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domingo, 24 de março de 2019

bora cronicar - O Velho e o Garrincha - parte 3

Bora Cronicar

O Velho e o Garrincha - parte 3

Não houve o que fizesse Garrincha usar a coleira que o velho ganhou do vizinho que trabalhava na construção civil. O velho até tentou, mas jamais conseguira. De alguma forma, Garrincha sempre evitava. Na única vez que ele conseguiu colocar a coleira no Garrincha, ele espichou seu pescoço fino e, deitado, empurrando com a pata boa, conseguiu tirar a coleira. 
Depois, mordeu-a forte, olhando para o velho, e largou-a aos pés da muleta. Desde então, o velho nunca mais tentou colocar a coleira no Garricha. Com o tempo, o Garrincha passou a dormir dentro de casa. Primeiro, ele colocou o pano pelo lado de dentro da porta. Mas, depois de alguns dias, em uma noite que o velho acordou por ouvir barulho de tiros na rua (o que não era tão incomum, levando em conta o local em que morava), notou um calor ao seu lado. Era o Garrincha. Encostado justamente em sua perna ruim. Parecia não se importar, e estava tão bem acomodado, e dormia um sono tão tranquilo, que o velho sequer ousou acorda-lo.
O Garrincha, enfim, mudou a rotina. E, de alguma forma, alterou as despesas, já tão apertadas. Era preciso comprar algo para que também o Garrincha comesse. E talvez o Garrincha não conseguisse acostumar-se com apenas uma refeição por dia e, às vezes, um pedaço de pão puro à noite. Optou por dividir a sopa com o Garrincha, dividir o saco de amendoim, e comprar um cacho de bananas por semana. Dividiam uma banana todas as noites. Para isso, o velho teve de deixar de comprar um dos remédios. Justamente o que lhe ajudava a dormir. Com o tempo, descobriu que com Garrincha ao seu lado, dormia a noite toda, e não deu falta do medicamento. E era sorrindo que dividia a banana com o cachorro e, ao fim, era mais barato do que o remédio. Uma vez por mês, com a economia feita, dava-se ao luxo de comprar um saco de bolachas de água e sal, e, divida as bolachas de tal forma, que todos os dias passaram a acrescentar bolacha à sopa.
Passaram a ser vistos juntos, todos os dias, no parque. Assim que o velho sentava, pegava Garrincha e colocava-o também em cima do banco e logo sentia Garrincha descansar sua cabeça sobre a perna ruim. Às vezes, ouvindo gritos dos garotos, Garrincha assustava-se, e saía correndo. O velho ralhava com os garotos e preocupava-se porque perdia Garrincha de vista. O coração afligia-lhe, mas Garrincha sempre aparecia, quando os garotos afastavam-se. Ainda que agora fossem companheiros, Garrincha jamais perdera o olhar inquieto e arisco. 
Um dia, quando já a vida de ambos havia-se estabilizado com a nova rotina em que tinham um ao outro, depois que Garrincha acordou do sono da tarde no banco, junto à perna ruim do velho, ambos retomaram o caminho de casa. Mas na esquina do parque, esperando o sinal fechar para atravessar a rua, dois garotos vinham em uma bicicleta e, perdendo o controle, bateriam no velho. Garrincha jogou-se contra o pneu dianteiro, fazendo a bicicleta desviar-se e derrubando os garotos.
