sexta-feira, 28 de junho de 2019

Férias em julho!

Olá, pessoal!

Estou entrando em férias agora em julho... de novo!

É, eu sei que há pouco tempo, já estive em férias. Mas acreditem: estou precisando!

Novamente, tenho muitos projetos. E, quando eu voltar das férias, volto com companhia:

Pilha e Kadu, voltam comigo!

Então, como despedida do projeto 'bora cronicar', deixo vocês com essas duas imagens:


Parte da contra capa

Capa


Luís Augusto Menna Barreto
28.6.2019

quinta-feira, 27 de junho de 2019

bora cronicar - Ah!, Se Fosse em Marajó City...

bora cronicar

Ah!, Se Fosse em Marajó City…

Há dois dias, publiquei no blogue a crônica “O Júri, a Lei e o Sentimento de Justiça”, escrita pelo meu grande amigo, juiz de direito do Estado de Pernambuco, Dr. Andrian de Lucena Galindo. 
A crônica bombou no blogue. Ao final do primeiro dia, já era a mais lida dos últimos sete dias. E não saiu mais do topo! No dia da crônica do Dr. Andrian, o blogue teve mais visualizações do que vinha tendo e a participação de todos os amigos, seja nos comentários no blogue, seja pelo twitter, foi bem intensa. Merecidos elogios foram  por ele granjeados. A crônica foi escrita num ritmo adorável, que parecia fazer com que as palavras flutuassem em uma leitura que não cansa e, antes, descansa; massageia a alma. Some-se a esse delicioso ritmo, a mensagem que a crônica passou, sobre humanidade, sobre a vida ser muito maior e mais rica do que a lei previamente posta. Confrontou, em verdade, a Lei com a Justiça. E Dr. Andrian, o narrador e personagem, tomou a decisão exata para realçar a riqueza da vida. Viu-se entre a dignidade e a Lei, quase em opostos, e, sem titubear, optou por dignificar a vida, optou pela salomônica decisão que levou a todos um agradável (e tão necessário) sentimento de efetiva justiça! 
O caso que ele contou era pra ser efetivamente cômico. Mas ele fez do caso, poesia e ensinamento! Durante os quatro anos em que fomos colegas aqui no Estado do Pará, aprendi demais com o jeito tranquilo e tão ponderado com que ele leva a vida, com que distribui a justiça em sentenças que são, sempre, lições de sabedoria. Eu jamais saberia escrever a crônica como ele o fez. Ah!, não… eu acho que não saberia ver tamanha humanidade… meus olhos, já “viciados” pelo delicioso cotidiano marajoara, veriam a situação pelo viés do cômico, do inusitado. O fato todo aconteceu em Breu Branco, cidade ao sul de Belém, próximo de Tucuruí. Eu, porém, fiquei inevitavelmente pensando como seria, se fosse em Marajó City… 
Pra começo de conversa, Antônio, o réu, certamente teria um apelido do tipo Jon-Uêine. E, pra não ter morrido antes do júri, o promotor já não teria sido o Cava-Cova, que logrou este apelido, porque cada réu que denunciava, morria antes do júri e, assim, não conseguíamos inaugurar o Salão do Júri. Até que um dia, durante o júri do Cara-de-Cuspe*, foi o próprio Cava Cova quem morreu, tendo acabado a “maldição”.
Pois para mim, teria chegado a notícia, pelo Goela, que o Jon-Uêine teria matado o “Buchada”. E o Jon-Uêine, interrogado, negaria o fato:
— Matei não senhor, Doutor.
— Mas Jon, o Tonelada (policial militar conhecido de Marajó City) disse que te encontrou com a faca ensanguentada, ao lado do morto!
— Isso é verdade, doutor.
— Então? Vai dizer que a faca com o sangue do Buchada foi parar na tua mão por mágica?
— Doutor, eu não nego que a faca era minha. E não nego que o sangue era do Buchada. Mas não matei ele, doutor!
— Tá, Jon, então o assassino matou e colocou a faca na tua mão?
— Não, doutor, eu que peguei a faca por causa do duelo!
— Hein? Vocês duelaram?
— Não, doutor! “Duelo" é o goró, a cachaça que eu tinha conseguido e o Buchada queria pegar. Foi daí a confusão, doutor!
— Então, quer dizer que tu mataste o Buchada, por causa da cachaça?
— Matei não senhor!
— Mas Jon, tu não deste a facada nele?
— Sim senhor!
— Então foste tu que mataste ele, Jon!
— Não senhor!
Ai, ai, ai… esse “ai, ai, ai” eu só pensei. Mas estava curioso demais pra entregar-me! Continuei:
— Mas então não estou entendendo, Jon.
— Doutor, eu dei a triscada nele, mas não matei.
— “Triscada”?
— É doutor! Triscada. Foi só isso!
— Explica essa história, Joh!
— Doutor, presta atenção: — e se ajeitou na cadeira com autoridade! — Eu tava com o duelo bebendo devagarinho! Ele ficou brechando. Daí, quando eu larguei a garrada do duelo no chão, pra dar uma urinada na árvore, ele veio e pegou, doutor! Foi daí que saí pra defender o que é meu, porque a gente pode defender o que é da gente, não é verdade?
— Mas não matando por causa de uma cachaça, né Jon?!
— Mas não matei, doutor!
— Mas então, pelamordedeus, o que tu fizeste?
— Doutor, não matei. Eu peguei a faca e só fiz dar uma triscadinha. Pois daí saiu a buchada pra fora. Mas não era pra tanto, doutor. Eu mesmo já levei furada mais forte. Outro dia mesmo, o Manobra levou uma furada muito maior, do Mariosa, furada pra matar, doutor, e não morreu! Ta todo dia tomando uma no açougue do Retalho. 
— E o que tem isso, Jon.
— Isso, doutor, que não matei!
— Mas ele morreu, Jon! Morreu! Morte matada! Tu mataste!
— Não, doutor. Não matei. Eu só fiz dar uma triscadinha; ele que era morredor!
Pois é… acho que em Marajó City, as coisas seriam mais ou menos assim…!

