As Bruxas de Gual Dídimo
Eu chorava quando via o Papai Noel.
Era frustrante para minha mãe. Lá por meus cinco, seis anos, perto do Natal, o pai levava todos nós para algumas compras e passear nas lojas no centro de Porto Alegre, num tempo em que não haviam shoppings. Então, íamos na Loja Renner e na Mesbla, uma em cada esquina, frente a frente na Rua Dr. Flores, ou no Hipo Incosul, também na Rua Dr. Flores, na esquina de baixo. Eram lojas que ocupavam prédios inteiros. Eu achava o máximo entrar no elevador, com ascensorista, e ouvir as palavras rápidas, decoradas: “2º andar, cama, mesa, banho… 3º andar, moda masculina, feminina e infantil… 4º andar, móveis, eletrodomésticos e restaurante…
Então, nessa época do ano, cada uma dessas lojas tinha o seu Papai Noel, que eu achava que ficava indo de uma para a outra. Eu meio que ficava com medo, só de olhar. A mana, não! Ela ia toda feliz falar com o Papai Noel, contava e o que queria, ganhava doces… Eu? Eu me agarrava no pescoço da mãe, berrando constrangedoramente, e a mãe, coitada, tinha de sair dali comigo; e com isso, eu ainda atrapalhava o barato da mana!
Mas hoje eu sei que aquele medo, aquele choro todo, era meu maior elogio ao Papai Noel! Eu sentia medo, porque eu acreditava. Eu realmente acreditava! E eu acreditava que, não tendo sido sempre bonzinho, não ganharia os brinquedos que tanto queria.
Na mesma medida em que fui aprendendo a desacreditar do Papai Noel, eu fui perdendo o medo.
Eu morria de medo do bicho-papão! Um dos piores terrores de minha infância, era acordar no meio da noite. A mana, que dividia o quarto comigo, dormia tri tranqüila, e eu ali, acordado! Eu tentava tapar a cabeça com o cobertor, mas ficava com medo que, então, o bicho-papão chegasse sem eu perceber e eu levaria um susto maior ainda. Então, com olhos arregalados, eu enchia os pulmões de ar, e lá ia:
— Mãããããããããeeee…
E, poucos segundo depois, aparecia a mãe ou o pai, com a paciência própria dos pais, para pegar-me no colo e levar-me para dormir com eles, entre eles, atrapalhando a todos. Quando a mãe estava mais cansada, ela mesma deitava um pouco na minha pequena cama, e fazia-me dormir novamente.
Bicho-papão foi real para mim… até que fui crescendo, e desacreditando… e perdendo o medo!
Eu nem sei mais, quando foi a última vez que eu senti este tipo de medo, mas sei que foi lá atrás, em algum momento entre o desenredar-me da infância e o descobrir-me adolescente…
Por tantas vezes, eu quis, novamente, encontrar dentro de mim aquele garoto com medo. Por tantas vezes quis reviver aqueles medos, falar com o guri assustado, descobri-lo, ainda em mim. Procuro por ele, e o espelho mostra-me cada dia mais distante, cada dia mais na direção errada. Mostra-me rugas, cabelos brancos, olhos cansados…
Então, na sexta-feira, dia 1º de novembro e no sábado, dia 2, aconteceu a mágica!
Eu estava ao lado do meu pequeno João. Estávamos no alto… e, pelo espaço de mais de uma hora, eu confesso que me perdi, perdi o tempo, e sequer sabia exatamente onde eu estava! Eu olhei para os olhinhos curiosos do João, ávidos de mundo, abertos às surpresas todas da vida, aberto a simplesmente deixar-se emocionar e vi espanto… vi sorrisos… vi sustos! Vi expressões que se somavam em uma velocidade de quem tem a pressa da vida inteira ainda… eu vi medo em seus olhinhos, alguns instantes! Então, de repente, eu olhei em minha volta, e havia uma multidão; espalhavam-se quase que amontoados em um imenso círculo e todos, absolutamente todos, comungavam das mesmas expressões do João! Eu vi sustos! Vi tensão, notei corações acelerados, mãos que se retorciam, alguns roíam os cantos dos dedos… outros pareciam querer gritar, querer avisar, mas pareciam enfeitiçados em um silêncio de quem venera, de quem está absorto, de quem está em êxtase, um transe coletivo…
… então, de repente, foi como se eu olhasse a mim mesmo e eu me senti, inarredavelmente, parte daquela comoção que a todos arrebatava. Eu me vi olhando lá pra baixo… e eu me descobri sentindo algo que há muito não sentia: eu me descobri sentindo, de novo, medo… Medo! Eu estava, de novo, ligado ao menino que chorava diante do Papai Noel, ao garoto que se escondia nas cobertas e gritava pela mãe, para que me socorresse do bicho-papão! Eu senti medo!
