Páginas

terça-feira, 7 de junho de 2016

crônica - O Fechadura, a Audiência e a Visagem - parte 2

O Fechadura, a Audiência e a Visagem - Parte 2


“Que história de visagem é essa, Maurício”? 
Eu havia telefonado para um colega meu, Dr. Maurício, que havia trabalhado antes de mim na cidade, por alguns anos. Depois, teve uma juíza substituta, e agora eu.
Depois de alguma risada, ele, de um jeito inevitavelmente bem humorado, disse-me:
“Pra mim, nunca apareceu! Mas teve uma vez que botei R$ 50,00 numa garrafa de cerveja e coloquei a garrafa em cima do armário da cela. Depois, eu me encontrei com o pessoal à noite, na praça, e disse que quem fosse lá pegar a garrafa era o dono.”
“E quem pegou?”, perguntei.
“Égua, moleque, acho que os cinquenta estão lá até hoje!”!
“Sim, mas tu não foste pegar de volta?”
“Tu é doido, é?!” Foi a última coisa que ouvi, porque a ligação caiu, e não houve jeito de ligar novamente. Coisas da ilha e seu sinal intermitente.
Eu estava há pouco tempo na cidade, mas já havia entendido que para conseguir alguma informação havia dois lugares: o bar do Seu Nonô, ou o açougue do Retalho. Escolhi o bar do Seu Nonô, porque poderia tomar o café da manhã. 
Servido o café, perguntei direto: 
“Seu Nonô, que história é essa de visagem no fórum?”
“Ah, Doutor, o senhor vai me desculpar, mas de visagem eu não falo! Com essas coisas não se mexe, doutor”. 
“Deixa de ser bobo, Seu Nonô! Quero saber que história é essa de um tal de Bento que se matou?”
“Olha, doutor: o Bento tinha um processo aí no fórum que acusavam ele de ‘estrupo' e ele falava que foi o boto. Que o boto chegou amarrou ele e fez ele beber cachaça até ficar porre. Ele dizia que foi o boto que entrou na casa e ‘estrupou' a pequena. Ela ficou grávida e disse que era filho do 'estrupo' do Bento. Disse que quando saísse a criança ia mostrar como era a cara dele. Mas a pequena perdeu a criança logo cedo e continuou acusando o Bento.”
“E o Bento?”
“O Bento era o noivo da pequena, doutor! Ele foi encontrado porre na beira do rio, e foi preso.”
E a noiva? 
"A noiva, 'diz que’ fugiu com um primo pros garimpos de Caiena." 
"Sim, mas e essa história de Visagem, Seu Nonô?”
“Ah, doutor, disso não falo, não. So sei que 'diz que’ o Bento se matou lá no fórum, na cela, no dia da audiência”.
Não consegui saber mais nada com Seu Nonô. Resolvi ir no açougue do Retalho.
Era antes de 8h da manhã da segunda-feira, mas já tinha dois caboclos jogando sinuca e com um copo de cerveja cada. Sim, porque no açougue do Retalho, tem a mesa de sinuca, tem cerveja e sempre tem um “brega" tocando, que ele logo baixa o volume quando eu venho passando; tem carne pendurada nos ganchos e o bloquinho onde (dizem) ele anota o jogo do bicho! Só não tem é um freezer no açougue, mas o resto, tem! 
Não precisou nem eu falar nada, e o Retalho já foi falando:
“Já chamou a Socorro Rezadeira, doutor?”
“Hein?”
“Tem que chamar, doutor! Se o Bento tá aparecendo, tem que chamar! Chega juiz novo aí, não demora o Bento começa a aparecer. Acho que ele quer que veja o processo, doutor! Tem que chamar a Socorro Rezadeira.”
“Olha Retalho, eu já vi muito vivo vindo falar com juiz novo quando chega, prá ver se desencalha os processos. Mas morto, é a primeira vez!”
“''Deusulivre', doutor!” E fez o sinal da cruz! “Ô Alerta, a Socorro Benzedeira não é tua cunhada?” O Retalho perguntou para um homem magrinho e pequeno, que estava jogando sinuca.
