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quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

O Cedecê, o Desmorrido e a Black Friday

 


Eu já contei algumas histórias sobre a “Black Friday”, especialmente histórias que aconteceram no Marajó. Porque tu sabes que tem coisas que só é possível acreditar, porque acontecem no Marajó!

Pois essa foi outra da “Black Friday”… no Marajó:

Eu lembro que em 2019, quando houve a inauguração da loja Americanas em Marajó City, a “Black Friday” foi um acontecimento. E eu cheguei a contar duas histórias sobre aqueles eventos maravilhosos.

Em 2020, ainda que houvesse a pandemia como uma nova realidade imposta, houve, também um ou outro caso, mas nem cheguei a contar… ainda! Mas o que aconteceu antes, naqueles meus maravilhosos anos de Marajó, é algo difícil de acreditar. Bem, mas nem tudo que conto eu espero que acreditem, porque eu mesmo lendo, penso que se eu não tivesse vivido tudo isso, eu duvidaria! Só posso afirmar que são histórias reais, e que eu as vivenciei. Se tu és Marajoara, certamente não duvidas. Se não és Marajoara, eu rememoro Shakespeare: “Há mais mistérios entre o Céu e a Terra, do que tua vã filosofia possa imaginar”. Então, um conselho: se não vais acreditar, apenas não duvides, antes de conheceres o Marajó e suas gentes!

Pois, como era de se esperar, era sexta-feira! “A” sexta-feira! A aglomeração na frente das lojas locais era inenarrável! Mal o Tonelada dispersava uma briga aqui, surgia uma outra escaramuça ali, todas em frente às lojas que abrem as portas à meia noite de quinta-feira para sexta-feira. Daí, que normalmente, por volta do meio dia, as confusões vão terminando e a cidade começa a recuperar um ritmo lento. Isso tudo, sem contar o sol, que faz com que a cidade fique com as ruas desertas a partir do meio dia. Daí, que a partir de 12 horas, é raro chegar ao fórum qualquer caso, ou mesmo, qualquer pessoa presa em flagrante delito, porque até os malandros respeitam o horário da sesta.

Mas naquela sexta-feira de “Black Friday”, o Fechadura chegou apresentando o Cedecê!

Eu confesso que estranhei, porque o Fechadura é o carcereiro e “faz tudo” na delegacia, mas raramente apresenta os presos. Normalmente chamam o Tonelada, policial militar, porque com ele, ninguém “se rebarba”, como dizem por aqui!

— Fala Fechadura! Tu, trazendo preso? 

— Esse fui eu que dei voz de prisão, doutor!

— E agora tu também sai atrás de preso, Fechadura?

— Não fui atrás, doutor! Ele que veio na delegacia!

— Hein?

— Foi lá fazer reclamação, doutor! Disse que foi enganado na “Bléqui Fráidi”. 

— E tu prendeste o caboclo por ir reclamar?

— Tava com droga, doutor! Fosse o Tonelada, já ia botar no 33. Eu acho que é 28, daí trouxe para o senhor, logo!*

Eu não estava entendendo muito bem, então, decidi perguntar logo para o Cedecê!

— Caramba, Cedecê, e tu tá doido? Entrar na delegacia com droga? Logo na delegacia? E como o Fechadura descobriu que tu estavas com droga? Ele farejou?

— Eu que mostrei, doutor!

— Hein?

O caso foi o seguinte: o Cedecê sempre arruma confusão no comércio dizendo que o comerciante está infringindo o “CDC" (Código de Defesa do Consumidor). Acontece, que o Cedecê é usuário de drogas, e “diz que”** que até a droga entrou em promoção na “Black Friday”. O problema é que na boca da Simulada, ela até baixou o preço, mas daí, para compensar, aumentou na mistura. Então o Cedecê fumou, mas não deu barato. Ficou indignado! Foi pedir a intervenção da autoridade, para dar jeito e a Simulada diminuir a mistura!

Isso já era bem “diferente" para uma sexta-feira, mesmo de Black Friday! Mas o dia ainda reservaria mais uma situação peculiar!

Perto de fechar as portas do Forum, por volta de 14h, o Goela entra no gabinete, com aquela cara de quem sabe que que vou ficar estressado:

— Doutor, parece que o Barganha tá precisando de ajuda!

