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segunda-feira, 27 de maio de 2019

bora cronicar - O Mariposa, o Relege e o Mochila

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O Mariposa, o Relege e o Mochila

Bem, como vocês sabem, o acidente entre o Mariposa com sua motoca nova e a ambulância, deu o que falar na cidade! Ainda mais com a briga do Mariposa, sentando no chão, sem conseguir levantar, puxando a maca pra fora da ambulância para tentar entrar e o Relege, na ambulância, puxando a maca pra dentro, para tentar sair!
Depois de algum tempo, começou a juntar gente, claro! Não sei exatamente como foi, mas há quem diga que pela manhã, ainda estavam os dois por lá, agarrados cada um na ponta da maca, sem nenhum dos dois largar. Pelo que contaram, os enfermeiros, cansados da briga, foram embora e deixaram os dois ali mesmo. O navio partiu sem esperar. E o Manobra, motorista da ambulância? Ah!, quando chegou a polícia (todo o efetivo da cidade foi movimentado, ou seja, os dois policiais), encontraram o Manobra porre… mas lá no açougue do Retalho. Daí, que não souberam dizer se no momento do acidente o Manobra estava bebido ou não. Mas quando o encontraram, estava.
Alguns pensam que o Manobra foi muito esperto. Uma vez envolvido no acidente, teria corrido para o açougue do Retalho para beber e então a polícia não poderia afirmar que no momento do acidente estaria alcoolizado. Uma jogada de mestre. Eu, em vez disso, penso que o manobra foi, simplesmente… o Manobra! Enquanto esperaria a situação resolver-se, resolveu ele ir tomar uma! 
Mas, enfim, dizem que entre os dois envolvidos, Mariposa e Relege, o caso só teve solução quando chegaram a Pequena e a Leididai, as respectivas companheiras. Não que elas tivessem acalmado os ânimos de alguém, mas, antes, porque começaram logo a brigar e os dois esqueceram a maca e começaram a apostar em quem venceria a briga! Graças à Deus, chegou a polícia e o Tonelada, com um grito só, pôs ordem em tudo!
O fato é que desde que eu havia chegado na cidade, há mais de um ano, foi a primeira vez que um acidente de trânsito chegou até o fórum! Eu até estranhei e achei que a Tutela, que faz a distribuição dos processos, havia errado na autuação, mas quando li o caso, lembrei logo do evento, porque por alguns dias, era só o que se falava na cidade. No meu primeiro almoço no bar do Seu Nonô eu soube de tudo o que se poderia saber, inclusive, que a batida mesmo, ninguém viu, à exceção de um tal Mochila! Os dois enfermeiros estavam atrás na ambulância com o Relege e não viram nada; o Mariposa afirma que não lembra nada, mas jura que estava devagar, dobrou de forma correta na saída do trapiche e estava de capacete que teria rolado até o rio com a batida, e afundado pra sempre. O Manobra… bem, o Manobra é o Manobra, não lembra nem onde coloca a chave da ambulância, motivo pelo qual, raras são as remoções de enfermos nos duzentos metros que separam o trapiche do hospital!
Mas havia uma testemunha: o tal Mochila!
Disseram que o Mochila tinha visto tudo. Estava arrolado como testemunha tanto pelo Mariposa como pelo Município, que respondia pela responsabilidade da batida com a ambulância!
Mas havia algo peculiar: nenhum dos dois colocou o endereço, mas ambos disseram que devido ao “problema" (eles que colocaram entre aspas) do Mochila, a audiência para ouvi-lo somente poderia ser na “casa” (também colocaram aspas) dele. 
Apesar de um ano em Marajó City, eu ainda não entendia todas as peculiaridades e, a cada dia, eu ainda era surpreendido. Porém, tendo visto aquele requerimento peculiar, eu não estranhei: há muitos processos de interdição em que os interditados não tem como ir até o fórum, porque simplesmente é impossível retirá-los de casa; seja porque estão ligados a algum aparelho que lhes mantem precariamente vivos, seja porque não tem qualquer condição de locomoção e as famílias não tem nenhuma forma de levá-los ao fórum. 
Daí, que no dia da audiência, antes de começar, chamei o Goela:
— Goela, sabes onde encontrar esse tal Mochila? A casa dele?
— Olha doutor, onde encontrar eu sei!
— É longe?
— Pertinho, doutor!
Ótimo! 
Na hora da audiência, presente a advogada do Município e o Mariposa, ouvi os dois, não houve acordo, e precisava ouvir a testemunha. Daí, que falei pra todos:
— Vamos até a casa da testemunha. Goeeeeeeeeeeeela!
Veio o Goela, e saímos todos.
Mal saímos do fórum, entramos na praça e o Goela parou no coreto. Havia um homem com apenas um dente, na boca, na parte de baixo, e com um saco de pano com uns cordões, usando-o como se fosse uma mochila. O Goela falou alguma coisa com o sujeito e disse:
— Taí, doutor, esse é o Mochila.
Eu não esperava por aquilo, porque no rol de testemunhas estava escrito que a testemunha “não tinha condições” de comparecer à audiência, e aquele sujeito, apesar de parecer um mendigo, aparentava perfeita saúde (à exceção da saúde bucal, obviamente)!
Arrisquei:
— O senhor que é o Ariovaldo Santana Alves?
— Quem?
— Ariovaldo Sant…
O Goela cochichou no meu ouvido, e entendi. Reformulei:
— O senhor que é o Mochila?
— Sim senhor.
— Estou vendo que o senhor está muito bem. Podemos ir no fórum?
O sujeito fechou o semblante. E ficou claramente constrangido. Balançou a cabeça negativamente. Veio o Goela de novo, cochichando:
— É melhor da casa dele, doutor.
Bem, considerando que o Goela havia dito que era perto, e o Barganha estava carregando a máquina de escrever, perguntei:
— Podemos ir na sua casa, então?
Ah!, daí foi outra história. O caboclo recuperou a alegria e espontaneidade:
— Na hora, doutor!
Então, subiu no coreto, retirou a mochila das costas, pegou uma rede no estilo “garimpeira”, atou em uma ponta e outra do coreto com uma habilidade impressionante, deitou na rede e gritou pra mim: 
— Entre, doutor, a casa é sua!
— Hein?
O caso é que o Mochila mora na rua. Não entra em nenhum lugar fechado e carrega tudo o que tem em sua mochila: uma rede, uma frigideira, uma faca e um par de meias. “Casa" para ele, é onde ata sua rede e, como ele estava perto do coreto da praça, ali foi sua casa! 
Eu não faria a audiência na praça! Tentei de tudo quanto foi jeito convencer o Mochila a entrar no fórum! Não teve acordo. O Goela me falou que nem mesmo o Tonelada havia conseguido fazer o Mochila entrar na delegacia para depor no inquérito do acidente, e o Delegado mandou o Brédi Piti ir na praça colher o depoimento do Mochila. Mas eu não me renderia. Não faria a audiência na praça! 
E não fiz!
No fim das contas, julguei o caso a favor do Mariposa, e condenei o Município a indenizar os estragos na motocicleta! Quanto ao Manobra, não houve como demonstrar que havia bebido antes do acidente, embora ninguém tivesse dúvida que bebeu todas depois! Mas o que me convenceu em responsabilizar o Município pelo acidente, foi o depoimento do Mochila! Ele foi muito firme em referir que, no momento da colisão, a ambulância estava trafegando na contramão. 
Você deve estar-se perguntando como eu me baseei no depoimento do Mochila se não fiz a audiência na praça, não é? Ok, eu explico:
Como já referi em crônicas anteriores, e até mesmo já publiquei em fotos do fórum de Marajó City, de um lado do fórum fica a rua da beira e o rio, e de outro, um terreno vazio. Pois eu fiz a audiência com a janela aberta! O Mochila atou a rede nas árvores bem junto ao fórum, e dali, deitado no conforto da rede, em “sua casa”, foi colhido o seu depoimento. Pela janela! Eu dentro, ele fora!
Tudo resolvido.
Coisas de Marajó City!

