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domingo, 2 de fevereiro de 2020

Brechó de Almas - final (parte 4 de 4)

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Parte 4 de 4

— Esse barulho… eu já me acostumei com ele… É sempre a mesma coisa: o barulho da chave abrindo o portão. A batida brusca quando o portão tranca. Depois a voz com algum desespero e confusão… pedidos para destrancar, para voltar… e a resposta invariável: “hummm”. Agora é só esperar.. essa alma que acaba de entrar, ficará assustada, passará um bom tempo esperando os olhos acostumar-se à neblina, aguçará os ouvidos… ficará espiando-me até sentir-se segura… chegará perto devagar, e tentará começar uma conversa e perguntará:
"Ah!, que alívio encontrar outra alma aqui! Olá. Onde estou? Que lugar é esse?"
"É o Limbo."
"E o que eu faço aqui? Como funciona? Com quem tenho de falar para que me coloquem em um bom lugar?”
— É sempre assim. Então, eu explico sobre as duas portas, sobre a escolha da chave, sobre a mesa… e sobre o juiz. Eu já nem lembro há quanto tempo tenho feito isso.  Não sei se passaram alguns anos ou séculos. Ainda lembro a conversa com a alma condenada no dia que cheguei. Foi aquela alma que me explicou sobre a chave… sobre o juiz. Então, a alma condenada levantou-se decidida, e caminhou até a imensa e larga porta da condenação. Eu fiquei observando, de longe. Ela virou a chave, e assim que a porta foi aberta, ouvi a luta. Ouvi gritos horrendos. Vi a mão forte e decidida da alma puxando a porta por dentro para fecha-la e vi os horrores que o puxavam para dentro enquanto tentavam sair pela porta aberta! Eu corri para lá e comecei a empurrar a porta, para fecha-la. Ouvi os gritos de agonia da alma condenada, e mesmo eu empurrando com toda a minha força, a porta parecia cada vez mais abrir alguns centímetros. Então aconteceu: veio um clarão de luz. Gritos de agonia, e a porta finalmente cedeu. Eu a empurrei com toda a força, e então a porta fechou com um estrondo. O clarão diminuiu um pouco e eu vi o anjo, pairando acima, olhando para mim. Olhou alguns segundos… e li em seus olhos o que ele me dizia em tom severo:
"Cumpre teu destino.”
— Eu fui até a mesa do juiz. Com medo. Mas a mesa estava vazia. Não havia chaves. Não havia sequer cadeira. Procurei o anjo e não estava mais lá. Desde então, simplesmente espero. Passei a saber identificar os sons. Acostumei-me com os gritos de agonia que ultrapassam a porta da condenação. Aprendi a perceber os passos hesitantes das almas que chegam ao portão do limbo. Antes, eu corria até o portão, tentava falar com o porteiro, que sempre respondia a mesma coisa: “hummm”. Dividia meu desespero com as novas almas que chegavam. Depois de eu explicar sobre a chave, a mesa e o juiz, elas iam até lá. E sempre voltavam com uma chave. Então, eu ia correndo e nunca encontrava uma chave para mim. Nunca encontrava sequer a cadeira do juiz. Com o tempo, perdi a conta das almas que ingressaram. Perdi a conta de quantas vezes eu fui até a mesa. Quantas vezes tentei voltar pelo portão do limbo com as almas que pegavam esta chave. Mas era sempre “hummm”, sem eu ter chance de voltar. Perdi a conta de quantas almas eu confortei depois de pegarem a chave da porta da condenação, e de quantas vezes eu tive de empurrar para trancar a porta, para que nenhum dos horrores saísse. Acho que me conformei com este destino: ficar no limbo, simplesmente, e esperar.  Esperar almas como esta que agora chegou-me:
— Olá…? Onde eu estou? 
— No limbo.
— E quanto tempo terei de esperar aqui? Quando alguém virá buscar-me?
— Ninguém virá. Tu tens de ir até a mesa do juiz e pegar tua chave.
— Onde fica este juiz? Que chave?
— É só a mesa do juiz. O juiz, és tu. Terás de escolher a chave: da porta da condenação, aquela lá!; ou da porta do caminho de volta!
— Ora, que ridículo! Não vou dar ouvidos a ti, alma maltrapilha!
— O quê? Maltrapilha…? Eu não… … espere! Eu estou mesmo maltrapilha! O que houve com minha alma alva e intacta? 
— Do que tu estás falando, seu mendigo! Por que está sorrindo? Vamos, tire logo esse sorriso idiota do rosto e vá até lá buscar minha chave!
— Sim, farei isso!
— Hummm.
— Porteiro? O que tu fazes aqui? E este clarão? Anjo? Também estás aqui? Por que me olhas severo assim? Sentar-me? Acho que não estou limpo adequadamente para sentar-me na cadeira do juiz. E eu não posso julgar aquela alma intacta… não a conheço.
— Hummm.
— Julgar a mim? Escolher minha chave? Dessas duas em cima da mesa? Eu…
— Hummm.
— Certo. Não haverei de demorar-me, já que tanto tempo tive de pensar em mim mesmo, tanto conversei com almas melhores que as minhas, que até mesmo condenadas foram. Eu aceito meu destino. Pegarei a chave da porta da condenação. 
— Hummm.
— Eu não entendo. Não consigo levantar a chave. O que houve? Como? … esta outra? … eu… Eu a consigo levantar. A chave do portão de volta, eu consigo levantar! 
Bem aventurada alma que ficara rota… descobriu depois de morta, que a salvação viria pela caridade. E o anjo acolheu-a em sua luz, e acolhida, atravessou o portão de saída do Limbo.
Fim.
Luís Augusto Menna Barreto