— Qual é, Goela? O Barganha já tem mais de 20 anos de fórum, que ajuda que ele pode precisar…?

Mal falei isso e ouvi a D. Boneca, que cuida da limpeza do Fórum, passar apressada pelo corredor em direção à porta da rua, e logo depois, a Tutela saindo correndo:

— Credo em cruz, ave Maria, sai pra lá, visagem! — Saíram gritando!

— O que é isso, Goela?

— Falei, doutor! É que o Ralhado desmorreu.

— Hein?

— Doutor, o Ralhado é o Raimundo Anunciação dos Prazeres.

Tentei puxar pela memória, afinal não eram tantos processos assim. Repeti o nome, de forma “espichada”, como a gente faz quando quer tentar lembrar:

— Raimuuuuuuuuundo…

Lembrei:

— Raimundo Anunciação dos Prazeres? Mas ele morreu, o inventário tá no fim! Não tem filhos, vai ficar tudo pra Arraia! — (“Arraia”, é a Socorro dos Anjos de Oliveira, viúva… eu acho!)

— Pois se morreu, é a alma penada que tá lá com o Barganha, doutor!

Mandei chamar. Confesso que quando o Goela virou as costas, até fiz o Sinal da Cruz. E quando o Caboclo entrou, senti um arrepio na espinha, mas tentei manter a pose!

— Tu que és o Raimundo Anunciação dos Prazeres?

— Sou eu, sim senhor!

— Meu Deus! Tem um inventário tramitando há mais de 5 anos! Que bom que demorou e não mandei expedir os formais de partida ainda! Ia ser muito mais complicado para o senhor recuperar os bens!

— Doutor… sabe o que é… eu não queria recuperar nada não. Na verdade, doutor, nem quero desmorrer!

— Hein?

— Sabe, doutor, a Arraia era muito braba. No começo era bom, mas logo virou só briga! Não podia me ver numa rede, que logo arrumava uma terra pra roçar, um matapi pra por no rio, um açaizal pra me fazer tirar palmito, doutor! A vida era muito sofrida! Daí que conheci a Escondida lá pra bandas da água grande da baía, e fui logo me engraçando com ela, doutor! Deixei tudo pra trás sem fazer caso, e a Arraia encontrou o casco que eu tava e logo achou que me afoguei por estar bebido! Eu vim duas ou três vezes na cidade e fiquei sabendo que eu tava morto! 

— Mas agora tu estás vivo, Ralhado!

— Carece não, doutor! Nunca vivi tão bem, quanto depois de ter morrido! 

— Mas tu não vieste aqui pra desmorrer? Vou ter que anular o inventário e te desmorrer, Ralhado!

— Faça isso, não, doutor! Pior que uma ex-mulher, é uma ex-viúva! E eu só vim aqui, por causa da “bléqui-fráidi”!

— Hein?

— Doutor, como to morrido, meu crediário não passa! Queria comprar um fogão pra Escondida, aproveitando a “bléqui fráidi”. Daí queria ver se o senhor podia me dar um papel pra ressuscitar só um instante, e autorizar fazer um crediário! É o tempo de fazer a compra e eu “desvivo” de novo!

Pois é… tem coisas que só no Marajó.


*Referência aos artigos 33 e 28 da Lei 11.343/2006. O primeiro (artigo 33) trata do tráfico propriamente dito, com previsão de pena bem maior que o segundo (artigo 28), que trata de consumo.


**“Diz que”, é uma expressão corrente no Marajó, que se pronuncia quase como se fosse apenas uma palavra com o som “dísqui”, quando se quer referir a comentários dos quais não se sabe a origem! Por isso que na oração, no texto, a expressão “diz que” é seguida de mais um “que”. Equivale a “diz-se”, como na frase:  “Diz-se, por aí, que brasileiros são alegres” = “Dísqui que brasileiros são alegres”.


Luís Augusto Menna Barreto

27.11.2021 

terça-feira, 23 de novembro de 2021

bora cronicar - Nem Queira Saber

 


— Pergunta-me o que aconteceu na casa da Vanusa!

Tudo bem, eu usei ênclise, porque ficaria desagradável a primeira linha da crônica começar com um erro de colocação do pronome obliquo. Mas agora que eu já disse isso, vou colocar a frase como elas realmente falam:

— Me pergunta o que aconteceu na casa da Vanusa!

