sábado, 6 de abril de 2019

O CIRCO (versão completa) de ANA ISABEL ROCHA MACEDO

O CIRCO

Por ANA ISABEL ROCHA MACEDO 
Já perdi tantas laranjas ao jogá-las para cima...!
Eu era encantada com o malabarismo. Mas meus malabares eram as laranjas maduras, porque depois eu as chupava todas. Não fui a melhor infante malabarista. Mas fui malabarista, ainda infante. Porém, tive minha primeira pirueta interrompida, quando amei aos 10 anos de idade. Saltei da infância, para outra fase, que até hoje não sei definir que fase era aquela. Aí mudei de encanto e adquiri de verdade um ofício. Passei quatro anos lá em cima, no trapézio. Voava, voava com minhas asas de sentimentos, e não caía nem nos saltos mortais. 
Nasci no circo. Eu era filha do circo. E o tempo passava, e eu continuava no circo. 
A melhor trapezista! Eu com onze, com doze, com treze, com quatorze anos, e o espaço... Aquele instante entre o soltar as mãos e novamente prendê-las era o momento, o meu momento. 
No entanto, certo dia, entre um salto e outro, não sei o porquê daquilo, foi como se eu tivesse de olhar. Era mais forte do que minha vontade, mais imperioso do que a prudência. Então, cedi. E eu olhei. Olhei para baixo e vi o domador dos leões. Aí... 
Perdi o equilíbrio. Caí. 

II 
Quando meu corpo bateu na rede de proteção, tornou a subir e novamente desceu, não mais na rede caiu. Dois braços fortes e seguros me ampararam, e um olhar profundo encontrou o meu e atravessou minha alma. Tudo já não era o mesmo. O universo, de repente, mudara de cor. 
Quando ele tomou minha mão, eu soube que os meus caminhos, daí para frente, seriam outros. Não olhei para trás. O último salto eu já tinha dado. Todos viram que aquilo era um adeus. Um amor que durara quatro anos de uma quase infância. Um amor AMOR, naquele instante, mudava de direção. 
A vez primeira que entrei na jaula, eu tinha quinze anos. Meu domador segurou minha mão e orientou-me que eu deveria olhar diretamente nos olhos do único leão que ali havia, naquele momento. 
Antes, porém, me disse que a fera deveria sentir em mim o cheiro dele e, para isso, ele havia de me passar esse cheiro. E foram tantos os beijos e abraços... Todas as carícias possíveis e impossíveis... E a terra virando céu e o céu virando mar... E o desejo sendo os donos de nossas vontades... E os nossos cheiros entrando em nós... E nós nos transformando em feras e nos lambendo, nos mastigando, nos engolindo... E subindo alto... Muito alto... Mais alto ainda... Até que planamos... E viramos penas!!! E descendo em voo lento... Cada vez mais lento... Nem mais éramos nós... Até que chegamos ao chão de mato... E aí... nos demos de presente ao sono. 
Quando entrei na jaula e olhei firme para os olhos do leão, o meu cheiro não era mais só o meu cheiro. Havia nele o cheiro do meu domador. 
E assim os anos passaram. 