“É”.
“Vai chamar logo, pro doutor, Alerta!”.
Ele secou o copo de cerveja e saiu apressado. 
Conversei mais um pouco e quando eu cheguei no fórum, estavam todos ali na frente: o Barganha, o Goela, D. Ana Conta Sonho, que faz a limpeza do fórum e dizem que sabe interpretar sonhos para dizer qual bicho vai dar, o Fechadura e os dois presos: o Mala e o Sonrisal. 
Perguntei o que estavam fazendo ali fora e foi o Goela quem respondeu.
“A Socorro Rezadeira já entrou doutor. Temos que esperar aqui!”
Estranhei como foi rápido para ela chegar. Muitos dias depois, fiquei sabendo que ela mora na rua ao lado do fórum e o casebre onde vive é, inclusive, encostado na parede do fórum, lá na parte de trás. Por isso chegou tão rápido.
Enquanto esperávamos na praça em frente ao fórum, aproveitei para perguntar para o Fechadura:
“Sim, Fechadura, como tu fizeste pra prender os rapazes?”
“Foi com o isqueiro, doutor”.
“Hein?”
“Com o isqueiro!”
“Como isso?”
"Eu tava parado na esquina e ia fumar um cigarro. Tava colocando a mão no bolso e eles vinham correndo. Quando passaram por mim, gritei: ‘quem correr fica aleijado!’. Eu falei na audiência doutor: o importante é o jeito como a gente fala!”
“Foi, doutor”, falou o Mala, sem ninguém perguntar. "A gente achou que era arma, doutor! Ele mandou a gente continuar caminhando até a delegacia sem olhar pra trás e a gente foi”.
Nisso a tal Socorro Rezadeira saiu do fórum com uns galhos de alguma coisa numa mão, fumando um palheiro que fazia muita fumaça e com uma garrafa de cerveja empoeirada na outra mão:
“Tem que ''ponhá'' a oferta pra 'aquietá’ o morto”.
“Hein?”
“Tem que ‘ponhá’!" E apontou a garrafa pra mim.
“Doutor”, falou o Goela: “Depois que o doutor Maurício botou os cinquenta na garrafa, parou a visagem! A Socorro Rezadeira veio e disse que foi a oferta! Depois do doutor Maurício, quando chegou a juiza substituta, o Bento veio de novo! A gente chamou a Rezadeira, a juiza fez a oferta, e parou a visagem, doutor!”
A Rezadeira balançou a garrafa na minha direção.
“Põe logo, doutor!” Falou o Mala, sem ninguém perguntar nada!
Olhei estranhando muito… mas enfim! Bora 'aquietá' o morto, então!
“Só tenho essa nota de cinquenta rasgada na ponta, serve?” Perguntei, por via das dúvidas. Vai que o morto só aceita nota novinha?
A Socorro rezadeira botou a nota na garrafa, entrou, demorou uns cinco minutos, saiu e disse:
“Tá quieto”. 
Vi o alívio de todos.
Por delicadeza, agradeci e perguntei: “Quanto eu lhe devo?”
“Nada não. Pro doutor é de graça”. 
Entramos e realizamos a audiência. Só entrando no fórum, foi que notei que os presos estavam sem algemas; mas aquela altura, com morto quieto e o Fechadura prendendo três com o isqueiro, já não estranhei mais nada!
No final do dia, eu pensei em passar no açougue do Retalho para agradecer, afinal de contas! 
Quando estava no açougue, chegou o tal do Alerta, que diz ser cunhado da Rezadeira. Ele estava carregando uns pedaços de cano de ferro em um carrinho de mão e parou ali. 
“Retalho, veja aí, um kg de carne moída e uma maminha.”
“Vai levar carne em vez de tomar uma, hoje, Alerta?” Perguntou o Retalho.
“Não é pra mim. A Socorro Rezadeira convidou eu e a Sem Sossego pra comer uma carne com ela.”
“Fiado?” Perguntou Retalho.
“Não, hoje é no dinheiro!”
E puxou uma nota de cinquenta!
A nota estava rasgada na ponta!