Sim, nesse momento, tu já farejaste a encrenca. 

Tu estás ali, na mesma poltrona em que estavas na crônica “Nem Te Conto”*, latinha de cerveja na mão, televisão ligada no jogo que não é do teu time, ou seja, estavas em completa paz, apenas tu e o cachorro em casa, e ela chega com a variação do “Nem Te Conto”, essa tal de “me pergunta o que aconteceu na casa da Vanusa”!

Quanto ela chega dizendo “Nem Te Conto”, ao menos tu tens um fio de esperança enquanto o cérebro processa todas as informações, porque tu sonhas por breves milésimos de segundo, que é verdade que ela “nem te contará” o que aconteceu. Tudo bem, é uma esperança muito breve; mas uma esperança breve é melhor que uma não esperança! 

Mas quando ela vem com “me pergunta o que aconteceu”, não sobra nada para tu te agarrares! Não há margem de esperança! O cérebro recebe e interpreta a frase, entendendo que, embora aparentemente retórica, a frase é, na verdade, peremptória, é uma ordem!

Tu sabes que acabas de perder a chance de ver o jogo, a chance de simplesmente não precisar torcer nem secar, a chance, enfim, de tomar uma cerveja como ela deve ser tomada: na ilusão que tu és o senhor absoluto do lar (ilusão que inevitavelmente é quebrada diante de uma frase como “me pergunta o que aconteceu na casa da Vanusa”). Aliás, essa Vanusa, tu sequer sabes quem é!

Mas não é só isso: tu tens que estar sempre preparado para reagir rápido. Se tu demoras degustando a decepção do jogo interrompido e da cerveja que não terá o mesmo gosto, lá vem:

— Va-iiiiiiiii (assim, separado e com o “i" esticado), pergunta logo o que aconteceu na casa da Vanusaaaaaa!

Claro, essa é a hipótese boa, no caso de ela estar num dia de excelente humor e com paciência; porque a variante dessa forma de “reperguntar" é um olhar mais zangado, já condenando a televisão ligada no jogo e chocando com os olhos a cerveja que estava na tua mão, a qual tu sequer terás a coragem de continuar tomando:

— Anda, pergunta logo o que aconteceu na casa da Vanusa!

Então, reconhecendo a derrota, com a inteligência do homem médio que sabe que há batalhas que já iniciam perdidas, e na vã esperança de seres recompensado nas lides amorosas após tu lavares toda a louça, tomares banho e esperares ela terminar de ver a novela, tu te rendes e obedeces, perguntando como ela havia delicadamente sugerido a ti:

— Ta bem (suspiro, pausa longa): o que aconteceu na casa da Vanusa?

Então ela solta essa:

— Ah!, nem queira saber!…

Pronto! Agora tu entendes que não perderás nenhum detalhe!


*Para ler "Nem Te Conto", CLIQUE AQUI


Luís Augusto Menna Barreto

2 de outubro de 2021

terça-feira, 16 de novembro de 2021

bora cronicar - Nem Te Conto

 


Ah, se fosse verdadeira a frase do título… Mas não é! Estejas preparado, pois, quando ouvi-la!

O centroavante acaba de receber o cruzamento, e por conta daquela estranha precisão digna de cientistas da NASA, ataca a bola com a testa, num movimento de proposital impacto, de modo a que, com a força aplicada, muda a trajetória da bola que, antes paralela ao gol, agora descreve um ângulo quase reto, perpendicular, infinitamente mais rápida que qualquer raciocínio. Somente um movimento reflexo, desses que o cérebro parece ter guardado para uso em ocasiões especiais, em que não temos tempo de recorrer a qualquer lógica, a qualquer elaboração mental, pode salvar o gol iminente!

Pois é neste momento exato que tu a ouves! Tu não a viste chegar, afinal, as mulheres tem esta arte de chegar propositadamente sorrateiras (outro dia falo sobre a diferença de homens e mulheres chegando em casa). Pois assim, mais do que a presença dela, a frase pronunciada pega-te de surpresa, tal qual o centroavante antecipando-se ao zagueiro.

Tu estavas ali, tranquilo, sentado no sofá da tua casa, televisão ligada no jogo que nem é do teu time e, por isso, até melhor de ver; nenhum pensamento na cabeça, quem sabe com aquela latinha de cerveja ao lado, e ela chega com a frase da qual tu não escaparás:

— Nem te conto o que aconteceu!

