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domingo, 24 de outubro de 2021

Eu, o Pilha e a Flor… (Ah!, tá bom: Eu, o Pilha e a Branquela Burra) - parte 4: primeira metade do EPÍLOGO



Essa escola é melhor! Eu fiquei feliz quando a mamãe teve que mudar de cidade por causa do trabalho. Eu não gostava daquela escola só de meninas. A gente nem podia brincar direito, que logo vinha uma professora dizer que meninas não podem se comportar assim! 

Eu já estudei em muitas escolas. Teve um ano, que foram três escolas diferentes. Uma delas foi muito ruim, porque eu não entendia nada. Falavam outra língua, que não era nem o inglês que eu sei um pouco. Era uma cidade bonita, em que passavam navios maiores que uma montanha, e a mamãe falou que eles vão de um oceano para outro bem pertinho da cidade! Eu não sei direito o que a mamãe faz, mas ela trabalha muito. Tem dias que nem vejo ela. Ela nunca tem tempo de brincar. Deve ser triste nunca ter tempo de brincar. Ela sempre me diz que ela trabalha por minha causa, pra garantir meu futuro. Eu acho que esse tal futuro deve ser horrível, eu tenho muito medo. Porque em toda cidade nova que a gente chega, mamãe me coloca em aula de inglês, piano, natação, e tênis. E diz que tudo isso é para eu estar preparada para o futuro. Será que nesse futuro, só pode entrar quem souber tudo isso? Eu não gosto de piano, mas eu me esforço, porque tenho medo de não aprender e não conseguir ir para o futuro. Daí, eu também quase não tenho tempo de brincar. Quem cuida de mim, agora, é a Tetê. E tem o “Rúlio”, mas que escreve com “jota”, que dirige o carro. Ele e a Tetê que me levam em todos os lugares que mamãe diz que tenho que ir. O “Rúlio” está com a gente desde a cidade dos navios gigantes. A Tetê, cuida de mim há pouco tempo. Desde que chegamos nessa cidade. Eu gostei da Tetê. E acho que o “Rúlio" também gostou, porque eu já vi eles brincando juntos. Teve um dia que eu saí da aula de inglês e quando fui para o carro, eles estavam brincando tanto que o carro tava balançando, e eu tive que bater várias vezes na porta pra eles abrirem pra mim!

Na minha escola nova, eu posso usar bermudas. É melhor que saia. E eu já consegui arrumar dois amiguinhos. Bom, pelo menos eu acho que consegui dois, porque um deles não sabe falar direito. Eu achava ele estranho. Um "estranho legal", mas agora eu já me acostumei. 

Quando eu vi eles na primeira vez, foi no recreio. Um estava abaixado bem no meio do caminho de pedras por cima da grama. E ele parecia brigar com quem chegava perto. Ele só olhava brabo e fazia “hum-hum”. E não se levantava de jeito nenhum. Até que o garoto “estranho legal” chegou perto e começou a falar para outros meninos que estavam correndo por ali, para passarem por outro lado. Uns até empurraram o “estranho legal”, mas acho que ele conseguiu convencer que passassem por outro lado. Daí, ele foi buscar água num copinho e deu para o que estava abaixado. Quando tocou o sinal do fim do recreio, e todas as crianças começaram a ir para a aula, o que estava abaixado deixou o copinho vazio no chão e foi. O “estranho legal” esperou e juntou o copinho. Daí eu fui lá falar com ele:

— Oi, eu sou a Clara. Mas pode me chamar de Clarinha. O que o teu amigo tava fazendo?

Ele me olhou e ficou todo vermelho. E ele gaguejava. Até hoje, mesmo ele já sendo meu amigo, ele sempre fica vermelho perto de mim. Por isso que eu acho ele estranho! O outro não é assim, não fica vermelho!

— Oi… eu… é… o Kadu? Ah… ele… ele… e-ele tá cuidando daquele plantinha ali, óh!

Era uma flor. E estava quebrada. 

Nos outros dias, sempre o Kadu e o “estranho legal” ficavam ali na hora do recreio.  E eu comecei a ficar com eles. Tinha um canteiro de flores perto do caminho das pedras, e várias crianças jogam bola ali perto, no recreio e acabam machucando as flores. 

Daí, um dia, quando a gente tava no recreio, um menino chutou a bola errado, e ela foi direto no canteiro de flores. Foi tão forte que chegou a quebrar e arrancar uma. O Kadu correu pra lá e pegou a florzinha arrancada. Daí ele me entregou a flor e falou com aquele jeito de artista, olhando pra outro lado, enquanto falava:

— Leva. Cuida. Planta ela.