Por Luís Augusto Menna Barreto


Para ler a  parte 1,  CLIQUE AQUI





31 comentários:

  1. Kkkkkkkkk
    Muito bom!!!!!
    E cuidado...👻👻👻👻

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ui.... eu me assustei com teus fantasminhas...!!!
      Ah, que bom que gostaste....!!!!!!!!!!!
      Mil obrigados, Silvina...!

      Excluir
  2. “Nada não. Pro doutor é de graça”.
    Digo que essa esperteza do mundo dos (bem) vivos, não tem preço!
    Até imagino quem fez barulho no fórum para assustar, durante as audiências... kkkkkkkkkkkkkkkkkk

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Pois é.... imagina só! Ainda bem que foi de graça... (ou pra fazer graça... rsrsrsr)

      Excluir
  3. Respostas
    1. Ah, Tel.....
      Bom depois que passa... mas na hora... rsrsrsrsrs....
      E pensa na minha cara de dúvida quando a Rezadeira estava balançando a garrafa na minha direção e eu sem saber se "ponhava pra aquietá o morto" ou não... rsrsrs
      Mil obrigados, Tel!

      Excluir
  4. Respostas
    1. Imagina... boa e generosa... nem "cobrou" de mim...!!!!
      ... coincidência é o Alerta também ter uma nota de R$ 50,00... rsrsrsrs

      Excluir
  5. Gente, nunca vi ninguém mais esperta que essa! Poeta, junte todas essas histórias e dará um livro de boas gargalhadas... E como disse Silvina Peres: "cuidado...👻👻👻👻"

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Professora.... chegou num ponto que acho que na ilha, só tem esperto... o único lento sou eu...

      ... mas queres saber...? de tudo isso, ver o Goela assustado de verdade, também teve seu valor!! rsrsrsrs

      Excluir
  6. Muito legal Amigo, sempre que momentos como estes se apresentam temos certeza que todos nós vivenciamos nossos medos.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Dr. Izamir... depois dessa, to com mais medo dos "vivos" da ilha... rsrsrsrs
      Obrigado!!

      Excluir
  7. Que esperinha esta Dona Socorro Rezadeira!!!
    E tu, tão inteligente e espiritualizado cai neste conto?
    Por que não foste lá conversar com o Bento?
    Seja um bom colega, avisa teus substitutos para fazerem a oferenda ao "Bento" antes dele se manifestar. Hahaha

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ah, não.... não posso quebrar a corrente de oferta do morto!! Deixa os colegas fazerem suas oferendas.. rsrsrsrs!!!

      Excluir
    2. Kkkkkkkkk gostei, Elisa!
      "Por que não foste lá conversar com o Bento?"

      Excluir
    3. Bom...... é que...... pois então..... daí..... foi que..... veja bem..... por outro lado.... é.... de fato.........

      Excluir
  8. Não há qualquer novidade em eu afirmar que o teu grande talento literário reside aqui.

    "Deusulivre" de dizer que este seja o teu único talento, mas ouso afirmar que é na crônica que o teu brilho reluz.

    E isso não é fácil! Extrair da realidade crua, dura e sofrida o cômico é peripécia de construção de texto conseguida por poucos.

    Vê só a matreirice, a sagacidade com que salvas o Dr. Maurício . A linha telefônica some, o telefone fica mudo, e o doutor sai do texto sem se comprometer na vida real.

    Tu, de fato, é CRONISTA.