A partir desta frase, o teu cérebro, já meio entorpecido pela cerveja e pela deliciosa ausência de pensamentos, dispara bilhões de choques elétricos: primeiro, chegam vibrações do ar, as tais ondas sonoras, captadas por nossa audição… É um momento de torpor, ainda, em que o cérebro recebe os sons, como se fossem refugiados, ainda sem nomes, ainda sem destinos, ainda sem maiores informações, para então coloca-los em fila, interroga-los, organiza-los e destina-los. Os sons são transformados em palavras que entendemos e organizados de maneira que tenham alguma lógica. A seguir, ainda no tempo em que a bola viaja da testa do centroavante em direção ao gol e o cérebro do goleiro também está disparando mil informações para que o corpo reaja, tu recebes do teu cérebro a frase no sentido literal, que é a primeira interpretação, com as primeiras informações que o cérebro dispõe naqueles microssegundos: “Nem te conto…”.

Enquanto a bola viaja micrômetros e teu cérebro vai processando novas informações das ondas de luz da tua visão periférica, tu chegas e ensaiar um sorriso diante da literalidade da informação: “nem te conto…”.

Algo dentro de ti responde ao cérebro: “ótimo! Já está bom! Nem me conte! Cancele quaisquer outras informações! Eu fico apenas com o ‘nem te conto’”…

Mas é tarde! A bola avança mais, suspensa no ar, ainda sem se render à força da gravidade, e teu cérebro, esse desobediente, envia mais informações: a entonação da voz dela, sugerindo que não foi uma frase isolada; a aproximação em uma trajetória que o cérebro prevê como destino a frente da televisão, postando-se no caminho entre teus olhos e a tela. E o pior: a definitiva informação de que a frase encaixa-se nos exatos padrões de outras tantas pronunciadas rigorosamente iguais ao longo dos anos: “Nem te conto o que aconteceu!”.

Então, agora já com todas as informações sobre a frase, já com o contato visual irremediavelmente estabelecido, teu cérebro entrega a correta interpretação da frase:

“Nem te conto o que aconteceu”: significa que ela vai sim, contar-te algo que seguramente não será mais importante do que um jogo de futebol que não é do teu time, ela vai dar-te detalhes sobre fatos que tão logo tu os receba, serão involuntariamente deletados, embora tu saibas que num breve futuro, tu serás inescrupulosamente sabatinado sobre o que ela “nem te contaria”, sem qualquer chance de acertares uma das respostas. “Nem te conto o que aconteceu”, é o prelúdio de uma novela para a qual não queres o ingresso. “Nem te conto”, significa, enfim, que ela contará TUDO, absolutamente TUDO o que não queres saber sobre a última fofoca acerca das pessoas que nem sabes quem são, e não será pelo microssegundo da bola viajando ao gol! Será pelo tempo do jogo inteiro, com direito à prorrogação e pênaltis. E tu estarás como que na Tribuna de Honra da fofoca, onde todo o foco do olhar dela será em ti, sem que possas nem comemorar o gol, nem xingar o juiz.

Quanto à bola que o centroavante havia cabeceado em direção ao gol, e que tu ansiavas para ver o desfecho, saboreando tua cerveja?

— Nem te conto o que aconteceu…


Luís Augusto Menna Barreto

15.11.2021

domingo, 31 de outubro de 2021

Eu, o Pilha e a Flor… (Ah!, tá bom: Eu, o Pilha e a Branquela Burra) - parte 5: metade final do EPÍLOGO


Oi, tia. Eu sou o Pilha. 

Eu sei que tu não tá acostumada a me ouvir contar histórias. É sempre meu amigo que conta nossas histórias. Mas hoje, eu que quero contar. 

Eu não sei o nome dele. No dia que ele chegou na minha sinaleira, eu perguntei o nome e ele não sabia. Eu perguntei como a mãe dele chamava ele. Eu não perguntei como o pai dele chamava, porque quem vai pra sinaleira pedir pros ricos, nunca tem pai. Ele me falou que a mãe dele chama de “estrupício”, de “peste”, de “moleque”… Mas eu não ia chamar assim. Daí, teve uma vez que eu disse pra ele: “deixa de ser mané!”. E ele ficou parado, olhando com cara de bobo. Daí, meio que pegou. 

