— … tu tens que ir lá, Goela, pelo amor de Deus! Só tu pode resolver isso, vai lá!
Era a Milagres chorando as pitangas para o Goela. O Merece, seu filho, havia sido preso… de novo! Por briga… de novo!
— Tá doida que eu vou lá, Milagres?! Tu já não pediste pro Ruela ir?
Ruela era o filho mais velho da Milagres. Merece, o mais novo. Entre os dois havia outros cinco!
Houve uma briga no campo de futebol, durante o campeonato da cidade… daí, o Merece, que sempre foi esquentado, foi um dos que puxou a briga. A PM fez o de sempre: como o efetivo total era de dois homens (50% do efetivo da cidade), ficaram só olhando. Viram quem começou e esperaram… quando os brigões começam a cansar, eles entraram com o cacetete na mão e pronto! O pessoal mais esperto saiu correndo. Eles foram direto em quem começou abriga e recolheram!
Daí que o Merece foi preso.
Quando chegou a notícia, à noitinha, para a Milagres, ela quase desmaiou, subiu a pressão, tiveram que abanar, dar água com açúcar, essas coisas… daí que a Milagres mandou o Ruela, filho mais velho, à noite mesmo, na delegacia, ver se fazia alguma coisa.
Quando o Ruela chegou lá, o delegado não estava. Estava só o Brédi-Piti (que é um preso que toma conta da delegacia quando tá respondendo algum processo) e o Tonelada, um dos policiais que prenderam o Merece. O carcereiro Fechadura tinha ido para o Canaticu*, numa diligência. Daí que o Tonelada resolveu ficar ali, esperando, porque não confia em preso cuidando de preso.
Quando o Ruela chegou, pediu pra falar com o Merece, pra ver o que tinha acontecido. O Tonelada, foi estranhamente gentil:
— Ah, pois não, podes vir. — E foi entrando na carceragem, na ala das duas celas da delegacia, uma de frente para outra com um corredorzinho no meio. O Tonelada foi na frente, abriu a cela e o Merece tava lá, com o rosto inchado, deitado no papelão que é a “cama" daquela cela. O Ruela, vendo o irmão, foi entrando. Quando estava bem na porta, o Tonelada colocou a mão nas costas do Ruela, deu um empurrão nele e trancou a cela!
— Tá pensando que é colegial?, vindo buscar o irmãozinho que brigou? Vai ficar aí, pra aprender!
— Mas Tonelada, eu não fiz nada, abre aqui!
— Espera o delegado chegar!
O delegado só voltaria na quarta-feira, e era domingo, ainda!.
Quando chegou a notícia que o Ruela ficou preso com o Merece, a Milagres foi levada para o hospital. Chamaram até a ambulância, mas o tempo que o Manobra, motorista da ambulância, levou para achar a chave, já haviam levado a Milagres num “carro de mão” (daqueles que os carregadores da beira usam para fazer os fretes do navio até os comércios!
Pois foi lá no hospital que apareceu o Rui Barbosa. Rui Barbosa não era nome, era apelido. Filho do Mariposa, um homem abastado na cidade, o Rui Barbosa, nascido João Paulo de Deus, resolveu que iria estudar direito. E foi-se pra capital. Em Belém, cursa direito e fica durante todo o período letivo por lá, voltando pro Marajó nas férias. Na primeira vez que voltou, já veio com um livro embaixo do braço: “Oração aos Moços” de Riu Barbosa. E inventou de querer ler para os amigos. Na terceira linha o pessoal começou a bocejar e no meio da primeira página alguém gritou: “cala a boca, Rui Barbosa”. Pronto. Virou Rui Barbosa. Estava já no sexto semestre de direito. E era sobrinho da Milagres. Foi ver a tia no hospital e ela logo pediu para ele ver se fazia alguma coisa pelo Merece. Lá foi o Rui Barbosa.
— Boa noite, Policial.
— Tá de onda comigo, Rui? Te conheço desde moleque e tu sempre me chamaste de Tonelada. O que é que tu queres?
— Falar com meu cliente.
— Teu o quê?
— Meu cliente, seu Policial! O cidadão que está com a liberdade cerceada por ato arbitrário encontrando-se ilegalmente segregado.
O Tonelada não entendeu coisa nenhuma:
Tu estás querendo falar com o Merece?
— Isso, com o cidadão Virgílio Augusto de Deus Filho! (Era o nome do Merece).
O Brédi deu uma risadinha discreta. O Tonelada ficou gentil de novo!
— Pois não, doutor, por aqui!
Ter sido chamado de “doutor" arrepiou o Rui Barbosa que sentiu uma indescritível emoção! Entrou garboso pelo corredor da carceragem. Tonelada abriu a Cela. Colocou a mão nas costas do Rui Barbosa…
…
… isso! Exatamente. Estavam presos, agora, o Merece, o Ruela e o Rui Barbosa. E a Milagres chorando para o Goela.