    Parabéns!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi, escritora...
      Sabes, de tudo o que eu escrevi em todas as crônicas que já postei, a única coisa que saiu realmente de caso pensado, foi justamente esse lance do telefonema para o Dr. Maurício...
      E essa foi a solução pensada, realmente, que encontrei...!
      A conversa foi adiante... mas o que precisava para a crônica morria ali... e como no Marajó, a perda de sinal e uma constante, pensei que seria uma solução boa.

      Cada vez que tu comentas, escritora, tu me envaideces... fico pavão!

      Porque realmente (e digo isso de todo o coração), eu simplesmente me divirto! Acho que o dia que for uma obrigação, eu paro. O que quero dizer com isso? Que as coisas saem ao natural.
      Como tua "Malva", tua "Heloísa".... e (disseram-me) outra com quem andas conversando......!

      A propósito: minha irmã enviou-me foto e sorrisos, exibindo, como um troféu, com orgulho bonito, o livro que enviaste a ela. E a dedicatória foi uma especial mercê, que a deixou feliz. Já fiquei, inclusive sabendo, que há disputa entre a mana e a mãe, pela posse (agora não fala o escrevedor, fala o outro!) do livro. Posse, sim, porque é diferente de propriedade. Pelo que entendi, a propriedade (domínio) da mana, tem sofrido esbulhos possessórios por parte da mãe, que, dos três atributos do domínio (uso, gozo e fruição), tem-se, de forma clandestina, retirado o uso...
      Um problema jurídico a ser resolvido pela mediação!

      Ah, Ana Isabel.... super obrigado por estes carinhos críticos que me falas!

      E boa viagem, neste frio charrua, dos charques uruguaios!!

      Excluir
    2. Muito grata fico eu, meu cronista predileto, por falares assim das "minhas mulheres". Por certo, as três também te agradecem. Não dou certeza , porque bem sabes: quem é que sabe ao certo o que se passa na cabeça de personagens!?

      Ah! Estou tomando providências para a reedição do MALVA. AÍ quando isso acontecer, farei com que dona Zélia seja a proprietária.

      Excluir
    3. Sim! Tinha de retornar!
      Aleluia! Tu me substantivaste. Obrigada pelo Ana Isabel!

      Excluir
  9. Kkkkkkk....... Essa Rezadeira é um anjo Dr!!! Pelo mesmo a cabocla tem coragem!!!! Mesmo assim não entro nesse fórum de jeito nenhum...kkkk

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Tchê Flávio... pelo que sei, no prédio antigo do fórum de Breves deu visagem... só não sei que morreu por lá, ou a visagem mudou-se para o prédio novo....?!
      Super obrigado!!

      Excluir
  10. Rindo até agora ksksksks, muito boa essa ksksks.
    desculpas, mas eu estou rindo de todos ksksks até do juiz ksksksks...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Bah..... eu também estou dando risadas de mim mesmo... rsrsrsrsrs
      Pensa numa rezadeira que sabe o que faz...!!!

      Excluir
  11. Kskkskskskks eu morro de medo 😱 de viagem, Dr. Isso foi em Breves?
    Bem que eu ouvir falar de visagem lá 😱 Cruz credo,
    Kskskks não imagino a Sena curuzzzzzzissss ksksks

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi, guria!!!!!!
      Tudo o que posso dizer é que em Brevez teve uma servidora que só trabalhou 1 dia! Disse que viu uma visagem quando chegou às 7h da manhã pra trabalhar!!

      Excluir
    2. Credo Dr. Agora vou passar longe de lá 😬😬😖

      Excluir
    3. Não te preocupas... ele só aparece bem cedinho pela manhã!!

      Excluir
  12. Esse fantasma...era meio de vida. Não era de morte.

    ResponderExcluir
  13. O problema são os VIVOS, Thaís... sempre os VIVOS... rsrsrsrsrsrsrs

    ResponderExcluir

Bem vindo! Comente, incentive o blogue!