Bédi-Bói, Macaquinho e o Homem-aranha
(Novamente, um especial agradecimento ao Investigador de Polícia ARAGÃO,
muito atuante
no arquipélago do Marajó, que em uma ímpar gentileza,
enviou-me os
relatos que deram origem a esta crônica!)
Incrível como essas coisas acontecem sempre na sexta-feira!
“Não dá, doutor! A casa não tem porta!”
“Hein?”
“Não tem porta, doutor”, repetiu o policial militar!
O Distéfano e o Magistrado, os dois oficiais de justiça estavam ali também. Olhei pra eles como quem pergunta “que história é essa”?
“Tem não, doutor”, disse o Magistrado.
“Tá bom…” Esse foi o Distéfano. Sem mudar a expressão tranquila. Era só o que ele me dizia: ”Tá bom…”. Assim, com reticências e tudo e quase sem pronunciar o “m" do final. Saía assim: “tá bô”!
“E eles sobem lá como? Ou depois que entraram na casa foi que construíram as paredes?” Eu perguntei, já quase irritado.
“É o Macaquinho, doutor. O moleque sobe muito rápido e joga a escada pro Bédi”, explicou o policial.
O caso era o seguinte. O Bédi-Bói havia invadido um terreno lá para os lados da estrada. Onde leva esse estrada, eu não sei. Acho que leva até o outro lado da ilha. Afinal, aqui no Marajó, tudo é ilha e, se uma estrada existe e vai direto, só pode levar até o outro lado. Sei que nos finais de semana muita gente fala que “vai pra estrada”. Isso é quase uma gíria. Ouvi dizer que tem vários igarapés ao longo da estrada, mas eu nunca fui, ainda, em nenhum. O mais longe que já fui foi até a pista de pouso (de piçarra, sem qualquer regularização), quando fui buscar o presidente do Tribunal de Justiça de ambulância, dirigida pelo Manobra que nem habilitação tem! Fomos de ambulância porque era o único veículo disponível na cidade além do caminhão de lixo e algumas motos velhas e sem placa que fazem serviço de mototaxi.
Pois o caso é que o Bédi-Bói havia invadido um terreno pra além da pista e ergueu ali uma casa. E literalmente ergueu, porque pelo que o pessoal estava contando, a casa era de dois pisos, mas não havia porta nem janela na parte de baixo. Na parte de cima, havia três janelas, uma na frente e uma em cada lado. Mas nenhuma porta. Nem escada! O Bédi aliciou o Macaquinho, um garoto com aparência de desnutrido, que já foi apreendido algumas vezes por sempre tentar furtar frutas, para que o Macaquinho suba ligeiro e jogue uma escada de cordas para o Bédi subir.
Bem, já deu pra imaginar que o Bédi-Bói não era exatamente um anjinho, né?! Pois é. Desde moleque, aprontava, entrando e saindo da delegacia. Normalmente, alguns furtos, brigas e muitos desacatos.
Pois ele achou de invadir um terreno que tem um igarapé e uma pequena praia, formando um agradável balneário minúsculo de propriedade da D. Justa, que mantinha lá, apenas uma tenda para, nos dias quentes, vender cervejas e salgados para quem fosse ao igarapé. Como o Bédi invadiu no inverno (é sempre quente, mas o “inverno” caracteriza-se pela estação das chuvas, quando, em vez de chover todos os dias, chove o dia todo!), deu tempo para construir a casa sem ninguém perceber. Agora, chegando o verão (pára de chover o dia todo e começa a chover todo o dia!), a pobre D. Justa havia ido até seu terreno e deu com a casa. Foi falar com um policial militar. Esse, mandou procurar o delegado. O delegado falou pra ir no Ministério Público. O Ministério Público mandou dona Justa para a Advogada da cidade (não tem defensoria, mas o prefeito paga uma advogada para fazer as vezes de defensora), e esta, finalmente, ingressou com pedido de reintegração de posse! E daí, já era sexta-feira!
Peguei o processo e logo despachei determinando a reintegração. Entreguei para o Goela e ele, levando o processo para a secretaria, espiou a decisão e sentenciou: “encrenca, doutor”.
Mandado feito, chamaram os oficiais Distéfano e Magistrado pra ir cumprir. Eles pediram o apoio do policial militar e lá se foram. Chegaram lá e deram com a casa sem porta. Averiguaram e ficaram sabendo que o Bédi passava o dia todo trancado na casa (não sei fazendo o quê) e só saía à noite. Mas à noite não pode cumprir mandado de reintegração, segundo a Lei.
Não conseguiram cumprir o mandado e voltaram.
“Mas vocês não mandaram ele descer?” Perguntei.
“Mandar mandamos, né doutor” falou o Magistrado. “Mas o Bédi pegou uma garrafa com gasolina e um isqueiro e disse que ia tocar fogo em tudo se alguém chegasse perto da casa e tentasse subir! E pra subir, só levando escada, doutor!”
Ai ai ai…
“Tem o Homem-Aranha…”
“Hein?” Minha surpresa nem foi por falar em homem-aranha. É que foi o Distéfano que falou alguma coisa pra mim além de “tá bom…”!
“O Aragão… ele sobe!”
Aragão era o único policial civil, além do delegado!… Tá, tem o Fechadura, mas esse não é policial, apenas cuida do xadrez da delegacia. Mandei chamar o Aragão, que ficou conhecido como Homem-Aranha, depois de ser filmado subindo em uma casa para pegar um ladrão. Ele conhecia há muito o Bédi e já conhecia, também o Macaquinho, o garoto desnutrido e ágil que o Bédi pegou para subir e jogar a escada.
“Missão dada, missão cumprida, doutor!” Falou o Aragão, sem pestanejar.
“Mas a casa não tem porta. Tem que subir no andar de cima”, ponderei.
“Feito”!
"E o Bédi ameaça jogar gasolina e tacar fogo”.
“Feito”!
"E tem o Macaquinho! É menor, não quero que seja machucado.”
“Feito”!
“E ‘pelamordeDeus’, não me vai dar tiro por lá”.
“Feito”!
Saindo todo mundo da sala, o último era o Distéfano que indicou o Aragão.
“Distéfano! Tu que conheces o Aragão, o que achas?” Perguntei quando ele saía.
Adivinha?
“Tá bom…"
No outro dia, sábado, por volta de 10 horas, o Goela foi me chamar para eu ir no fórum, porque o Aragão estava lá com o Distéfano porre, enrolado em uma rede, aparentemente sem nenhum arranhão, e a D. Justa já estava desmontando a casa, pelo que disseram!
“Mas como foi isso?” Perguntei.
"Ah, doutor, falei com a Sandrinha Vira-Copo. Ela tava me devendo uma, porque eu aliviei um estelionato dela, uma vez”. (Fingi que não ouvi essa última parte!).
Como assim?
“Ontem foi sexta-feira, doutor. O Bédi ia no brega, e pedi pra Vira-Copo embebedar ele. Dito e feito. Embebedou. Quando chegamos lá, de manhã, ele tava porre dormindo. Trabalho deu, foi pra descer ele porre lá de cima. Mas enrolamos na rede que ele tava dormindo e descemos ele.”
"E o Macaquinho? Não deu trabalho?” Perguntei.
“Não, doutor. Nenhum. Foi só levar fruta!”
“Hein?”
…
Pois é. O apelido “Macaquinho”, não era porque subia rápido nas coisas. Era porque as primeiras vezes que foi apreendido, foi por tentar furtar bananas. E ele tava sempre com fome!
Por Luís Augusto Menna Barreto