1º.2.2020



21 comentários:

  1. Fiquei emocionada!!
    A redenção...E será que serei merecedora?
    Fiquei,confesso,cheia de questionamentos, após tão profunda série que você nos trouxe... Fiquei arrepiada do começo ao fim...Mas... até quando nos é dado a chance de ter acesso a outra chave?

    Perfeito,Poeta!

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    1. Redimiu-se a alma... talvez o tempo desperdiçado na vida, tenha compreendido o sentido no Limbo..!
      Não há salvação senão pela caridade... e pela Graça!
      Obrigado, Michele!!!

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  2. Gabi...!!! Mil obrigados...!
    A alma alcançou a Graça, que a ninguém é negada, desde que reconheçamos os erros é que nos arrependamos...! A salvação veio pela caridade...!
    Eu imagino como tu....!
    Obrigado, Gabi. Obrigado!!!

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  3. Que lindo escritor, me emocionei!
    Tão lindo ver a humildade que esta alma aprendeu a ter. Alcançou a aceitação, a resiliência e a entrega total.
    Desenvolveu ao longo dos anos a paciência, seu aprendizado veio através da dedicação ao próximo sem pressa ou julgamentos. Está foi a chave de sua salvação. Parabéns escritor, pelo encerramento surpreendentemente fechado com chave de ouro! 👏👏👏👏👏👏👏👏👏

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    1. Sônia!!! Obrigado por tamanha gentileza!!
      Esse pequeno conto surpreendeu a mim também...
      Era pra ser apenas uma (1) postagem, uma crônica...! Mas se tornou maior pelos comentários feitos... era preciso ir mais longe, saber mais... e fui descobrindo no caminho! Obrigado, Sônia,,, muito obrigado!!!

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  4. Muito emocionante esse final! Essa alma aproveitou sem perceber, a chance que teve. A humildade dela a salvou! Amei o desfecho!!!!

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    1. Quando se doou, sem nada esperar, quando praticou caridade, redimiu-se...!
      A caridade é o caminho da Graça!!!!
      Obrigado, Armelinda!!!!!!!

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  5. Maravilhoso desfecho para uma alma que chegou cheia de si, orgulhosa pelo pouco que tinha feito em vida, mas a demora para encontrar um rumo deu a oportunidade de ajudar outras almas e sem perceber, deixou de ser intacta e se deu bem no final da história. Mas continua a reflexão. ...

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    1. Obrigado, Nice!!!!
      De fato, salvou-se! E foi feito festa! Porque haverá mais festa para uma só alma que se recupere, do que por todas que já estejam no Paraíso...!
      Que tenhamos, pela Misericórdia, a chance da salvação!!