Eu meio que fiquei sem saber o que fazer, mas daí, quando saí da escola, falei pra Tetê o que tinha acontecido e que queria plantar a flor. A mamãe estava viajando a trabalho e eu tinha aula de inglês e natação. Mas a Tetê disse que se eu não contasse pra mamãe, ela deixava eu matar a aula de natação e me levava numa praça que tinha canteiro de flores que eu poderia plantar, e daí, a gente chegaria mais cedo em casa e ela iria no cinema com o “Rúlio”, mas eu também não podia contar isso para a mamãe. 

Eu fiquei muito feliz, porque a mamãe nunca me levava para brincar e sempre arrumava tanta coisa pra eu fazer, que eu nunca ia em nenhuma praça. Quando chegamos, a Tetê disse que eu podia brincar um pouco, e ela ia ficar com o “Rúlio" no carro. Eu adorei. Tava cheio de crianças. Tinha criança no balanço, na gangorra, no escorregador… até em cima de uma árvore, eu vi dois meninos. Mas eu tinha que cuidar da flor antes de brincar. Então eu fui num canteiro de flores bem perto do parquinho, pra tentar plantar de novo a flor que o Kadu me deu. Eu levei o maior sustão, porque quando eu me abaixei, um cachorro com uma pata torta saiu correndo do meio das flores. Eu acho que ele estava escondido ali e também se assustou. Daí, uns garotos viram e saíram atrás do cachorro, jogando umas pedrinhas nele, mas ele correu e se enfiou em um arbusto perto de um banco onde tinha um velho sentado e o velho ralhou com os garotos. Então, eles deixaram o cachorro em paz e voltaram para os brinquedos. E foi só nessa hora, que eu lembrei que eu não sei como cuidar de uma flor. Nunca morei em casa, pra ter pátio e flores. A mamãe disse que prefere apartamentos, porque como ela viaja muito, ela diz que é só fechar uma porta e pronto, e que casa dá muito trabalho.

Bom, mas as flores todas vem do chão, né?! Daí, eu fiz um buraquinho no chão, perto de outras, e coloquei ela ali dentro, igual a gente coloca num vaso. Depois, eu fui brincar um pouco no balanço. Quando a Tetê me chamou e eu já tava entrando no carro, eu vi quando um dos dois garotos desceu da árvore e foi até o canteiro.

No outro dia, na escola, eu contei para meus dois amigos, que tinha plantado a flor no canteiro da praça. O Kadu sorriu e correu para o canteiro da escola e pegou outra flor quebrada e me deu:

— Planta! Hum-hum. Planta!

Daí, Eu peguei a flor de novo. E eu pedi pra Tetê me levar na praça outra vez. Ela fez eu prometer que eu não ia contar para a mamãe que ela iria sair mais cedo, e nem que eu tava indo na praça. Quando cheguei lá, depois da aula de inglês, fui correndo ver a flor! E tava linda! Nem parecia a flor que eu tinha plantado! Tinha sarado o machucado do caule, nem tava mais quebrado, e o buraquinho que eu tinha feito, tava todo tapado com terra em volta dela! 

Eu fiquei super feliz. Só não conseguia entender direito. Daí, eu ouvi, parecia uma risada dessas que a gente dá quando tá feliz, e fiquei procurando quem era. E vi os garotos da árvore, que estavam lá de novo. O menor, que estava no galho mais baixo estava sério, mas o garoto que tava bem no alto da árvore, tava sorrindo! E ele tava olhando bem pra mim, eu acho. Então, eu vi as mãos dele todas sujas de terra. E eu fiquei desconfiada… será que foi ele quem arrumou a florzinha que eu tinha plantado? Então, eu peguei a outra florzinha machucada que o Kadu tinha encontrado, e fiz outro buraquinho bem perto da que eu já tinha plantado. E eu olhei bem pra ela, quase querendo decorar como ela era. Porque eu queria descobrir se eu que sabia plantar, ou era aquele menino da árvore.

Quando a gente chegou em casa, levei um susto, porque a mamãe já estava! A Tetê nem pode sair mais cedo com o “Rúlio”. Mas a mamãe nem percebeu, eu acho, que eu tinha chegado, porque ela estava em uma chamada de vídeo pelo MacBook e ao mesmo tempo digitava no celular. Quando eu já estava na cama, ela apareceu no quarto para me dar um beijo de boa noite, e disse que iria me pegar na escola para almoçarmos juntas.

