perdoe Garcia Marquez!!!)

      Excluir
  7. Caramba!!!!!

    Queria saber fazer um "comentário de merda" desses da escritora Ana Isabel...
    (Perdão Dr!! Saiu... Foi mais forte... Eu precisava.)

    Um senhor comentário!
    (Melhor essa palavra...)
    Concordo. Concordo. Concordo.

    E já tinha entendido esse papel informativo dos textos dessa fase do cronista e deste blog. Como no "papel sociológico da fila"... Contudo, não tenho essa competência de Ana Isabel para escrever...

    E como faz com tranquilidade essas crônicas hein?!

    Só admiração, sempre!!
    Os dois. Por este espaço.

    Até!!🌹

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Guria!!!! E não é?!!!
      É uma mulher desses ainda se aposenta???
      Ainda bem que pelo que passarinhos estão contando, vem novo livro por aí......!!!!

      Excluir

Bem vindo! Comente, incentive o blogue!