III 
Um dia, no entanto, reconheci que havia certa tristeza no olhar do domador. E quanto mais o tempo ia para frente, mais feras ele domava, e mais a tristeza saltava de seu olhar. 
Horas havia em que ele desaparecia e, por mais que eu inventasse jeito de saber onde ele se escondia, meus intentos não apresentavam sucesso. 
Ele reaparecia, e eu lhe perguntava por onde andava, e a resposta vinha sempre como verso de cantiga: nas nuvens da alegria; nos tempos de antanho; nos risos dos insanos; nas gargantas das crianças... 
Uma vez, depois do amor, eu lhe perguntei sobre a dor que enlanguescia seu olhar. Ele me respondeu que havia uma fera que desafiava seus poderes. Disse que estava quase a se dar por vencido, pois, por mais que tentasse, não conseguia domá-la. 
Uma fera que desafiava os poderes do meu domador!? Como assim?! Eu nunca tinha visto uma que resistisse ao poder de mando daquele homem. Durante aqueles anos todos, eu entrava sempre junto com ele nas jaulas, e as feras lambiam meus pés, minhas mãos, se aconchegavam em mim. Eu sabia que o poder de domar o instinto daqueles animais estava nele. Era por ele que elas me aceitavam. Era pelo cheiro dele impregnado em mim que elas não me atacavam. Como então crer que havia uma fera que seus poderes não conseguiam domá-la?! Que fera seria esta?! 
Mas com o passar do tempo, os súbitos desaparecimentos do meu domador ficaram mais amiúdes e mais demorados. E em certo dia, que entrou por noite adentro, seu desaparecer se alongou e muito passou da hora de alimentar os animais. 
Eu, então, confiante no cheiro que, há duas noites passadas, ele deixara em mim, quando me amara com sua voracidade contumaz, resolvi entrar sozinha na jaula primeira, a fim de alimentar os bichos ferozes. 
Aí... Talvez não tivesse transcorrido ainda nem meio minuto que eu estava sozinha dentro da jaula, vez que nem a grade-porta dera tempo de eu fechar, quando o leão mais velho me atacou e jogou-me longe uns dois metros. Lembro-me do vermelho do meu sangue jorrando em minha frente, e das outras feras se aproximando e emitindo um som do qual jamais me esquecerei. Não sei se me recordo de tudo, mas o que retenho na memória não condiz com uma cena desta nossa realidade. O que guardo em mim é um acontecer típico de um universo fantasmagórico. As minhas lembranças desse momento são todas de várias imagens superpostas e moventes dentro de um mar de sangue. Dentre elas, há um rosto de palhaço. 
Depois... Só depois, bem depois, fui dar por mim em um leito de hospital, toda enfaixada e com um grande curativo no rosto. Quando isso se deu, um mês já havia se passado desde que eu sofrera o ataque das feras. 
Contaram-me então que, no instante em que o leão me atacou, o grito que eu dei ecoou em toda área do circo. Foi aí, sem titubear um segundo, que o mais novo palhaço do circo, arrancou, do torno, o ferro de tocaiar as feras, que o domador sempre usara no período em que as domava. Como um relâmpago, ele entrou na jaula e conseguiu me resgatar dos bichos sanguinários. 
À medida em que eu me recuperava, sentia que algo havia mudado em mim. Não, não me refiro às mudanças físicas ocorridas, à grande cicatriz com a qual eu ficara no rosto, os queloides que atravessavam meu tronco e as marcas feias que ficaram em meus braços. Na verdade, eu sentia que dentro de mim, algo se apagara. 
Levei muito tempo no hospital. Quanto tempo? Não sei.
Às vezes, o domador aparecia para me visitar. Porém, a palavra nos faltava. Eu esperava que ele tocasse no assunto do acidente, mas ele nada falava. Talvez eu quisesse lhe culpar por ele não estar no circo, na hora de alimentar as feras. Talvez eu quisesse saber o porquê de ele desaparecer tanto. 
Como ele nada falava, eu me calava e acumulava o silêncio em meu coração. Certo dia, quando ele já estava a se retirar, lhe fiz somente esta pergunta:
       — Por quê?
Ele apenas se voltou, olhou fundo para mim e nada respondeu. Só seu olhar me disse o que eu não esperava: — Adeus! 
Quando recebi alta do hospital e voltei ao circo, outro domador cuidava das feras. O meu domador eclipsara. Nem em seu nome alguém tocava. 
Passei então a não ter uma função certa no circo. Apenas ajudava em alguns afazeres aqui e ali. Com aquele aspecto, não seria conveniente para o circo me exibir no picadeiro. 
E eu, que todos me diziam ser tão bonita, com a nova aparência, fiquei tão feia... Com um rosto quase assombroso. 