O velho virou-se assustado, pronto pra ralhar os garotos… mas viu Garrincha sob a bicicleta. O cachorro, assustado, tentava em desespero sair dali, mas ficou com uma pata traseira presa entre os aros da roda da bicicleta. Os garotos, assustados correram. O velho jogou a muleta de lado e sentou-se. Uma cena patética: o velho sentado, tentando soltar a perna do aflito Garrincha, e este grunhindo em um misto de desespero e raiva, ameaçava com mordidas. O velho tentou várias vezes, mas nem mesmo ele conseguia. Algumas pessoas juntaram-se próximas à cena, olhavam as mãos agora ensanguentadas do velho e alguns tentavam afastá-lo, das mordidas. Um policial próximo, instintivamente levou a mão à arma… 
E foi em meio a este cenário, com pessoas gritando, Garrincha latindo e grunhindo, debatendo-se, que surge uma mulher, com uma espécie de grosso pano enrolado nas mãos, colocou o pano por sobre o garrincha, que então não mais conseguiu morder, e segurou-o com firmeza, possibilitando ao velho, que soltasse a perna do cachorro. Decidida, pegou Garrincha, enrolado no pano e teve de esforçar-se para contê-lo, entre os uivos de dor e a tentativa de desvencilhar-se. O velho, com incomum agilidade, pegou a muleta e pôs-se de pé. Atônito, com as mãos sangrando, apenas seguiu a mulher. O velho tentou chama-la uma ou duas vezes, mas desistiu, duvidando da própria voz, achando que sabia falar apenas com Garrincha. Sentia as mãos arderem, e foi deixando um rastro de sangue que lhe caía das mãos. Seguiu a mulher que se virou sem falar nada, por duas ou três vezes, para ver se ele ainda a acompanhava. Tinha talvez, entre 30 e 35 anos. Movia-se rapidamente e o velho esforçou-se alem do comum para segui-la de longe pelos dois quarteirões que ela o fez percorrer. Até que, finalmente, ela entrou em uma vila, não muito diferente da que o velho morava. 
Chegando ao portão da vila, viu que a única porta aberta era da última casa ao fundo e dirigiu-se para lá. Chegando, nada viu além de móveis simples, mas notou tudo limpo e também notou que havia uma geladeira e pelo menos um quarto e um banheiro além da pequena sala com cozinha, onde uma segunda porta aberta dava para uma espécie de minúsculo quintal. Ouvindo os uivos do Garrincha, resolveu atravessar a pequena residência e deparou-se com duas mulheres: a que pegou garrincha e uma senhora talvez de sua idade, segurando Garrincha em um pequeno tanque de lavar roupas. Apenas a senhora falava, enquanto a mulher mais nova seguia as instruções. Estavam lavando um corte na perna do animal, mantendo-o, ainda firme, por entre o pano. O velho olhava com angústia.
Depois de algum tempo, a mulher silenciosa entrou na casa e voltou com uma caixa de papelão com um pano velho dentro. E depositaram Garrincha na caixa. Este tentou sair, mas simplesmente não conseguiu. Com a pata aleijada e uma das traseiras sem conseguir apoiar no chão, acuou-se, sem tirar os olhos nervosos de todos, prontos para disparar mordidas em quem se aproximasse.
Então, finalmente, a velha senhora olhou para aquele velho de muleta, rosto atônito e mãos sangrando que lhe sujavam o piso limpo, e falou:
— Ele vai ficar bem. Não quebrou a pata, mas talvez fique alguns dias sem conseguir caminhar. Esta é minha filha Beatriz. Ela é muda. — Beatriz abanou para o velho. — Agora, vamos dar um jeito nestas suas mãos, Clarêncio. 
O velho desequilibrou-se na muleta, como quem perde subitamente as forças. Quase nem lembrava de seu nome. As raras pessoas que falavam com ele, chamavam-no simplesmente de velho. Nem lembra há quantos anos não ouvia o som de seu nome.
A senhora sorriu… e completou:
— Você não lembra de mim? Eu sou a Júlia.