— … mas tu não mandaste também o Rui Barbosa lá na delegacia, Milagres?
— Foi, Goela… E agora estão os três presos Por lá. Faz alguma coisa pelo amor de Deus!
— Vou fazer sim: vou é ficar longe da delegacia! Tu tá é doida de pensar que eu vou lá! Se o Tonelada já prendeu três, pra prender quatro é um instantinho!.
Mas enfim… Milagres incomodou tanto o Goela, foi segurando a manga dele até o fórum, que o Goela disse:
— Tá, Milagres, vou fazer o seguinte: vou falar com o doutor. Ele que veja o que vai fazer!
A Milagres aparentemente se conformou com aquilo. Mas não foi embora. Foi pra praça e ficou no banco que fica de frente para a entrada do fórum.
— Doutor…? — Foi abrindo a porta e já falando sem pedir licença.
Eu estava lendo um processo. Nem levantei a cabeça, mas levantei os olhos por cima do óculos.
— Doutor, a Milagres vai fazer onda.
— Hein?
— Seguinte, doutor: o Merece brigou na bola e o Tonelada prendeu, daí a Milagres disse pro Ruela ir buscar e o Tonelada Prendeu, daí a Milagres falou com o Rui Barbosa, e o Tonelada prendeu… ela vai vir aqui fazer onda.
Eu confesso que não entendi nada. Fiquei um instante olhando pro Goela.
— Diz que a Milagres tá vindo aí, doutor. Diz que tá sentada na praça esperando a Maria Sem Sossego pra ficar gritando “justiiiiiiiça" na frente do fórum, até o senhor fazer alguma coisa.
Ai, ai, ai… Eu lembro que o dia estava bem calmo no forum. Mal se ouvia as conversas da Tutela com a D. Boneca, na cozinha do fórum, não tinha nenhuma audiência para aquela manhã… enfim, era um dia tranquilo. Daí fiquei imaginando a Maria Sem Sossego gritando na frente do fórum, no sol, a manhã inteira, segurando um cartaz de alguém que deu um litro de açaí pra ela ficar gritando e fiquei com os cabelos da nuca arrepiado! Daí pensei que ter que aguentar duas gritando na frente do forum seria demais!
— Chama o delegado!
— Tá em Belém, doutor!
— Chama o Fechadura!
— Tá pro Canaticu!
— Chama o Tonelada!
— Doutor, o senhor me desculpe: o Tonelada prendeu o Merece; o Ruela foi lá, ele prendeu o Ruela; o Rui foi lá, ele prendeu o Rui… vô nada, doutor!
Ai, ai, ai….
Pensei na calma da manhã… imaginei a Maria Sem Sossego e a Milagres gritando na frente do fórum…
— Bora! Mas tu vais comigo!
Resolvi levantar e ir até a delegacia que ficava uns trezentos metros de distância.
O Goela caminhou todo percurso ao meu lado, com a cabeça toda em pé, cumprimentando quase todos com gritos… mas quando chegamos no portão da delegacia, ele foi ficando pra trás, e não deu nem um pio.
Reconheci o Brédi Piti, que eu havia determinado a prisão por uma briga, varrendo a frente da delegacia. O Tonelada tava sentado, de olho no Brédi. Quando me viu, ficou em pé da maneira mais rápida que seus 120 quilos permitem!
— Doutor, ele está varrendo, mas estou de olho nele!
— Relaxa, Tonelada. Vim ver os outros. O…
— Merece, Ruela e Rui Barbosa! — O Goela falou por cima do meu ombro. Achei que o Tonelada fuzilou ele com os olhos.
— Tão presos, doutor!
— Eu sei, Tonelada. Quero falar com eles!
Foi então que o Tonelada mudou de atitude! Ficou gentil de repente:
— Ah, doutor, pois não, venha por aqui! — O Tonelada tirou a cadeira da frente e abriu passagem indicando onde era pra eu ir.
O Brédi Piti arregalou os olhos. O Goela nem passou da porta da ala da carceragem!
Quando o Tonelada pegou a chave da cela, os três começaram a falar ao mesmo tempo.
— CALA A BOCA! — Assim, gritado. Até o silêncio ficou quieto!
O Tonelada abriu a porta, e eu fui entrando! Os olhos do Brédi Piti quase saltaram das órbitas. Nunca vi o Goela em silêncio por tanto tempo.
…
Aquele dia foi estranho! Por um momento, eu podia jurar que senti a mão do tonelada em minhas costas, quando eu estava na porta da cela!
E nunca vi presos saírem da cadeia em tanto silêncio.
Por Luís Augusto Menna Barreto
*Canaticu é um rio do arquipélago do Marajó, que leva a comunidades distantes até 12 horas de viagem de barco, da sede do Município de Curralinho.