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quinta-feira, 21 de março de 2019

bora cronicar - O Velho e o Garrincha - parte 1

Bora Cronicar

O Velho e o Garrincha - parte 1

Ele nunca soube o que tinha havido com o Garrincha. Ele conheceu o Garrincha no parque. Garrincha apareceu do nada, mancando, com uma das patas dianteiras tortas. Ele estava sentado no mesmo banco em que sentava todos os dias. Ele acordava cedo, mas custava a levantar-se, e, então, ia devagar até a lancheria do ponto de ônibus. Na verdade, apenas uma porta menor que uma garagem de carro, um balcão e duas mesas plásticas, já na calçada. Ele chegava por volta de 10h30, e assim que a sopa ficava pronta perto de 11h, ele tomava a sopa. Depois, ficava quase até meio dia, comprava um pequeno saco com amendoins caramelados e saía devagar, até o parque, onde sentava invariavelmente no mesmo banco à sombra. Olhava as pessoas passarem, os carros pararem no sinal e serem abordados por garotos pedindo moedas ou tentando lavar os vidros dos carros. Ele gostava quando chegava algum malabarista para exibir sua arte no sinal em troca de algumas moedas. 
Foi num dia em que olhava o malabarista, já cansado, que ele ouvira o barulho de gritos de crianças, e vira o Garrincha vir correndo, com o que lhe restava de rabo entre as pernas. Era uma corrida angustiada, porque mal tocava com uma das patas dianteiras no chão. Viu alguns garotos correrem com algo na mão e pararam quando Garrincha passou por ele, e ele encarou as crianças com ar de reprovação. Depois, foi ver onde o Garrincha fora e não achou. O olhar assustado do cachorro de alguma forma comoveu-lhe. Resolveu deixar alguns amendoins na grama ao lado do banco, antes de levantar-se e voltar para a pequena peça que alugava, onde passaria o resto da tarde ouvindo o antigo rádio de pilhas que sintonizava apenas as freqüências “AM”. 
No dia seguinte, cumprindo a mesma rotina, teve a impressão de ter visto Garrincha por entre as tantas pernas das pessoas paradas no ponto de ônibus. Naquele dia, no caminho até o parque, olhou várias vezes para trás. Nada tirava-lhe a impressão de que vira Garrincha. Sentou-se, mas o dia não foi como os outros. Havia uma espécie de angústia, uma ansiedade, ao menos. Demorou-se um pouco mais do que o costume no banco do parque e, novamente, não comeu todo o amendoim, tendo deixado alguns na grama ao lado do banco. À noite, ainda com o rádio ligado, lembrou-se da única vez em que havia sentido algo parecido. Fora há mais de sessenta anos, ainda criança. Naquele tempo, mesmo durante o intervalo de recreio ele nunca saía da sala de aula. E um dia, Júlia foi até ele pedir um apontador emprestado. Em silêncio, ele pegou o apontador e emprestou para Júlia. Ela apontou o lápis, e, quando devolveu, ofereceu-lhe alguns amendoins caramelados. 
Depois daquele dia, e até o final daquele ano, todos os dias ele sentia uma angústia parecida. Chegou a pensar em quebrar a ponta do lápis da Júlia algumas vezes, mas jamais o fez. Seria difícil demais pra ele, naquela época. Foi o primeiro ano que não queria que as férias chegassem. Foram as férias mais demoradas que jamais houveram. E, quando as aulas recomeçaram, Júlia não estava mais na turma. E tudo voltou a ser como antes. Cinza. Vazio. 
Lembrando daquele tempo, durante a noite, teve a impressão de ouvir algum barulho em sua porta, mas não foi ver o que era. Quando saiu da peça onde morava, achou que o pano que coloca em frente à porta, estava enrolado. Olhou para a entrada da pequena vila e teve a impressão de ter visto Garrincha. 
Cumprida sua rotina até o almoço, depois de tomar o prato de sopa diário, ele comprou dois sacos de amendoim, fazendo as contas sobre qual dos remédios ele poderia adiar a compra, para cometer aquela extravagância de comprar dois sacos de amendoim no mesmo dia. Sentou-se no mesmo banco e teve a certeza: era Garrincha olhando-o ao longe, por trás do caramanchão. Ele nem notou as horas passarem. Atrasou-se novamente em sua rotina, mas, afinal, qual seria seu compromisso, senão ir para casa e ligar o rádio?
Deixou amendoins na grama e, ao chegar em casa, deixou mais alguns no pano da entrada da peça onde morava. Quando foi no banheiro, olhou-se no pequeno espelho pendurado na parede acima da pia e estranhou suas próprias feições… seu rosto estava diferente e quase não se reconheceu: descobriu-se sorrindo, como já nem imaginava que saberia fazer. E, de algum lugar ingênuo e puro, ainda, do seu coração, ele falou a si mesmo: “seu velho, safado… você está namorando!”  
E enquanto um velho deitava-se redescobrindo como sorrir, um cachorro aleijado acomodava-se em um pano sujo posto à porta…

Luís Augusto Menna Barreto

21.3.2019

10 comentários:

  1. Emocionante!! Fiquei ansiosa para o desenrolar da história 💓
    O Garrincha de alguma forma me cativou!! Gostei dele...Gostei sim!!

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    1. Acho que eu fui cativado assim que eu o vi... correndo mancando... com a patinha dura, estendida pra frente sem quase encosta-la no chão... o resto de rabo entre as pernas e olhar aflito... Um sobrevivente, que foi maltratado pela vida...
      ... ele não sabe se pode confiar em quem anda apenas sobre duas patas... foram os que mais o machucaram até hoje...

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  2. Um pouco triste esse início, essa rotina sem colorido nenhum, mas com a possibilidade de mudar com a chegada tímida de um serzinho, que o fez recordar da angústia que sentira no passado, sem saber que a mesma se chamaria AMOR..... Lindo!

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    1. O velho nem mesmo se lembrava de como era sorrir... estranhou-se... e agora, depois de tantos anos, vê-se aflito, ansioso... fica olhando para os cantos e querendo ver se avista o focinho comprido e aquele olhar tão arisco do Garrincha...
      ... às vezes, não é um perfume ou uma musica... às vezes, é um sentimento que nos traz uma lembrança...
      Obrigado, Nice!!!

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  3. Amigo, é muito triste viver sozinho. A solidão maltrata a alma e destroça o coração. Portanto ter algum motivo pra sentir ausência cria uma expectativa de que amanhã ao te encontrar tudo será diferente e eu serei mais feliz.

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    1. Acho que é isso mesmo, amigão... acho que o Garrincha pode representar muito na vida do velho... e talvez, para o Garrincha, o velho represente uma esperança...!
      Super obrigado!

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  4. Muito emocionante esta crônica. Como estes amiguinhos de quatro patas marcam nossa bida não é verdade Menna?!!!

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    1. Demais, Sônia... eu ainda lembro do primeiro cachorro que tive, o Mickey... Um collie muito alegre... eu tinha 5 anos quando o pai chegou com ele, todo pequenininho em casa... foi maravilhoso...!

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  5. Que linda crônica, a primeira impressão que temos é que o senhor solitário salvou o Garrincha, mas, na verdade foi o Garrincha que salvou aquele homem, livrou-o da tristeza e da solidão...

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    1. Ah!, Tel, que bonita tua interpretação!!!
      Eu fico muito feliz que tenhas gostado... a intenção é que seja uma história de amor!
      Amanhã, a parte 2!!

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