bora cronicar
Hoje, o 'bora cronicar' é presenteado com a prosa suave e agradável de um dos mais humanos e talentosos juízes que já tive o prazer de conhecer: meu dileto amigo, Dr. Andrian de Lucena Galindo, pernambucano, que já emprestou sua ciência e humanidade ao Estado do Pará, fazendo-se meu colega por quase 4 anos!
Amigos do blogue, aproveitem essa maravilhosa e rara oportunidade, de terem aos olhos o carinho e gentileza das palavras deste meu amigo:
O júri, a lei e o sentimento de justiça
Havia assumido a magistratura há pouco, no Estado do Pará, e quase tudo era novidade. Não que a vida fosse ruim no interior. Era apenas diferente. O exercício da função, por sua vez, exigia um aprendizado constante e muito jogo de cintura para driblar as carências de pessoal e o excesso de demanda.
Mas uma das coisas que mais preocupava os juízes neófitos era a realização dos tribunais do júri. Para quem não é da área importante explicar. O tribunal do júri – ou simplesmente “júri” – é um instituto previsto em nossa constituição federal que assegura ao cidadão o direito de ser julgado por seus pares, e não pelo juiz apenas, quando a acusação versar sobre crimes dolosos contra a vida.
Os mais comuns desses crimes são os de homicídio e tentativa de homicídio. Pelo menos 95% dos júris se referem a tais crimes.
Os julgadores novatos temem o júri porque há possibilidade de embates entre promotores e advogados, na busca pela conquista do coração dos jurados, e todos os problemas surgidos na sessão devem ser resolvidos de imediato. No júri não existe muito espaço para pedir ajuda aos universitários, aos livros ou ao google. O juiz deve resolver os incidentes na hora, “feito caldo de cana” como se diz na gíria nordestina.
Recém chegado à Comarca de Breu Branco, distante 420 quilômetros de Belém, segui conselho de um colega mais experiente e marquei logo um júri: os fantasmas devem ser enfrentados o quanto antes, para deixarem de assustar. Pedi à chefe de secretaria que me indicasse quem estava na cadeia à espera de julgamento há mais tempo. A chefe era uma destemida e competente cearense que em busca da estabilidade econômica largara família e amigos em Fortaleza para administrar uma secretaria complicada no meio da selva amazônica, e me respondeu de imediato: “o preso mais antigo que temos é do caso do duelo”.
Marquei a sessão para o mês seguinte.
Mas antes de conduzir o júri era preciso ao menos assistir um, para aprender os macetes que não se ensinam nos manuais. Fiz o curso de direito à noite, trabalhando durante o dia, e por isso sobrava teoria e faltava prática.
Um conterrâneo e amigo juiz, pernambucano de comarca vizinha – 150 quilômetros no interior no Pará configura vizinhança –, recebeu-me para uma aula prática, num júri que durou até uma da manhã do dia 24 de junho de 2004. Em seguida jantamos uma pizza com refrigerante no único estabelecimento aberto na cidade, assuntando como deveria estar a festa de São João na terrinha.
Já começo a tergiversar, pois não me propus nessa crônica a falar de pizzas nem da saudade da terra natal.
Voltemos ao tema, pois.
A realização de um júri demanda muito esforço prévio. Quem vê apenas a sessão de julgamento não imagina que é preciso antes sortear jurados, intimá-los, providenciar transporte de presos, requisitar policiais militares, providenciar comida para todos os participantes do julgamento. E se no fórum não houvesse recinto próprio, o que era o caso, os servidores deveriam adequar o auditório da Câmara de Vereadores.
Após tantos preparativos, chegou o grande dia, e eu achava que estava preparado, após noites estudando a lei e o processo.
O réu chamava-se Antônio e estava preso há mais de ano e meio, acusado de homicídio num duelo. Essa referência, por óbvios motivos, conduziu-me, no início, a pensar num crime repleto de romantismo. Disputando o amor de uma mulher, dois cavalheiros teriam empunhado revólveres, e após dez passos dados, de costas um para o outro, o mais rápido teria conseguido disparar primeiro. Honra vingada à custa da vida de um e da liberdade do outro.
Nada mais distante da realidade.
Antônio era morador de rua e vivia bêbado numa das praças centrais da cidade. Certa tarde estava embriagado, como de costume, e entrou em conflito com outro morador de rua por uma bebida barata vendida em pequenas garrafas pet de 300 ml – a cachaça da marca “Duelo”. Uma pequena faca de serra foi usada por Antônio para desferir apenas um golpe certeiro e fatal na jugular da vítima.