— Oba! Vamos comer hambúrgueres, mamãe?

— Lógico que não, Clara! Vamos em um maravilhoso restaurante que a tia Bella indicou, que fica na estrada. Mas eu tenho certeza que você vai adorar!

Daí, no dia seguinte, a mamãe estava esperando na saída da escola e fomos. Agora, com essa doença que faz a gente usar máscaras, a gente anda com os vidros do carro um pouco abertos. Eu gosto muito mais quando os vidros estão abertos e entra vento. Mas quando a gente tava parando em uma sinaleira, a mamãe mandou o “Rúlio" fechar os vidros.

— Feche os vidros Julio! Ah que coisa! Pessoas decentes não podem mais nem andar tranquilas que esses delinquentes já vem querer assaltar ou pedir esmolas! Clara, nem olhes para eles! Eles querem assaltar ou pedir dinheiro para comprar coisas que fazem mal! Jamais deixe um desses mendigos chegar perto de ti, Clara! São pequenos bandidinhos! 

Eu fiquei curiosa e virei a cabeça pra ver. Mas a mamãe me xingou:

— Clara, eu mandei tu não olhares! Eu não te quero nem olhando para esses marginais, ouviste? Eles são assaltantes! 

— Sim, mamãe!

Eu queria olhar mais. Mas eu sabia que não podia. 

A mamãe viajou de novo no outro dia, e, na escola, o Kadu e o “estranho legal” todos os dias entregavam uma flor machucada arrancada dos canteiros da escola, para eu plantar no parquinho. E teve um dia que o garoto do galho mais alto desceu e veio falar comigo. O garoto menor ficou no galho.

Quando o garoto chegou perto, meu coração parece que ia sair pela boca, porque ele parecia com os meninos do sinal, que a mamãe diz que são bandidinhos. Mas as mãos dele estavam sujas de terra, e eu achava que era ele que estava salvando as flores que eu trazia. Daí, eu fiquei assustada, mas fiquei ali. 

— Oi. Quer que eu te ensine como plantar?

A roupa dele era toda suja, mas a máscara era novinha. E mesmo de máscara, parecia que dava pra ver que ele estava sorrindo. E bandido é brabo, bandido não sorri, né?! Então, eu fiz que sim com a cabeça.




— Eu sou o Pilha. E tu?

— Clarinha.

— Oi Clarinha.

Ele se abaixou e começou a cavar com as mãos.

— Toma. Pode usar as minhas pazinhas.

Ele me olhou e parecia um sorriso. Pegou uma das pazinhas e disse:

— Tu pega a outra e faz como eu.

Daí, depois daquele dia, todos os dias, o Pilha ensinava como plantar. 

Até que chegou o dia que a mamãe foi me levar no restaurante do amigo da tia Bella de novo. A mamãe estava enviando mensagem pelo celular e não viu que a gente tava chegando no sinal que tinha uns assaltantes. Daí, quando o “Rúlio" parou na sinaleira, um deles colocou as mãos no vidro e eu fiquei muito assustada, porque a mamãe sempre falava que eles iriam assaltar. E eu gritei. Então, o “Rulio" abriu um pouco a porta e segurou o menino pelo braço e jogou pra longe do carro. Mas chegou outro e empurrou a porta que o “Rúlio’' abriu. E esse outro, era o Pilha, o meu amigo!

— Pilha?

E o Pilha gritou:

— Ele não é ladrão! É meu amigo!

E eu acho que a mamãe ouviu eu falar o nome dele, porque ela me olhou furiosa e perguntou:

— Clara, tu conheces esses mendigos?

Quando a mamãe perguntou, o Pilha me viu e sorriu. E eu fiz a coisa mais feia que já fiz até hoje. Eu fiquei com medo de dizer para a mamãe que eu conhecia eles, porque daí, ela ia descobrir tudo: que eu não estava indo nas aulas de natação, que eu estava indo no parquinho, que a Tetê e o “Rúlio" me ajudavam a ir no parquinho… E eu sei que eu ia ganhar um castigo muito grande e que a mamãe iria despedir o “Rúlio" e a Tetê, e eu nunca mais iria ver o Pilha. 

Meu coração ficou tão apertado, que parecia que tinha uma coisa esmagando ele… daí eu falei:

— Claro que não, mamãe.