Luís Augusto Menna Barreto

25.3.2019

18 comentários:

  1. Bom dia poeta, quem será Julia ??? Aconteceu um fato desagradável para trazer de volta Júlia para vida do Clarencio, já diz o dito popular" há males que vem para um bem"....espero que o reencontro com Júlia seja transformador e bom para a vida de todos eles....e que o Garrincha se recupere totalmente...

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    1. Olá Tel!!!! Júlia é a menina que um dia, sessenta anos atrás, pediu a ele o apontador!
      (O Velho e o Garrincha - parte 1)!!!!!

      Amanhã (terça-feira) a parte final!
      Super obrigado, Tel!!!!

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    2. A menina dos amendoins caramelados, como pude esquecer esse detalhe tão importante na vida dele,...que bom que ele a reencontrou, perdoe minha fallha....

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    3. Essa mesma, Tel....!
      E ela fechará este pequeno conto amanhã!!!

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  2. A julia voltou no momento exato!! Será destino? E a partir desse momento onde ficou Julia?Fiquei cheia de questionamentos Poeta!!

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    1. Eu não sou tão narrativo... acho que por isso, escrevo histórias curtas...! Gosto de contos com lacunas, para serem preenchidas pelos leitores.... .... mas amanhã, com a parte final, muita coisa será respondida..!!!!!
      Obrigado, Michele!!!!

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  3. Como diz o ditado popular, "até as pedras se encontram" olha aí a volta de um amor dos tempos de escola, que maravilha. Outra vez, minha crença no destino, se reforça. Que lindo o desenvolvimento dessa amizade, onde um faz tão bem ao outro. Perfeito, amei.

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    1. E eu amei esse teu comentário tão carregado de carinho!!!
      O destino, esse incompreendido.... a Mão de Deus que tanto cuida nossos caminhos!!!
      Obrigado, Nice!!!!

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  4. Ah!, que lindo encontro!!!! Apesar de ser em um momento de dor física...houve a cura de uma dor emocional...a saudade que o Clarêncio sofreu por tanto tempo!
    Como disse a Nice: que destino danado...!
    E...novamente a DEUSCIDÊNCIA aconteceu!!!!

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    1. Adooooooooro esse teu “neologismo”!!!
      Com tua permissão, vou passar para meu vocabulário: “DEUSCIDÊNCIA”!!!!
      Obrigado, Armelinda!!!!

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  5. Méri, isso não é uma crônica. Isso é um conto.

    E é um conto LIIINNDOOO!!! LINDO, LINDO, MESMO.

    Hoje não quero falar nem de teoria nem de técnica literária. Quero falar de conteúdo.

    Quero enfatizar o fato de Garrincha não aceitar a coleira. Quão metafórico é isso! E que metáfora forte!

    É verdade, alguns "BICHOS" não aceitam coleira. Eu sou um deles.

    Outro aspecto bem metafórico: o "BICHO" ferido esbraveja e morde. Ele não "desmaia", ele "vira fera".

    Valeu, escritor!

    PARABÉNS e um grande abraço!

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    1. Uau!!!!!! 😍
      Super obrigado!!!! Imaginei Garrincha como um ser que a vida ficou o tempo todo ensinando que teria de virar-se sozinho... não aprendeu e nem teve chance de “ser coitado”! Tem a valentia do sobrevivente...!

      Quanto à coleira era quase um recado, quando a tirou e colocou aos pés da muleta: “eu não ficarei porque sou obrigado! Ficarei o quanto me fizeres gostar de ti”!
      De fato.... quando comecei, era pra ser só uma crônica... mas perdi a mão! Está um pequeno conto! Amanhã, o primeiro final!!!
      Obrigado, escritora!!!!!!!!!

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  6. Oi amigão. Tudo nesta vida têm passagens que embaralham a nossa jornada. Hoje um fato presente com ligações passadas e o que trará para o futuro? Vamos esperar pra saber. Uma coisa é certa quem planta colhe na razão direta do que plantou, agora quem plantou manga jamais colherá açaí.

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    1. .... mas sempre tema esperança de que quem tenha plantado o açaí, compartilhe com a gente, e queira um pouco da nossa manga!!!
      Não é isso, amigão?!!!!!

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  7. Ahhhh meu amigo tu mexes com o nosso coração com estas crônicas. Dizem que cães e gatos curam seus donos. São como filhos. O que será que vira de bom para Clarencio e Garrincha?? 🤔 No aguardo das novidades!

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    1. Eu diria ainda que o AMOR cura seus donos!

      Amanhã, o primeiro final desta história, amiga Sônia!!!!

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  8. Que lindo esse amor, como a vida eh em.... Ahhh Garrincha quem diria que iria trazer tantas coisas boas na vida do velho. O amor cura, trasforma vidas também e velho ou seja Clarêncio saiu da solidão seu amigo 🐕 achou a Julia 😍 ohhhh vira um filme na mente ao ler te. Parabéns poeta emocionando todos sempre com suas crônicas 👏👏👏👏😊☺

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    1. Nem sei o que dizer. Estou realmente feliz demais com teu comentário!
      Eu espero que gostes da parte final, amanhã!!
      Super obrigado, guria!!!!

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