Luís Augusto Menna Barreto
27.6.2019


  • Vide a crônica “O Fila-Bóia, o Cara de Cuspe e o Júri”,  publicada em duas partes nos dias  14 e 22 de outubro de 2017, aqui no blogue!
  • * O próprio Dr. Andrian, várias vezes contava-me um poema nordestino em que o matuto falava: “eu só fiz dar uns risquinhos, o cabra que é morredor”. Eu me permiti a “licença" literária de emprestar a história do Dr. Ândrian, com o poema que ele sabe de cor!

quarta-feira, 26 de junho de 2019

bora cronicar - Micro Conto de Amor (Próprio)

bora cronicar

Micro Conto de Amor (Próprio)

Ela estava partindo. 
Ele havia partido o coração dela. Porque em algum momento, havia repartido o seu coração com outra pessoal.
Ele sequer conseguiu despedir-se. Estava pequeno perto dela, porque ao repartir-se, partiu-se! Ficou menor.
Ela estava despedaçada. Mas haveria de reconstruir-se. Porque partida, partiu levando todos os seus próprios pedaços consigo. 

Luís Augusto Menna Barreto

26.6.2019

terça-feira, 25 de junho de 2019

bora cronicar - O Júri, a Lei e o Sentimento de Justiça

bora cronicar

Hoje, o 'bora cronicar' é presenteado com a prosa suave e agradável de um dos mais humanos e talentosos juízes que já tive o prazer de conhecer: meu dileto amigo, Dr. Andrian de Lucena Galindo, pernambucano, que já emprestou sua ciência e humanidade ao Estado do Pará, fazendo-se meu colega por quase 4 anos! 
Amigos do blogue, aproveitem essa maravilhosa e rara oportunidade, de terem aos olhos o carinho e gentileza das palavras deste meu amigo:

O júri, a lei e o sentimento de justiça 

Havia assumido a magistratura há pouco, no Estado do Pará, e quase tudo era novidade. Não que a vida fosse ruim no interior. Era apenas diferente. O exercício da função, por sua vez, exigia um aprendizado constante e muito jogo de cintura para driblar as carências de pessoal e o excesso de demanda. 
Mas uma das coisas que mais preocupava os juízes neófitos era a realização dos tribunais do júri. Para quem não é da área importante explicar. O tribunal do júri – ou simplesmente “júri” – é um instituto previsto em nossa constituição federal que assegura ao cidadão o direito de ser julgado por seus pares, e não pelo juiz apenas, quando a acusação versar sobre crimes dolosos contra a vida. 
Os mais comuns desses crimes são os de homicídio e tentativa de homicídio. Pelo menos 95% dos júris se referem a tais crimes. 
Os julgadores novatos temem o júri porque há possibilidade de embates entre promotores e advogados, na busca pela conquista do coração dos jurados, e todos os problemas surgidos na sessão devem ser resolvidos de imediato. No júri não existe muito espaço para pedir ajuda aos universitários, aos livros ou ao google. O juiz deve resolver os incidentes na hora, “feito caldo de cana” como se diz na gíria nordestina. 
Recém chegado à Comarca de Breu Branco, distante 420 quilômetros de Belém, segui conselho de um colega mais experiente e marquei logo um júri: os fantasmas devem ser enfrentados o quanto antes, para deixarem de assustar. Pedi à chefe de secretaria que me indicasse quem estava na cadeia à espera de julgamento há mais tempo. A chefe era uma destemida e competente cearense que em busca da estabilidade econômica largara família e amigos em Fortaleza para administrar uma secretaria complicada no meio da selva amazônica, e me respondeu de imediato: “o preso mais antigo que temos é do caso do duelo”. 
Marquei a sessão para o mês seguinte. 
Mas antes de conduzir o júri era preciso ao menos assistir um, para aprender os macetes que não se ensinam nos manuais. Fiz o curso de direito à noite, trabalhando durante o dia, e por isso sobrava teoria e faltava prática. 
Um conterrâneo e amigo juiz, pernambucano de comarca vizinha – 150 quilômetros no interior no Pará configura vizinhança –, recebeu-me para uma aula prática, num júri que durou até uma da manhã do dia 24 de junho de 2004. Em seguida jantamos uma pizza com refrigerante no único estabelecimento aberto na cidade, assuntando como deveria estar a festa de São João na terrinha. 
Já começo a tergiversar, pois não me propus nessa crônica a falar de pizzas nem da saudade da terra natal. 
Voltemos ao tema, pois. 
A realização de um júri demanda muito esforço prévio. Quem vê apenas a sessão de julgamento não imagina que é preciso antes sortear jurados, intimá-los, providenciar transporte de presos, requisitar policiais militares, providenciar comida para todos os participantes do julgamento. E se no fórum não houvesse recinto próprio, o que era o caso, os servidores deveriam adequar o auditório da Câmara de Vereadores. 
Após tantos preparativos, chegou o grande dia, e eu achava que estava preparado, após noites estudando a lei e o processo. 
O réu chamava-se Antônio e estava preso há mais de ano e meio, acusado de homicídio num duelo. Essa referência, por óbvios motivos, conduziu-me, no início, a pensar num crime repleto de romantismo. Disputando o amor de uma mulher, dois cavalheiros teriam empunhado revólveres, e após dez passos dados, de costas um para o outro, o mais rápido teria conseguido disparar primeiro. Honra vingada à custa da vida de um e da liberdade do outro. 
Nada mais distante da realidade.  
Antônio era morador de rua e vivia bêbado numa das praças centrais da cidade. Certa tarde estava embriagado, como de costume, e entrou em conflito com outro morador de rua por uma bebida barata vendida em pequenas garrafas pet de 300 ml – a cachaça da marca “Duelo”. Uma pequena faca de serra foi usada por Antônio para desferir apenas um golpe certeiro e fatal na jugular da vítima. 
Instalada a sessão, dentre os 21 jurados previamente sorteados foram selecionados 7 para o conselho de sentença. Em seguida, ouvido um policial militar que apenas relatou ter prendido Antônio, ainda com a faca ensaguentada, completamente bêbado, momentos após o crime. Antônio foi ouvido em seguida e disse não lembrar de nada, pois estava muito bêbado. 