Quando ele chegou na minha sinaleira, ele era muuuuuuuito mané. Não sabia nada. E ele era muito pequeno, não chegava na metade da altura das portas dos carros dos ricos. Eu tive que ensinar tudo pra ele. Eu lembro que ele nunca tinha andado de carro, e daí, eu ensinei como fazer pra ele conseguir. Ele disse que ficou tonto, que foi esquisito, porque ele que ficava parado e o mundo que passava correndo*. E eu quase morri de rir, no dia que levei ele pela primeira vez num elevador. Ele achou que tinha morrido e só ficava gritando que não queria ficar morrido, que queria desmorrer**. 

Ele fala muito. Fica o tempo todo falando. Ele fica repetindo “Pilha, lembra aquela vez…”, “Pilha, e aquela outra vez que a gente…”. Quando ele já contou muito todas as histórias que lembra, ele inventa uns jeitos diferentes de contar: “Ei, Pilha, já pensou se naquele dia que a gente fugiu do hospital, um rico parasse e nos desse carona? Pra onde tu ia querer que ele nos levasse? Ja pensou se ele nos levasse no Mac Donalds? Eu ia comer uns…”

Eu não gosto muito quando o mané inventa histórias. Porque ele é muito sem noção.

Outro dia, ele foi direto brincar com uns carrinhos que uns meninos ricos tinham deixado na caixa de areia do parquinho***. Ele acha que rico é como a gente. Pra nós, só é da gente o que a gente tá usando, enquanto a gente tá usando. Se a gente larga alguma coisa na rua, e outro pega, o outro que fica dono. É igual a nossa sinaleira. Se a gente não chega cedo e outro pega, é do outro, a gente perde o ponto. Rico não. Se ele larga um brinquedo, o brinquedo ainda é dele, e mesmo que ele não fique brincando toda hora, ninguém pode pegar um pouco. Então, quando ele começa a inventar histórias, é tudo sem noção. E eu tenho medo, porque ele começa a falar coisas que não existem, ou que a gente nunca vai fazer, e daí, depois, ele fica achando que a gente tinha que conseguir alguma coisa parecida com as histórias que ele inventa, e ele fica com raiva.

Um dia ele inventou uma história que a gente tinha três roupas. Ficou o dia todo falando das três roupas e que a gente podia trocar, e que elas não sujavam. Daí, no fim do dia, ele tava todo triste, porque a gente só tem uma roupa, e usa o tempo todo, e quando a gente tava indo embora do parquinho, ele disse que queria ter três roupas. E onde a gente ia guardar três roupas? Se ele tivesse duas, a mãe dele já ia vender uma pra comprar as pedras. 

Então, eu tenho que ficar de olho nele, e ir ensinando as coisas. 

Agora, ele anda mais quieto. Eu sei que ele ficou brabo comigo. E eu sei que foi por causa da Clarinha. Ele acha que ela vai me roubar dele e a gente vai deixar de ser amigo. Eu nunca vou deixar de ser amigo dele. E eu sei que a Clarinha é rica, vive no mundo dos ricos. E eu nem sei o que deu em mim, pra ir falar com ela. Mas ela é tão bonita. 

Depois que o São Jorge salvou a gente duas vezes****, a gente foi numa festa da Igreja que tem o nome dele, lá no final da rua com o rio no meio. E lá tem um vidro pintado com o São Jorge matando um dragão. Eu acho tão bonito, é tão colorido. E daí, eu já fui lá com o mané, um montão de vezes, só pra ver aquele vidro. Eu sei que a pintura não é minha. E eu não quero pra mim. Eu só gosto de ir lá e ficar olhando. E quando vou lá, o Padre não fica dizendo pra gente ir embora. E teve uma vez, que ele até deu um copo de leite bem quentinho pra nós dois e disse que a gente podia sempre voltar pra ver o vidro.

Eu acho que com a Clarinha é assim: uma sensação parecida de olhar o vidro do São Jorge, tomando leite quente num copo limpo! Só que é muito mais forte. Quando ela vai no parquinho, dá vontade de ir lá perto e até falar com ela. Quem leva ela no parquinho é a Tetê. Eu já conhecia a Tetê, porque ela já namorou meu irmão, antes de prenderem ele. A Tetê fica de olho, de longe, mas pelo menos não fica mandando eu sair de perto da Clarinha. A Clarinha não é como as outras crianças ricas. Ela não gosta que joguem pedrinhas no Uálquim. E também grita com outros garotos ricos quando eles correm atrás do cachorro de pata torta do velho “Muleta”. Eu acho que a Clarinha nasceu errado. Não era pra ela ser rica. Porque ela nem pensa igual os ricos!

