D. Socorro e os Labios da Viúva, Pitanga e da Janete
Originalmente publicado no antigo blog
"Menna Comentários", precursor deste.
Data da postagem original: 12.04.2016.
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“Ah, doutor… meu advogado é Jesus!”.
"Ai, ai, ai…” Seguido de um suspiro meu.
Isso acontece com muita frequência. Com uns, porque são realmente pessoas simples, entendem que têm razão, e então cruzam os braços e ficam irredutíveis, desdenhando da necessidade de advogado. Outros, malandros, querem se passar pelas pessoas simples que acreditam que tem razão. Outros, ainda, porque acham que gastarão dinheiro com advogado.
Enfim, seja como for, Jesus é muito lembrado em audiências. Aliás, há os que dizem:
“Doutor, para mim é Deus no céu e o senhor aqui na Terra”.
Socorro!
Não, não é um pedido de ajuda: D. Socorro era a campeã de pedir os préstimos jurídicos de Jesus. Ela era dona de um pequeno salão de beleza e anunciava que fazia, também, “Maquiagem Definitiva”. Não sei se a grafia está certa, mas era assim que estava no cartãozinho que ela distribuía.
“Não é tatuagem”, ela explicava, é “Maquiagem Definitiva”.
Acontece que era comum as cliente da D. Socorro, insatisfeitas por algum motivo, processar D. Socorro no Juizado Especial (aquele das “pequenas causas”).
D. Viúva (era assim que era chamada, parece que estava, já no quarto marido e jamais se divorciou de nenhum!!), era uma dessas que processaram a Socorro.
"Olha aqui, doutor” e D. Viúva espichava o beiço. “Olha como eu fiquei, doutor…”
Eu me esforcei, juro que me esforcei…
“Olha doutor!” Ela insistia… eu precisava de uma pista!! “Meu lábio tá maior de um lado do que no outro, doutor”, dizia indignada!
“Ãããnnh….” Era o máximo que eu conseguia. Graças à Deus, antes que eu tivesse de dizer alguma coisa, D. Socorro justificava, com cara de poucos amigos:
“Doutor, olha aqui (e quase pegava no lábio da D. Viúva)! Tá vendo? Foi só o contorno que eu fiz, doutor, não foi preenchimento! Fala pro doutor, Viúva, fala!”
Eu confesso que não entendia nada. Fosse na Suécia, haveria perícias na D. Viúva, exames detalhados, verificação das habilidades e licenças da D. Socorro, enfim, todo um arsenal de prova técnica… Mas a Suécia está há milhares de quilômetros! Aqui no Marajó, com a estrutura que podemos ter, se for submeter a tudo isso, as duas estarão mortinhas e enterradas antes de marcar a data da perícia… na verdade, eu acho que eu mesmo já estarei morto! Então, sempre fico torcendo para um acordo, num caso desses.
Pois apesar da choradeira inicial, a D. Socorro sempre dava jeito de fazer um acordo. E era boa mesmo nisso. Prometia um retorno gratuito para algum reparo, e sempre acabava, ainda, empurrando algum outro procedimento das suas clientes, de modo que muitas vezes, ainda saía ganhando alguma coisa.
Lábios era sempre a reclamação mais comum. Lembro da audiência da D. Pitanga. Não me lembro mais o nome, Pitanga era apelido. Dizem que uma referência à facilidade com que nasce o pé de pitanga. Dizem que em qualquer lugar, frutifica. O pessoal fala isso de modo diferente: diz que pitanga, “frutifica" em qualquer lugar. Tá bem, o verbo é “dar”! Enfim…
“Ah, doutor, meu advogado é Jesus!”
Isso mesmo, era D. Socorro. Ela sempre começava assim.
D. Pitanga reclamava do lábio. Lá foi ela espichar o lábio. Depois, colocou o dedo embaixo do lábio inferior e balançava como quem faz “bilu-bilu” em bebê:
“Olha, doutor. Olha como ficou caído!”.
Meu Deus. Eu arregalei os olhos sem querer, tentando entender o que NÃO estava caído na D. Pitanga, depois de quase 70 anos de muito “frutificar”.
“Ãããnnnh…” (Meu melhor argumento nesses casos. Era a deixa para D. Socorro)!
“Doutor, ela entra como a Dercy Gonçalves e quer sair como a Angelina Jolie! Sou esteticista, doutor, não sou santa. Não faço milagre!”
E assim começava, mas logo D. Socorro conseguia um acordo!
Mas o caso inusitado, mesmo, se deu com o Valério Augusto. Sim, Valério Augusto, sem apelido. Pelo menos, foi assim que o meirinho chamou:
“D. Socorro, Valério Augusto, passar para audiência”.
Entrou D. Socorro e uma moça bonita atrás; chamava a atenção o cabelo bem escuro e liso e a boca como quem já entra mandando beijinho, com os lábios esticados para frente!
Esperei um segundo para ver se entrava algum “Valério Augusto” e nada. Olhei para o Goela (o meirinho) e ele só olhou para a moça de lábio espichado. Entendi! Ainda bem que não dei nenhuma mancada. E entendi, também, porque o Goela não chamou por apelido: ele sempre fazia isso comigo. Se achava que eu ia fazer confusão, chamava pelo nome, só pra ver minhas gafes! Mas, dessa vez, eu consegui escapar. … estava começando a conhecer as armações do Goela.
Iniciei a audiência e lá veio D. Socorro:
“Ah, doutor, meu advogado é Jesus!”
Mas dessa vez, diferente de muitas outras, pelo menos, eu conseguia ver o problema! Eram os lábios de Valério Augusto! Mas não arrisquei. Perguntei:
“Então, qual o problema…” Fiz as reticências de propósito, esperando que Valério Augusto me dissesse como gostaria de ser chamado ou chamada. Ele entendeu, ufa!
“Janetche, Doutor!” Assim, com “ch" para o “te" do “Janete" sair bem chiado: Janetchhhe”!
“Sim, Janete” (meu “Janete foi normal). “Qual o problema?” Era o lábio… mas já estava calejado, não quis arriscar!
“Meus lábios, doutor! Ela não fez o que prometeu”.
Fiquei até feliz. Acertei uma nos casos contra D. Socorro, que eu nunca adivinhava qual era o problema!
Usei aquele argumento para esperar D. Socorro:
“Ãããnnnh…”
“Ah, doutor, não tem o que fazer…” Falou D. Socorro.
“Mas ela prometeu, Doutor”, atalhou Janetchhhhe!
De fato os lábios estavam estranhos. Era até difícil parar de olhar. Formavam um bico MESMO! Pensei que pra esse caso, só uma intervenção cirúrgica para tirar o bico que ficou.
Daí, D. Socorro falou, já se alterando:
“Doutor, esse não dá. Não tem como aumentar mais os lábios da Janete!"
…
“Ãããnnh…"
Por Luís Augusto Menna Barreto