Após ouvir testemunha e o acusado, manda a lei que se realizem os debates. Promotor e defensor apresentam argumentos para os jurados, tentando convencê-los do acerto de suas teses. 
As perplexidades tiveram início. 
Não tanto com a atuação da Promotora, que de forma técnica pediu a condenação entendendo provado o crime, como se esperava de um representante do Ministério Público. 
Causou total surpresa a linha de ação do defensor público. Lamentavelmente não recordo de seu nome, pois merecia uma homenagem. Era um típico caboclo paraense, gordinho, com notáveis feições indígenas, afável, simpático, e transmitia uma impressão bonachona. Pode até ser preconceito, mas não coloquei muita fé na defesa, mais ainda quando o defensor adiantou a tese que pretendia sustentar – negativa de autoria. 
“Dr. Defensor, negativa de autoria?”, perguntei sem conseguir esconder o espanto. “Sim, Excelência. Negativa de autoria.”, respondeu-me com tranquilidade. 
Pensei ser uma temeridade tentar convencer os jurados de que o acusado não havia esfaqueado a vítima se nem mesmo ele, o acusado, negava a prática do crime. Passou-me pela cabeça a possibilidade de declarar o réu indefeso e remarcar o julgamento, caminho extremo tomado quando se verifica grande deficiência na defesa. 
Minhas certezas apenas começavam a estremecer. Eu aprenderia muito com os eventos daquele dia e com o gordinho cujo talento e sabedoria eu menosprezara. 
O defensor intentou transmitir como explícita mensagem que não havia prova suficiente para a condenação, pois se houvesse ocorrido um crime numa das praças principais da cidade, no meio da tarde, com diversas observadores, muitos testemunhos deveriam constar do processo, e não apenas o de um policial que sequer viu o golpe. 
Mas havia uma outra mensagem, mais poderosa e subliminar, e ela gritava aos jurados afirmando que a não havia prova alguma porque casos como aquele não interessavam para a sociedade. Dizia aos jurados que Antônio, um ébrio contumaz sem casa e sem família, bem como a falecida vítima, eram tão desprezados que sequer despertavam no Estado a consciência da necessidade de uma apuração decente do ocorrido. 
Ambos os excluídos, o encarcerado e o falecido, eram vítimas da vida, e portanto Antônio, que já pagara quase dois anos de cadeia e não tinha antecedentes, merecia uma chance, pois sua culpa não havia sido provada adequadamente por desinteresse do Estado, e na dúvida o réu deveria ser favorecido. 
Antônio foi absolvido pela maioria dos jurados. Simplesmente absolvido, pois o júri não precisa e sequer pode motivar suas decisões. As mensagens da defesa tocaram o coração dos jurados, e no júri é isso o que importa. Esse o sentido do júri: permitir que o senso de justiça do cidadão comum, despido de qualquer conhecimento técnico, prevaleça sobre a aplicação da lei por um juiz. 
À evidência, existe um interesse social de que as leis traduzam o sentimento do justo de uma sociedade, mas isso nem sempre acontece, notadamente porque ao legislador é impossível prever as singularidades dos conflitos. 
Desde esse dia, em mais de cem júris na carreira judicante de 15 anos, tenho visto muitas decisões em que o sentimento de justiça oriundo do júri não se identifica com a aplicação objetiva da lei. Mas na esmagadora maioria dos casos, com raríssimas exceções, o júri tem feito justiça aos meus olhos. 
Tenho certeza de que a maioria dos presentes se convenceu do acerto da decisão naquele dia, notadamente após a leitura da sentença. Eu informei a Antônio de sua absolvição e ele não entendeu. Era pessoa muito simples e já com a capacidade de entendimento afetada pelo uso do álcool. Expliquei novamente que deixaria a cadeia e ele, amedrontado e surpreso, disse que não tinha para onde ir e pediu para dormir mais uma noite. 
Lágrimas brotaram dos olhos das assessoras mas eu contive minha perplexidade, como se espera de um juiz, e fui assertivo no deferimento do pedido. Antônio dormiria mais uma noite em seu abrigo, antes de ser lançado à dureza da vida dos que não existem para a sociedade. A decisão deu-se ao arrepio da lei, evidentemente, pois cadeia não é hotel para absolvidos, mas àquela altura havia uma vida pulsando a me pressionar por uma solução humana. 
Havia um sentimento social de justiça a respeitar. Certo ou errado? Não sei. Mas certamente claro e inequívoco. 