O mané tá com muita raiva da Clarinha, porque naquele dia, ela disse que não me conhecia, e o bigodudo que tava dirigindo jogou ele no chão. E o mané disse que a Clarinha é uma mentirosa porque falou que ele era assaltante e depois disse que não conhecia a gente. E depois de tudo, o mané achou que eu poderia estar com raiva dele. 

Sabe… eu não fiquei com raiva. Eu não sei explicar. Acho que eu tava mais preocupado com a raiva do mané. Ele disse que tava com raiva de Deus, e eu fiquei preocupado. E eu tava preocupado com a Clarinha.

Sabe tia, eu não fiquei brabo com a Clarinha quando ela olhou pra mim, e disse para a mãe dela que não me conhecia. Eu acho que naquela hora, eu fiquei feliz demais com a Clarinha. Eu não sei explicar, tia, mas eu vi que a boca disse que não me conhecia, e os olhos da Clarinha diziam outra coisa. Foi por isso que ela olhou nos meus olhos. Não foi pra mentir na minha cara. Foi pra falar comigo com os olhos, enquanto a boca falava com a mãe dela. Então eu vi que ela nasceu errado mesmo.

O mané não entende, acho que ele é muito pequeno. E ele tá com raiva, então eu também sei que não adianta eu querer explicar pra ele, porque quando a gente tá com raiva, a gente só ouve o que quer. Mas eu sei, que se a Clarinha dissesse que me conhecia, ela nunca mais ia poder me ver. Nem ir no parquinho.

Tia… se ela disse pra mãe dela que não me conhecia… bom… tia…

… a Clarinha gosta de mim!

(FIM)


*Vide Eu e o Pilha

Para ver Eu e o Pilha, CLIQUE AQUI!


**Vide Eu, o Pilha e a Caixa Mágica

Para ver Eu, o Pilha e a Caixa Mágica, CLIQUE AQUI!


***Vide Eu, o Pilha e os Brinquedos de Deus

Para ver Eu, o Pilha e os Brinquedos de Deus, CLIQUE AQUI


****Vide Eu, o Pilha e os 35 Pilas. Vide também, Um Conto do Pilha

Para ver Eu, o Pilha e os 35 Pilas, CLIQUE AQUI!



Luís Augusto Menna Barreto

31 de outubro de 2021

domingo, 24 de outubro de 2021

Eu, o Pilha e a Flor… (Ah!, tá bom: Eu, o Pilha e a Branquela Burra) - parte 4: primeira metade do EPÍLOGO



Essa escola é melhor! Eu fiquei feliz quando a mamãe teve que mudar de cidade por causa do trabalho. Eu não gostava daquela escola só de meninas. A gente nem podia brincar direito, que logo vinha uma professora dizer que meninas não podem se comportar assim! 

Eu já estudei em muitas escolas. Teve um ano, que foram três escolas diferentes. Uma delas foi muito ruim, porque eu não entendia nada. Falavam outra língua, que não era nem o inglês que eu sei um pouco. Era uma cidade bonita, em que passavam navios maiores que uma montanha, e a mamãe falou que eles vão de um oceano para outro bem pertinho da cidade! Eu não sei direito o que a mamãe faz, mas ela trabalha muito. Tem dias que nem vejo ela. Ela nunca tem tempo de brincar. Deve ser triste nunca ter tempo de brincar. Ela sempre me diz que ela trabalha por minha causa, pra garantir meu futuro. Eu acho que esse tal futuro deve ser horrível, eu tenho muito medo. Porque em toda cidade nova que a gente chega, mamãe me coloca em aula de inglês, piano, natação, e tênis. E diz que tudo isso é para eu estar preparada para o futuro. Será que nesse futuro, só pode entrar quem souber tudo isso? Eu não gosto de piano, mas eu me esforço, porque tenho medo de não aprender e não conseguir ir para o futuro. Daí, eu também quase não tenho tempo de brincar. Quem cuida de mim, agora, é a Tetê. E tem o “Rúlio”, mas que escreve com “jota”, que dirige o carro. Ele e a Tetê que me levam em todos os lugares que mamãe diz que tenho que ir. O “Rúlio” está com a gente desde a cidade dos navios gigantes. A Tetê, cuida de mim há pouco tempo. Desde que chegamos nessa cidade. Eu gostei da Tetê. E acho que o “Rúlio" também gostou, porque eu já vi eles brincando juntos. Teve um dia que eu saí da aula de inglês e quando fui para o carro, eles estavam brincando tanto que o carro tava balançando, e eu tive que bater várias vezes na porta pra eles abrirem pra mim!