Lá de baixo, vinha uma energia como eu nunca havia visto em situação semelhante! Oito mulheres, lá embaixo, faziam emanar uma vibração que penetrava naquelas mais de duzentas pessoas em volta, elas gritavam, acusavam-se, ameaçavam-se, enfrentavam-se, temiam-se… Era como se elas estivessem, por magia, conduzindo a todos pelos mesmos caminhos em que estavam, pelas mesmas acusações, pelos mesmos temores… E eu senti medo!
Aquelas mulheres, não eram comuns: eram bruxas! E eu senti medo! Um medo real! E por aquela mais de uma hora, aquelas bruxas fizeram eu reencontrar o garoto que fui. Aquelas bruxas fizeram o feitiço de lembrar, experimentar e reviver meus medos e eu ser menino novamente!
…
Eu e meu pequeno João assistimos à peça na sexta-feira e foi impossível não voltarmos no sábado, arrependidos por não termos ido desde a quarta-feira e na quinta-feira!
A peça chama-se “As Bruxas de Salém”*. Escrita e dirigida por Gual Dídimo. Gual acertou em tudo: desde a eleição do elenco, ao iluminador; emprestou ao seu maravilhoso texto, a velocidade de um trem bala, sem nunca exigir pressa da platéia! Ave, Gual! Tão obrigado! Tão obrigado…
Obrigado Tainah Leite, Luana Oliveira, Layse Souza, Nathália Nancy, Rita Ribeiro, Mônica Moura, Kátia Menezes e Lohane Takeda!
Tainah exalava leveza na interpretação, quase flutuava, à vontade pelo palco. A veracidade que emprestava à personagem, nas variações de humor, quase assustavam, convencendo a platéia do seu poder!
Luana, de discreta participação no início, cresce muito além do seu tamanho e revela um talento e uma força de interpretação que não conseguimos compreender como tanto se agiganta!
Layse causou-me medo: olhos vidrados quando ela própria sentiu o medo da morte a assombrar-lhe e fez deste medo a energia com que furiosamente acusava!
Nathália carregou a grave responsabilidade de abrir o espetáculo em uma cena solo eminentemente corporal. Não havendo com quem dividir o peso, suportou sozinha e com louvor a pilastra sobre a qual os acontecimentos desencadearam-se!
Rita foi surpreendente. A voz macia e a placidez com que conduziu sua personagem, arrebatou a todos com o surpreendente desfecho!
Mônica parecia desafiar a si mesma. Emprestou sua frágil aparência à potência da personagem, estabelecendo o ideal contraste de quem impõe a autoridade pelo temor e não pela força!
Kátia foi além! Pontuava as cenas com o cinismo que a personagem exigia. Queria ver-se e ser vista sofrida, mas exigia que reconhecessem sua força. Segura do primeiro ao último momento em cena!
E, finalmente, Lohane, esteve soberba: teve a dificílima missão de destencionar o público em pinceladas de alívio com um humor que deveria ser percebido sem ser declarado, em meio à intensa dramaticidade do texto. E ela o fez com maestria!
Ofereço a vocês todo meu aplauso! Ofereço a vocês, o meu medo! Ofereço, o sorriso encantado do garoto que vocês, com o feitiço do palco, fizeram eu reencontrar.
Obrigado, bruxas... as bruxas de Gual Dídimo!
- - -
*As Bruxas de Salém, peça teatral com dramaturgia de Gual Dídimo, foi apresentada, em segunda temporada, no Teatro Experimental Waldemar Henrique em Belém do Pará, nos dias 30 e 31 de outubro e 1º e 2 de novembro, com casa lotada nos quatro dias e merecida ovação da platéia em cada uma das apresentações!
NÃO PERCAM UMA TERCEIRA TEMPORADA!
Luís Augusto Menna Barreto
7.11.2019