Aprendi e curvei-me, simplesmente.  

Andrian de Lucena Galindo
25.6.2019

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Reflexo - Capítulo 2

Reflexo

####Capítulo 2

— Você está bem? 
— Estou sim. Já vai passar. Apenas me engasguei.
— Você anda se engasgando muito ultimamente.
O Val sempre se preocupa comigo. Ele é o único homem com quem eu consigo falar alguma coisa sem sentir raiva ou nojo. Ele nunca toca em mim. Ele já viu várias vezes eu ter acessos de raiva quando algum homem toca em mim. O problema é que sou garçonete. Sempre fui. Nem sei se eu sei fazer alguma outra coisa. E nos restaurantes em que eu trabalho, sempre tem algum freguês engraçadinho que não se contenta só em passar uma cantada, mas quer tocar na gente. 
Do último restaurante eu fui demitida quando um freguês pegou no meu braço logo depois que eu passei pela mesa dele. Foi instintivo: eu peguei uma faca e joguei a bandeja com os pratos todos em cima dele e eu o ameacei com a faca. Foi sem pensar. Instintivo mesmo. Mas fui pra rua naquele dia mesmo.
Do outro restaurante, eu fui demitida depois de virar as garrafas de cerveja que estavam na mesa de um outro freguês. Eu achei que um homem ia tocar em meu braço e quase dei um pulo. Mas bati na mesa de outros fregueses e as garrafas de cerveja caíram. Uma quebrou no chão, outra, derramou em cima do cliente. E eu?: Rua!
Não posso continuar sendo demitida assim. É a terceira cidade desde que eu saí da casa dos meus pais. A segunda cidade desde que minha filha nasceu. Na última, eu já era conhecida como a “garçonete doida”. Mas já não tem muitos restaurantes pra eu trabalhar por aqui. Meu patrão atual já disse que essa é a ultima chance. 
Eu sei que tenho que controlar isso. Mas é mais forte que eu. Desde que … desde _aquilo_, enfim, simplesmente não consigo que nenhum homem me toque. Até com meu pai tive problemas… bem, acho que _até_ não é bem a palavra. Acho que _principalmente_ com ele tive problema. Pelo menos ajudou a decisão de ir embora!
Eu lembro dele gritando:
— Também, você insiste nesse emprego de merda! 
Eu ainda estava tremendo. Estava tomando banho há umas duas horas. Mas ele tava ali, do outro lado da porta do banheiro, gritando:  
— … parece que você queria que acontecesse isso! Queria! Vai ver é alguém que você atendeu mal nesse seu emprego de merda!
Eu sempre discutia muito com ele. Mas naquele dia, eu não consegui dizer anda. Eu só queria poder tomar banho…
Eu ouvia a mãe tentando acalmar ele, e ouvi quando ele deve ter batido nela. Mas eu não consegui reagir. Precisava me limpar. Mas eu não conseguia. Eu me sentia imunda. Sentia em mim um cheiro que não era meu. E eu só pensava em ser eu de novo, eu queria que o sabão e a espuma lavassem o nojo, que a dor sumisse pelo ralo… 
Eu me esfreguei por horas, e não adiantava. E eu ouvia do outro lado da porta:
— Isso foi pra você aprender a me ouvir! E agora? Se alguém ficar sabendo? O que vai ser de mim? Vou ficar conhecido como “o pai da estuprada”! A culpa é sua. Sua. 
Quando eu saí do banheiro, ele ainda estava na porta gritando. Como eu tentei apenas passar por ele, ele me segurou pelo braço. Ali foi a primeira vez. Foi instintivo. EU dei um pulo assustada e dei um tapa no braço dele. Ele me olhou com ódio. Bateu tão forte no meu rosto, que por um segundo eu esqueci a outra dor que me consumia por dentro. A mãe gritou pra ele e eu vi quando ele bateu nela também. 
— Vagabunda! — ele se virou pra mãe: — tá vendo o que você fez? Você criou uma vagabunda!
Isso foi quatro anos atrás. Mas eu ainda me apavoro de andar à noite. Agora, só aceito trabalhos de dia, então, é mais difícil ainda. E é difícil também, eu ficar longe da Aurora. Ela tá com três anos. E é sempre muito difícil pra mim, ficar longe dela. Mas não tem outro jeito, eu tenho que trabalhar. 
Aqui no trabalho, o Val é o único homem com quem eu converso. Na verdade, a única pessoa com quem eu converso. Acho que o Val é meu único amigo. EU sei que ele quer ser muito mais do que isso. Dá pra ver nos olhos dele. Mas eu não consigo. Simplesmente, não consigo. Eu não sei até quando ele vai esperar por mim. Até quando ele vai ter paciência.  Mas eu simplesmente não posso. 
E não é só por causa do meu medo de ser tocada. Tem muito mais. Mas eu nunca vou poder dizer isso pra ele. 
(… continua)…