(Continua na semana que vem, na segunda metade do EPÍLOGO).


Luís Augusto Menna Barreto

24 de outubro de 2021

15 comentários:

  1. Muito bom ver/ouvir o outro lado da mesma história. Através de outra ótica fica mais completa. Mandou bem poeta na versão Clarinha de ver as coisas. Parabéns.

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    1. Niceeeeeeee!!!! Mil obrigados!!!!!!
      Eu também adorei!!! Ficou maior do que eu gostaria, mas precisei resolver muitas questões e reduzi muita coisa!!! Mas era preciso dar uma visão sobre a Clarinha, para não parecer que ela seria uma menina má!!!! No fim, a Clarinha teve uma decisão terrível para tomar…!

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  2. Olha a história de como a Clarinha conheceu eles! Os desejos estão lindos Menina parabéns vamos esperar mais .... 😍 amei!! 👏👏

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    1. Obrigado, Liuu!!!!! A ideia foi dar a visão da Clarinha… de o que a teria levado a negar que conhecia o Pilha…! No fim, ela não é uma pessoa ruim….!

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  3. Mais curiosa ainda para ver no que vai dar essa amizade da Clarinha e do Pilha!

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    1. Eu também… acho que está abrindo uma porta nova para o Pilha… duas realidades completamente distintas, unidas pela inocência da infância…!!!
      Vou torcer muito por estas crianças…!!!

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  4. Surpreendente, estou ansioso pelas próximas partes...😀😀😀

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    1. A visão da Clarinha dá uma nova perspectiva… a tensão está na forma como o Pilha vai receber tudo isso… se esses universos tão díspares terão como seguir tocando um ao outro…!

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  5. Quanta pureza a da Clarinha, do Pilha, do Kadu, na visão do escritor!
    Um encontro de almas.
    De criaturas ainda livres dos preconceitos que a sociedade impõe.
    Como seria bom que a vida real fosse como a desses personagens...
    E como torço por um final feliz, onde a convivência de todos seja baseada no amor e no respeito!

    Maravilhoso texto. A leitura que nos engrandece!

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    1. Ah!, Maria… tua generosidade (comigo e com o Pilha) é sempre tão maior…!
      (Aliás, a “máscara novinha” que a Clarinha narrou, tu que deste, lembras?!)…!
      Eu também torço demais para um final que permita alguma forma de portão mágico que permita o trânsito entre esses mundos tão diferentes…!
      Estou curioso pelo resto da história… e o que mais quero, é que ao final, fique um portão aberto…!

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  6. Ah...que bom ver a perspectiva de Clarinha! Era mesmo necessário conhecermos esse lado da história! Parabéns pra essa manobra!Ah..gostei tbm da presença do Kadu e do amigo! Que bacana trazê-los! O que me entristece sempre é essa estratificação social tão injusta, latente na história e na vida.

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    1. Quisera essa divisão de “gentes”, fosse só história… mas é a vida. Nossa própria! Imagina isso para crianças que sequer podem compreender a complexidade dessas divisões… De um lado, Pilha e o amiguinho, recebendo sobre si, toda a injustiça de simplesmente terem nascido sem lar… … de outro, a Clarinha, sem compreender qualquer diferença que vem sendo-lhe sistematicamente imposta…!
      Era preciso cuidar de Clarinha, para que não fosse vista como uma menina má… De alguma forma, ela também está exposta às injustiças….! Era preciso justifica-la…!

      Adorei colocar o Kadu na história… e houve, novamente, o Garrincha e o Clarêncio (o cão de pata torta e o velho que ralha com os garotos) que são protagonistas em conto próprio; e rememorei Bella, protagonista de “O Conto de Bella”, que talvez tenha sido o conto que eu mais gostei de escrever….!!!

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  7. Linda Clarinha! Esse escritor arrasou mostrando a realidade e visão da Clarinha. O encontro com o pilha revelou realidades bem distintas e os julgamentos que as pessoas fazem sem conhecer o outro. Clarinha, menina de prédio, com medo do futuro que ela precisa se preparar sem saber o motivo, e pilha vivendo seu presente, já trabalhando na sinaleira para sobreviver.

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    1. Obrigado, Suellen… a ideia era essa… mostrar que nem sempre há só uma forma de ver as coisas…!
      Achei que a Clarinha merecia ser ouvida… foi divertido escrever pela perspectiva dela!!!

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