IV 
Uma noite, na hora do espetáculo, quando os aplausos e os risos ecoavam por todo o circo, senti vontade de espiar o que fazia aquele mais novo palhaço, para que o público vibrasse daquele jeito. Foi, então, que ao me aproximar da cortina que me esconderia, para dali assistir ao palhaço, passei em frente a um espelho grande, pelo qual os artistas se miravam, no instante anterior de entrar em cena. 
Deus de todos os horrores! O que eu via no espelho era um assombro, era um monstro, não podia ser eu. Mas era eu. Aos poucos, esse entendimento foi me chegando e, com ele, o choro convulsivo que vinha do mais profundo do meu ser. E eu chorava dobrada sobre meu próprio corpo, com a pena imensa daquilo que restara de mim. 
Foi aí que um homem grande, muito magro, de compleição nada forte, me viu, eu não sei como, e me susteve pela cintura. Levou-me até o seu trailer e fez-me sentar em uma cadeira. Esperou um pouco e disse-me: 
— Deite-se, menina! Chora o quanto quiser! Deságua teu pranto no travesseiro! Depois durma! O sono às vezes cura feridas — disse isso e começou a sair. — É minha hora de entrar no picadeiro. Mais tarde eu volto - aí saiu. 
Horas depois, quando acordei, tentei falar. Eu tinha sede, muita sede, mas minha voz era uma rouquidão só. E o homem estava lá. Somente naquele instante, eu o reconheci. Ele era o malabarista maior. 

Continuei no trailer, porque foi-me oferecida uma cama. Lá moravam também mais dois malabaristas. Um deles era apenas aprendiz, mas já sabia muito do malabar. 
Foi aí que comecei a ajudar na apresentação do grupo. Limpava as malabares, guardava-as com todo cuidado, e, depois de certo tempo, comecei a levá-las até o picadeiro. Mas, para isso, jogava um manto sobre minha cabeça que caía sobre meus braços, cobrindo assim as marcas que me transformavam na figura humana mais horrenda que eu vira até então. 
Nesse convívio, peguei amizade com o aprendiz e ele me ensinou mais movimentos do malabarismo. E de pouco em pouco, fui me lembrando de alguns movimentos e aprendendo mais, de fato, a arte do malabar. 
Um dia, estava eu a treinar atrás do trailer, quando, assim que parei para descansar de uma série mais difícil do jogo, percebi que o malabarista maior estava a me observar. Fiquei um tanto sem graça, mas arranjei, como desculpa, dizer-lhe que eu estava apenas a brincar. E qual não foi o meu espanto quando ele, com semblante fechado e voz de seriedade, me disse: 
— Amanhã, tu entras no picadeiro e, junto com o aprendiz, apresentarás um número — afirmou aquilo, deu-me as costas e saiu. 
Eu não tive o que falar... Mas no dia seguinte, no meio da tarde, ele chegou no trailer acompanhado da moça que fazia a maquiagem dos artistas e também acompanhado do palhaço mais novo do circo. 
Estranhei o fato de, já naquela hora, o palhaço estar todo pintado. Percebi logo que ele, além de não estar disposto à conversa, pois apenas resmungara umas duas ou três palavras desde que ali entrara, também agia como se eu ali não estivesse. Não me olhava de forma alguma. Imaginei que o horror da minha aparência o afastasse de mim. 
Minha surpresa foi grande, quando, depois de certo tempo em que o malabarista explicava ao palhaço e à moça maquiadora sobre a pintura de uma máscara em um modelo, os três voltaram-se e olharam-me. Só aí compreendi que o modelo era eu, e a máscara era para mim. 
Assim foi que a maquiadora pintou os meus braços e o meu colo, aproveitando os queloides e construindo desenhos. 
Quando o palhaço começou o seu trabalho, vi logo que a sua tarefa era a de cuidar do meu rosto. Ele teria de transformar o horror da minha face em uma máscara que poderia ser olhada sem causar repulsa. E isso ele fez. 
Durante o tempo em que o palhaço em meu rosto tocava, eu de olhos fechados, refletia sobre o fato de aquelas mãos terem, um dia, me arrancado das garras das feras, e, agora, essas mesmas mãos estarem ali para amenizar o que aquelas feras me causaram. E aí eu concluía quão estranha é a vida e quão estranhos são os caminhos, nela, a serem percorridos. 