Luís Augusto Menna Barreto
24.6.2019


quarta-feira, 19 de junho de 2019

bora cronicar - Típico

bora cronicar

Típico

— Normal. Não se preocupe.
“Normal”? Como assim “normal”, pensei.
Que médico é esse? Será que é o médico certo, será que entramos na porta certa?
— Ah, doutor, fico aliviada! 
— É normal, Ana, não se preocupe! Todo mundo tem isso.
“Todo mundo”? “Normal”?
Eu havia chegado em casa, abri a porta e ela tava olhando o sofá da sala. Concentrada! O Messi estava pulando nas minhas pernas, até arriscou um latido, e ela ali:
— … oi. — Aquele “oi" sem olhar… “oi" de quem está focada em outra coisa.
Eu olhei a Ana, olhei o sofá e tentei descobrir… as almofadas estavam ali… aparentemente nada quebrado… o sofá estava em frente à TV…
— Pega ali. — Ela simplesmente falou.
— Hein?
— Ali, pega ali e empurra um pouquinho… Demais. Eu disse um pouquinho!
O quê? Eu achei que nem havia encostado direito no sofá!
Daí pra diante, foi um tal de vai e vem até que, milagrosamente ouvi:
— Aí! Não mexe mais! Perfeito!
Eu confesso: olhei, olhei, olhei, e não vi nadinhas de diferente de quanto eu cheguei.
Acho que foi a coincidência… porque isso foi bem quando eu havia escrito a crônica “Eles Estão Por Toda a Parte”, e ela ficou preocupada! Aproveitei pra tirar uma onda:
— É, ouvi dizer que isso é grave e pode ir piorando com o tempo…
— Pára!
— Sério…
— Gosto das coisas organizadas, só isso…
— Ouvi dizer que tem gente que toma até remédio!
Fui longe demais. Menos de meia hora depois, já havia uma consulta marcada! E eu tive que ir junto. E cometi o erro supremo: entrei junto no consultório!
Foi daí que ela contou sobre os quadros que ela não pode ver tortos…
— Normal!
Sobre não gostar de louça suja na pia…
— Normal!
Sobre o sofá, milimetricamente colocado, em exata centralização com o tapete…
— Normal!
Eu tava pra enlouquecer! Então, acho que o médico notou minha expressão de admirado com a consulta:
— O senhor quer contribuir com algo?
— … não, é que…
— Tipico!
Hein?  Típico? Como “típico”?
— Diga-me, Luís, os quadros pareceram inclinados pra você?
— Não…
— Típico!
— Hã? Mas… ei, peraí! Ela que veio consultar e…
— Típico!
— Viu, doutor? É assim!
— É, estou vendo. É típico! Ele inventa desculpas para não ajudar você a arrumar os quadros, ou alinhar os móveis?
— Sempre, doutor. É raro ele fazer isso com boa vontade.
— Típico!
— Ei… não, eu…
— Ele toma iniciativa para organizar as coisas?
— Não me faça rir, doutor!
— Típico!
— Mas… mas… Ela… ela é que veio consultar, eu não…
— Negação. Típico!
— Pro senhor ver o que eu passo!
— Aqui… — O médico pegou um bloco e uma caneta e começou a escrever. — Pronto: tome um desses antes de dormir, todos os dias, durante uma semana e vamos nos ver de novo semana que vem, na quinta!
— Hein?… mas eu… 
— Mas nada! O doutor falou, tu virás! Ou queres saber mais que o médico, agora?
— … mas eu… eu…
— Até quinta, Luís.
Pois é… num mundo de TOC, não dá pra ser normal!

Luís Augusto Menna Barreto

19.2.2019

terça-feira, 18 de junho de 2019

bora cronicar - Eles Estão Por Toda a Parte

bora cronicar

Eles Estão Por Toda a Parte!