Instalada a sessão, dentre os 21 jurados previamente sorteados foram selecionados 7 para o conselho de sentença. Em seguida, ouvido um policial militar que apenas relatou ter prendido Antônio, ainda com a faca ensaguentada, completamente bêbado, momentos após o crime. Antônio foi ouvido em seguida e disse não lembrar de nada, pois estava muito bêbado.
Após ouvir testemunha e o acusado, manda a lei que se realizem os debates. Promotor e defensor apresentam argumentos para os jurados, tentando convencê-los do acerto de suas teses.
As perplexidades tiveram início.
Não tanto com a atuação da Promotora, que de forma técnica pediu a condenação entendendo provado o crime, como se esperava de um representante do Ministério Público.
Causou total surpresa a linha de ação do defensor público. Lamentavelmente não recordo de seu nome, pois merecia uma homenagem. Era um típico caboclo paraense, gordinho, com notáveis feições indígenas, afável, simpático, e transmitia uma impressão bonachona. Pode até ser preconceito, mas não coloquei muita fé na defesa, mais ainda quando o defensor adiantou a tese que pretendia sustentar – negativa de autoria.
“Dr. Defensor, negativa de autoria?”, perguntei sem conseguir esconder o espanto. “Sim, Excelência. Negativa de autoria.”, respondeu-me com tranquilidade.
Pensei ser uma temeridade tentar convencer os jurados de que o acusado não havia esfaqueado a vítima se nem mesmo ele, o acusado, negava a prática do crime. Passou-me pela cabeça a possibilidade de declarar o réu indefeso e remarcar o julgamento, caminho extremo tomado quando se verifica grande deficiência na defesa.
Minhas certezas apenas começavam a estremecer. Eu aprenderia muito com os eventos daquele dia e com o gordinho cujo talento e sabedoria eu menosprezara.
O defensor intentou transmitir como explícita mensagem que não havia prova suficiente para a condenação, pois se houvesse ocorrido um crime numa das praças principais da cidade, no meio da tarde, com diversas observadores, muitos testemunhos deveriam constar do processo, e não apenas o de um policial que sequer viu o golpe.
Mas havia uma outra mensagem, mais poderosa e subliminar, e ela gritava aos jurados afirmando que a não havia prova alguma porque casos como aquele não interessavam para a sociedade. Dizia aos jurados que Antônio, um ébrio contumaz sem casa e sem família, bem como a falecida vítima, eram tão desprezados que sequer despertavam no Estado a consciência da necessidade de uma apuração decente do ocorrido.
Ambos os excluídos, o encarcerado e o falecido, eram vítimas da vida, e portanto Antônio, que já pagara quase dois anos de cadeia e não tinha antecedentes, merecia uma chance, pois sua culpa não havia sido provada adequadamente por desinteresse do Estado, e na dúvida o réu deveria ser favorecido.
Antônio foi absolvido pela maioria dos jurados. Simplesmente absolvido, pois o júri não precisa e sequer pode motivar suas decisões. As mensagens da defesa tocaram o coração dos jurados, e no júri é isso o que importa. Esse o sentido do júri: permitir que o senso de justiça do cidadão comum, despido de qualquer conhecimento técnico, prevaleça sobre a aplicação da lei por um juiz.
À evidência, existe um interesse social de que as leis traduzam o sentimento do justo de uma sociedade, mas isso nem sempre acontece, notadamente porque ao legislador é impossível prever as singularidades dos conflitos.
Desde esse dia, em mais de cem júris na carreira judicante de 15 anos, tenho visto muitas decisões em que o sentimento de justiça oriundo do júri não se identifica com a aplicação objetiva da lei. Mas na esmagadora maioria dos casos, com raríssimas exceções, o júri tem feito justiça aos meus olhos.
Tenho certeza de que a maioria dos presentes se convenceu do acerto da decisão naquele dia, notadamente após a leitura da sentença. Eu informei a Antônio de sua absolvição e ele não entendeu. Era pessoa muito simples e já com a capacidade de entendimento afetada pelo uso do álcool. Expliquei novamente que deixaria a cadeia e ele, amedrontado e surpreso, disse que não tinha para onde ir e pediu para dormir mais uma noite.
Lágrimas brotaram dos olhos das assessoras mas eu contive minha perplexidade, como se espera de um juiz, e fui assertivo no deferimento do pedido. Antônio dormiria mais uma noite em seu abrigo, antes de ser lançado à dureza da vida dos que não existem para a sociedade. A decisão deu-se ao arrepio da lei, evidentemente, pois cadeia não é hotel para absolvidos, mas àquela altura havia uma vida pulsando a me pressionar por uma solução humana.
Havia um sentimento social de justiça a respeitar. Certo ou errado? Não sei. Mas certamente claro e inequívoco.
Aprendi e curvei-me, simplesmente.
Andrian de Lucena Galindo
25.6.2019