Na minha escola nova, eu posso usar bermudas. É melhor que saia. E eu já consegui arrumar dois amiguinhos. Bom, pelo menos eu acho que consegui dois, porque um deles não sabe falar direito. Eu achava ele estranho. Um "estranho legal", mas agora eu já me acostumei. 

Quando eu vi eles na primeira vez, foi no recreio. Um estava abaixado bem no meio do caminho de pedras por cima da grama. E ele parecia brigar com quem chegava perto. Ele só olhava brabo e fazia “hum-hum”. E não se levantava de jeito nenhum. Até que o garoto “estranho legal” chegou perto e começou a falar para outros meninos que estavam correndo por ali, para passarem por outro lado. Uns até empurraram o “estranho legal”, mas acho que ele conseguiu convencer que passassem por outro lado. Daí, ele foi buscar água num copinho e deu para o que estava abaixado. Quando tocou o sinal do fim do recreio, e todas as crianças começaram a ir para a aula, o que estava abaixado deixou o copinho vazio no chão e foi. O “estranho legal” esperou e juntou o copinho. Daí eu fui lá falar com ele:

— Oi, eu sou a Clara. Mas pode me chamar de Clarinha. O que o teu amigo tava fazendo?

Ele me olhou e ficou todo vermelho. E ele gaguejava. Até hoje, mesmo ele já sendo meu amigo, ele sempre fica vermelho perto de mim. Por isso que eu acho ele estranho! O outro não é assim, não fica vermelho!

— Oi… eu… é… o Kadu? Ah… ele… ele… e-ele tá cuidando daquele plantinha ali, óh!

Era uma flor. E estava quebrada. 

Nos outros dias, sempre o Kadu e o “estranho legal” ficavam ali na hora do recreio.  E eu comecei a ficar com eles. Tinha um canteiro de flores perto do caminho das pedras, e várias crianças jogam bola ali perto, no recreio e acabam machucando as flores. 

Daí, um dia, quando a gente tava no recreio, um menino chutou a bola errado, e ela foi direto no canteiro de flores. Foi tão forte que chegou a quebrar e arrancar uma. O Kadu correu pra lá e pegou a florzinha arrancada. Daí ele me entregou a flor e falou com aquele jeito de artista, olhando pra outro lado, enquanto falava:

— Leva. Cuida. Planta ela.

Eu meio que fiquei sem saber o que fazer, mas daí, quando saí da escola, falei pra Tetê o que tinha acontecido e que queria plantar a flor. A mamãe estava viajando a trabalho e eu tinha aula de inglês e natação. Mas a Tetê disse que se eu não contasse pra mamãe, ela deixava eu matar a aula de natação e me levava numa praça que tinha canteiro de flores que eu poderia plantar, e daí, a gente chegaria mais cedo em casa e ela iria no cinema com o “Rúlio”, mas eu também não podia contar isso para a mamãe. 

Eu fiquei muito feliz, porque a mamãe nunca me levava para brincar e sempre arrumava tanta coisa pra eu fazer, que eu nunca ia em nenhuma praça. Quando chegamos, a Tetê disse que eu podia brincar um pouco, e ela ia ficar com o “Rúlio" no carro. Eu adorei. Tava cheio de crianças. Tinha criança no balanço, na gangorra, no escorregador… até em cima de uma árvore, eu vi dois meninos. Mas eu tinha que cuidar da flor antes de brincar. Então eu fui num canteiro de flores bem perto do parquinho, pra tentar plantar de novo a flor que o Kadu me deu. Eu levei o maior sustão, porque quando eu me abaixei, um cachorro com uma pata torta saiu correndo do meio das flores. Eu acho que ele estava escondido ali e também se assustou. Daí, uns garotos viram e saíram atrás do cachorro, jogando umas pedrinhas nele, mas ele correu e se enfiou em um arbusto perto de um banco onde tinha um velho sentado e o velho ralhou com os garotos. Então, eles deixaram o cachorro em paz e voltaram para os brinquedos. E foi só nessa hora, que eu lembrei que eu não sei como cuidar de uma flor. Nunca morei em casa, pra ter pátio e flores. A mamãe disse que prefere apartamentos, porque como ela viaja muito, ela diz que é só fechar uma porta e pronto, e que casa dá muito trabalho.