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  6. E certamente, na vida real, seja assim mesmo como imaginaste, Poeta.
    A alma ter que passar pela experiência da dor, da paciência, da doação, da caridade, para se tornar rota, maltrapilha, rasgada, mas limpa, pura, modificada. Certamente nem lembrará do tempo em que foi uma alma intacta.
    Como bem mostraste, na misericórdia divina há perdão para todos os que realmente tenham se arrependido.
    Vou ficar pensando muito em tudo o que abordaste nessa série, e espero que tudo me sirva para a minha própria redenção diante de Deus.
    Quão grandiosa é a tua fé, a tua compreensão sobre o eterno, Poeta!
    Como és fantástico, escritor!

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    1. Maria, acho que teu comentário é muito maior que a pretensão que eu tinha ao iniciar esse pequeno conto que conto nem seria; seria apenas uma crônica de uma anotação que um dia fiz: "brechó de almas, fazer almas boas voltarem". Essa anotação fiz num guardanapo do restaurante do forum. Então, nossa amiga Nice (Eunice) questionou-se sobre as almas que não se tenham doado de forma "material", mas antes, em oração, ou em amparo sentimental, aquelas almas que simplesmente cuidassem de outras..? Poderiam ter chance sem doações materiais?
      Então, escrevi uma segunda parte que, inevitavelmente levou a uma terceira.
      Na terceira, eu achei que poderia terminar ali mesmo, quando descobri aquele final, em que fui levado a entender que serei o juiz de mim mesmo, e, assim, sendo eu acusador, defensor e juiz, nada poderia esconder de mim mesmo! (O julgamento seria terrível, porque nada passaria). Mesmo achando que eu não conseguiria nada melhor do que a idéia de julgar a si mesmo, eu havia anunciado 4 partes... então, por causa da minha boca grande, decidi que escreveria mais uma, sem ter a menor idéia do que fazer...
      E fiz o que muitas vezes aconteceu: sentei-me, simplesmente, em frente ao editor de texto, e deixei a própria história falar pra mim. E escrevi, como se estivesse simplesmente redigindo o que alguém me contava!
      No fim, foi uma experiência maravilhosa... Mas acho que mais fui guiado, do que possa ter sido de meu próprio talento!
      De qualquer forma, teu exagero a meu respeito, sempre faz carinho no meu ego!!!!
      Obrigado demais!

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  7. Guria, tu não erraste ao chamar de crônica... nasceu como crônica... virou um pequeno conto ao longo dos dias, enquanto escrevia... super obrigado!

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  8. E agora?
    Aqui, a gente nem pode curtir...
    O elogio? Ah, uma coisinha só. Isso é nada!

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    1. Tu sempre curtes do melhor jeito: deixando teu comentário!!!!!!!!!

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  9. E mesmo um lindo FIM. Tu és mesmo um bom JUIZ. Quando eu crescer, quero ter um coração igual ao teu.

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    1. Ah!, não.... ficas com o teu.... o meu é pesado... carrega culpas; carrega remorsos de quem não fui, de quem eu poderia ter sido... remorso de algumas coisas que fiz e das tantas que não fiz... carrega o peso de ver o mal e poder ter amenizado dores, quando preferi meu próprio conforto... o meu, carrega peso.... ficas com teu coração...!!!!!
      Obrigado demais, Sílvia!!!!

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  10. E como Maria Zélia, gostaria de curtir tuas respostas...
    Curtiria demais. Pois curto mexmo.
    Até.

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    1. E eu curto demais os comentários!!!! Um obrigado do tamanho deste generoso estado banhado por rios que são ruas....!!!

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  11. Por isso que gosto de vir aqui. Que papo bom vocês tem!!! Como é bom 'ouví-los'!!!! Grande abraço de alma para todos!!!!

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    1. A vinda de todos (e tu fazes parte da construção deste espaço) é que torna tudo tão legal!!! Super obrigado!!!!

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    2. Grata demais fico eu, poeta!!! Muito bom estar em um ambiente que nos faz bem, com pessoas que só instiga coisas boas em nós!

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