A primeira vez que eu vi um deles, eu estava no médico, na sala de espera! Na hora, não entendi muito bem do que se tratava, porque a gente nunca espera que eles estejam ao nosso lado… 
Não havia muita gente. Havia eu e mais três pessoas. A sala era pequena e havia cadeiras dos dois lados, encostadas em ambas as paredes. Havia seis lugares, dos quais quatro estavam ocupados. Naquela época, começo da década de 90, não havia smartphone. Quando muito, aqueles motorolas enormes, pesados, que quando tocava a gente tinha de abrir o flip do bocal de voz e puxar a antena. Numa sala de espera o que fazia passar o tempo eram as revistas antigas que sempre havia: “Manchete”, “Contigo" e, com muita sorte, “Veja”. Então, naquele tempo, realmente era mais difícil disfarçar. Alguns  deles, não conseguiam.
Hoje, com smartphones, e-readers e nitendos portáteis, eles conseguem enganar-nos com mais facilidade. Mas ainda assim, às vezes, algum deles não resiste e então acontece! 
Consultórios médicos e odontológicos são os locais onde mais se tem notícias das ações deles. Relatos inúmeros dão conta de serem os locais onde mais houve ocorrências, onde mais eles se revelaram. Raros salões públicos tem registros deles em ação. Preferem agir em locais pequenos. 
A ação é, em princípio, discreta, quase furtiva. Mas do momento em que eles se sentem seguros a revelar-se, do momento em que decidem partir pra ação, não há o que os impeça. Não há, na literatura especializada sobre as ações deles, nenhuma notícia, absolutamente nenhuma, de que não tenham conseguido completar sua ação. 
Se tu já passaste por esta situação e ficaste sem ação, paralisado, e, ao fim, apenas concordaste, não te envergonhas! Os especialistas explicam que esta é a reação (ou falta dela) de noventa e cinco vírgula quatro por cento das vítimas. Sentem-se constrangidas no início, uma paralisia perplexa ao ve-los em ação e então, a reação natural de  é concordar quando eles te encurralam. Tu não lutas contra eles. Não há o que os detenha. 
Às vezes agem solitários, mas, muitas vezes, agem em bandos. Normalmente todos já viram, todos mantem os olhos fixos… ou ao menos dão olhadas furtivas, no início. Até que simplesmente passam a encarar. Eles não combinam, mas é algo instintivo: assim que o primeiro passa à ação, é apoiado pelos demais. Foi assim quando eu vi o primeiro: 
Ele estava, como eu iniciei falando, ao meu lado. Eu jamais poderia esperar. Quando eu cheguei, havia uma senhora sentada de costas para uma das paredes, ao lado de uma mesa onde havia revistas e, na parede, um quadro onde havia um barco lutando contra águas agitadas. Havia duas cadeiras vazias ao lado dela. Eu sentei quase na sua frente, no lado onde as três cadeiras estavam desocupadas. Não porque eu desconfiasse que ela fosse um deles! Era impossível desconfiar. Nós nunca os reconhecemos antes de ser tarde demais, antes deles entrarem em ação. Sentei na sua frente, porque pareceu o mais lógico e natural. 
Depois, entrou um senhor. Uns 40 anos. Bem vestido. Do tipo que tu olharias e poderias confiar, poderias perguntar as horas, puxar uma conversa, até falar sobre a última notícia que o Cid Moreira havia dado ontem! Como eu poderia adivinhar? Sentou-se bem ao meu lado, na minha direita, quase em frente à mesinha das revistas. Pegou uma “Manchete" e começou a folhar. Eu até achei que ele havia levantado os olhos da revista uma ou duas vezes, mas não desconfiei de nada até aquele momento.
Logo chegou um outro senhor mais idoso, talvez 60 anos. Sorriu. Cumprimentou a todos e falou que estava começando a ventar muito na rua, e achava que iria esfriar no final da tarde. Como eu poderia desconfiar deles? Nada dava a entender que estariam sequer juntos… como eu era ingênuo! Mesmo que não estivessem juntos, assim que o primeiro agisse ambos se uniriam. É instintivo deles! 
Foi então que o homem que havia sentado na minha direita suspirou olhando fixamente à frente. Baixou a revista. Tornou a levanta-la tentando disfarçar mas parecia ser mais forte que ele. Eu notei que ele estava quase ofegante. Um arrepio percorreu-me. Então, ele olhou para o senhor idoso que estava ao meu lado esquerdo e, depois, ambos olharam fixo para frente, para o mesmo ponto. Era tarde. Eu estava entre os dois. Não poderia fazer mais nada a partir daquele ponto! A senhora que estava na nossa frente notou, como eu, os olhares. Eu me apiedei, temi por ela. Então, a surpresa! Ela sorriu para eles e balançou a cabeça em cumplicidade, virando o rosto para o mesmo ponto! 
Foi com algum desespero que eu me vi cercado! E então, sentindo-se completamente seguros, depois de entenderem que os três estavam de acordo o homem ao meu lado levantou-se, passou à ação. Eu congelei, constrangido. A recepcionista parecia anestesiada e não viu a cena, ou, talvez, já tenha visto tantas vezes que nem mais se importava. Aconteceu: o homem levantou-se, caminhou dois passos, colocou muito levemente dois dedos na parte externa da moldura do quadro na parede e empurrou alguns milímetros!
O senhor velho da esquerda olhou fixamente, em dúvida. A mulher de costas para o quadro levantou-se, foi até minha frente, quase sem importar-se com meu constrangimento, e espremeu os olhos: 
— Mais um pouquinho pra esquerda… não, foi muito… isso! Aí. Perfeito!
Então, sentaram-se os três, como se nada tivesse acontecido, todos satisfeitos e vitoriosos.
Eles são assim: não se constrangem! São aquelas pessoas que não podem ver um quadro torto na parede! Não importa se é a sua parede, a do consultório, a da estação do trem, ou da sua casa! Eles simplesmente não conseguem conter-se! 
Eles são os portadores do transtorno obsessivo obsessivo obsessivo obsessivo compulsivo que não conseguem ver um quadro torto na parede que precisam arruma-lo! 
Ou eles arrumam, ou o mundo parece torto!
A propósito: na minha casa existem 15 quadros nas paredes, rigorosa e milimetricamente alinhados. 
No meu gabinete, no trabalho, há 9 quadros, mais 4 na assessoria, mais 3 na sala de audiências… Pense no meu desespero quando a Ana vem visitar-me!