Por Luís Augusto Menna Barreto

27.5.2019

12 comentários:

  1. Divertido demais, as peculiaridades desse Marajó, seus habitantes e suas esquisitices rsrsrs No final tudo dá certo, tipo essa audiência diferente, divididos por uma janela, juiz e testemunha, o doutor se adaptou direitinho né? Muito bom, crônica maravilhosa, como sempre

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    1. O Marajó é incrível, Nice!!! E até que foi divertido fazer a audiência pela janela! E o abusado do Mochila respondeu a toda as perguntas dedurado em sua rede, me chamando de “vizinho”!!!!

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    2. Folgado, ainda se fez íntimo. "Vizinho" é ótimo kkkkkkkkkkk

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  2. Hahaha

    Tive uma ótima ideia...Anotando aqui os apelidos diferentes do povo de Marajó City...Só pra me rir depois... Hahaha...
    Eita mas que confusão!!!Ainda bem que os casos sempre param nas mãos de um juíz competente como você...
    Foi massa a crônica!!!

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    1. Os apelidos são uma marca do Marajó!!! O Mochila não lembrava o próprio nome!!!
      Quanto a mim, nem sei se tão competente... mas sempre tentei adaptar-me à realidade local!!! O barato sempre é fazer dar certo!!!

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  3. Esse acidente deu muito "pano pra manga"!!! Essa moto haverá de ficar guardada por um tempo...rsrsrs
    Agora...a ideia do Mochila na rede e o Juiz na janela, foi demais!!!!! 😂😂😂😂
    👏👏👏👏👏👏

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    1. Na verdade a rede nem foi ideia minha!!! Mas o mala do Mochila, só se “sente em casa”, atando e deitando na sua rede!!!!!

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  4. Não consigo imaginar outro magistrado que não o senhor passando por uma situação deste porte. Por esse comportamento muito peculiar o senhor tem essas pérolas maravilhosas que são um deleite para os que gostam de ler. Se fosse para provar um prato saboroso de um grande chefe da gastronomia acho que não sentiria tanto prazer.

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    1. Lola, vindo de ti, sempre tenho que descontar o exagero oriundo da tua personalidade de interrotável gentileza... mas eu fico tri feliz!!!!

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  5. Gente você é fantástico, kkkkkkk eu imagino a cena. Só as aventuras do Marajó City mesmo. 👏👏👏👏

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    1. De fato... coisas que acontecem em Marajó City!!!!
      E pensa no Mochila, deitado na rede, me chamando de "vizinho", enquanto eu o interrogava pela janela!

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