VI 
À noite, junto com o malabarista aprendiz, fiz minha primeira apresentação com as malabares. E não posso negar que foi um sucesso. 
Um mês, dois, três... Eu já era quase uma malabarista. 
Certo dia, entretanto, no momento da apresentação, ao fazer um dos movimentos com as malabares, meu olhar se deparou com o trapézio. Aí... pela primeira vez errei em público o movimento e deixei uma das peças rolar pelo chão. 
Fiquei triste com o meu primeiro desacerto, assim para todos verem, no jogo do malabar. Mas continuei me apresentando. 
Um mês, mais outro, cinco meses, um ano... Aí eu já era uma malabarista de verdade. 
Mas havia o trapézio lá em cima que, de quando em quando, puxava o meu olhar. 
Durante todo este tempo, o palhaço que me salvara dos leões, mesmo sem me dizer uma única palavra, ensinou-me a pintar a minha máscara. Entretanto, reparei que ele nunca se apresentava sem a pintura no rosto, sem o nariz de bola vermelha e sem o chapéu de três pontas que quase encobria seus olhos. 
Isso me deu a ideia, que para mim foi uma libertação. Passei também a viver sempre pintada. Aí não precisei mais andar pelos cantos escuros, a fim de esconder o monstro que eu me tornara. Agora, eu era uma figura excêntrica, quase mítica. Chamava a atenção por onde passava, mas eu não era mais um horror. 

VII 
Foi então, que em uma tarde, quando quase todos do circo dormiam o sono da sesta, o trapézio me tentou mais forte, e eu fui até ele. Olhei-o, olhei-o... Lembrei- me dos tempos em que eu o dominava... Lembrei-me do amor antigo... de mim quase menina... do meu primeiro adeus... E senti saudades. 
Subi passo a passo, tentando a leveza de outros tempos. Fiquei lá em cima! Olhei para baixo, e o que havia embaixo nada me atraiu. Só o espaço em minha frente me chamava. Passei as mãos pelo sustentador e... O espaço... Minhas mãos apertando o sustentador... O espaço me chamando... Meu corpo se soltando... O espaço... O espaço... O espaço... Eu no ar... Um balanço...Mais outro... Ainda outro... A cambalhota... Agora. Não, não deu. Agoooora!!!! 
AAAAAAiiiiiiiiiii!!!!!!!! 
E o grito continuou soando em meu ouvido, mesmo quando meu corpo já estava no chão. 
E as pessoas, muitas pessoas, muitos gritos: — Socoooorro!! Ela caiu!
— Que horror!! Sem proteção!
— Depressa! Chamem a ambulância! 
— Depressa! Depressa! Depressa! Depressa! Depressa!!!!! 
No meio de tantos rostos, o rosto do palhaço mais novo. Vi quando ele arrancou o chapéu de três bicos. Aí eu vi. Tentei falar. Não pude. Eu vi os olhos. Reconheci os olhos. E eles foram inundados. Ele tirou o nariz de bola, pegou a camisa, que molhada com as próprias lágrimas, esfregava no rosto para tirar a tinta. Era ele! E foi ele que baixou a cabeça e me beijou. 
Depois disso, uma força que veio do mais profundo de mim fez-me dizer: — Meu.. domador...
E aquilo me bastou. Fechei os olhos.
Morri. 
Barra Grande – BA 
Novembro - 2016 


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Luís Augusto Menna Barreto