Luís Augusto Menna Barreto

18.6.2019

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Reflexo - capítulo 1

Reflexo
Capítulo 1

Foi rápido. 
Tem gente que fala que a gente quer… que a gente que incentiva… quanta merda!
Depois, fica só o nojo, o ódio… a vergonha.
Foi numa noite de quinta, quando eu voltava do restaurante. 
O Rafael sempre me dava carona até quase metade do caminho, e me deixava num ponto de ônibus com movimento. Mas quando eu descia do ônibus, perto de casa, tinha que caminhar um quarteirão. Fazia isso em menos de cinco minutos. Levava sempre uma bolsa pequena, com lenço de papel, um batom, um celular velho e estragado, e uma nota de dez reais. Se viesse a moto do assalto, levava a bolsa e eu não levava tiro. Eu já havia sido assaltada quatro vezes.
Naquele dia, quando desci do ônibus, senti um aperto no peito. Achei até que era o celular bom que levo escondido no sutiã. Mas era pressentimento. 
Como eu disse, foi rápido. 
Sabe tudo o que falam, sobre como a gente deve agir numa situação dessas? Tudo merda! Quando o monstro chegou em mim, encostou o cano do revolver na minha testa. O mundo parou ali. Eu tremia toda. Ele só falou: “cala a boca, vadia”.
Depois, eu fiquei como que anestesiada, sem reação. Não consegui gritar, não consegui nem ver o tempo passar. Quando terminou, eu estava com as costas todas arranhadas da parede rebocada e sem pintura, em que ele me apertava, bufando como um animal. Quando ele terminou, bateu forte com a arma na minha cabeça e eu caí. Ele fechou a calça e saiu. Eu consegui sentar e encostar na parede. Não sabia onde estava um dos meus sapatos. Minha calça estava jogada perto de mim. Olhei o prédio do outro lado da rua, e vi um homem com o celular apontado pra mim. Acho que ele viu tudo. Não gritou. Não fez nada. O desgraçado só filmou. Postou nos grupos de whatsapp. 
Eu não conseguia me mexer. Eu não tinha nada quebrado, mas eu simplesmente não conseguia me mexer. Um cara de moto passou olhando. Depois voltou devagar. Então chegou perto de mim. Eu estava sentada, ainda, sem conseguir me mexer. Ele estava de capacete. Foi devagar até minha bolsa jogada no chão. Pegou, olhou dentro, virou todas as minhas coisas no chão, pegou os dez reais e me disse: “vadia”. Foi embora. 
Eu não sei quanto tempo passou. Não sei se eu desmaiei. Depois lembro de uma senhora japonesa, junto com uma menina que parecia neta dela, atravessar a rua. O desgraçado continuava filmando. A menina juntou minhas coisas e a senhora ajudou a vestir minha calça, ali, sentada mesmo e, depois, me levantou. Ela falou em hospital. Mas eu só queria ir pra casa. Só ir pra casa. Minha testa estava sangrando e doendo, mas eu acho que não tinha nenhum osso quebrado. O monstro não quebrou meus ossos. Quebrou minha alma.
(continua)… 

Luís Augusto Menna Barreto

17.6.2019