Bom, mas as flores todas vem do chão, né?! Daí, eu fiz um buraquinho no chão, perto de outras, e coloquei ela ali dentro, igual a gente coloca num vaso. Depois, eu fui brincar um pouco no balanço. Quando a Tetê me chamou e eu já tava entrando no carro, eu vi quando um dos dois garotos desceu da árvore e foi até o canteiro.

No outro dia, na escola, eu contei para meus dois amigos, que tinha plantado a flor no canteiro da praça. O Kadu sorriu e correu para o canteiro da escola e pegou outra flor quebrada e me deu:

— Planta! Hum-hum. Planta!

Daí, Eu peguei a flor de novo. E eu pedi pra Tetê me levar na praça outra vez. Ela fez eu prometer que eu não ia contar para a mamãe que ela iria sair mais cedo, e nem que eu tava indo na praça. Quando cheguei lá, depois da aula de inglês, fui correndo ver a flor! E tava linda! Nem parecia a flor que eu tinha plantado! Tinha sarado o machucado do caule, nem tava mais quebrado, e o buraquinho que eu tinha feito, tava todo tapado com terra em volta dela! 

Eu fiquei super feliz. Só não conseguia entender direito. Daí, eu ouvi, parecia uma risada dessas que a gente dá quando tá feliz, e fiquei procurando quem era. E vi os garotos da árvore, que estavam lá de novo. O menor, que estava no galho mais baixo estava sério, mas o garoto que tava bem no alto da árvore, tava sorrindo! E ele tava olhando bem pra mim, eu acho. Então, eu vi as mãos dele todas sujas de terra. E eu fiquei desconfiada… será que foi ele quem arrumou a florzinha que eu tinha plantado? Então, eu peguei a outra florzinha machucada que o Kadu tinha encontrado, e fiz outro buraquinho bem perto da que eu já tinha plantado. E eu olhei bem pra ela, quase querendo decorar como ela era. Porque eu queria descobrir se eu que sabia plantar, ou era aquele menino da árvore.

Quando a gente chegou em casa, levei um susto, porque a mamãe já estava! A Tetê nem pode sair mais cedo com o “Rúlio”. Mas a mamãe nem percebeu, eu acho, que eu tinha chegado, porque ela estava em uma chamada de vídeo pelo MacBook e ao mesmo tempo digitava no celular. Quando eu já estava na cama, ela apareceu no quarto para me dar um beijo de boa noite, e disse que iria me pegar na escola para almoçarmos juntas.

— Oba! Vamos comer hambúrgueres, mamãe?

— Lógico que não, Clara! Vamos em um maravilhoso restaurante que a tia Bella indicou, que fica na estrada. Mas eu tenho certeza que você vai adorar!

Daí, no dia seguinte, a mamãe estava esperando na saída da escola e fomos. Agora, com essa doença que faz a gente usar máscaras, a gente anda com os vidros do carro um pouco abertos. Eu gosto muito mais quando os vidros estão abertos e entra vento. Mas quando a gente tava parando em uma sinaleira, a mamãe mandou o “Rúlio" fechar os vidros.

— Feche os vidros Julio! Ah que coisa! Pessoas decentes não podem mais nem andar tranquilas que esses delinquentes já vem querer assaltar ou pedir esmolas! Clara, nem olhes para eles! Eles querem assaltar ou pedir dinheiro para comprar coisas que fazem mal! Jamais deixe um desses mendigos chegar perto de ti, Clara! São pequenos bandidinhos! 

Eu fiquei curiosa e virei a cabeça pra ver. Mas a mamãe me xingou:

— Clara, eu mandei tu não olhares! Eu não te quero nem olhando para esses marginais, ouviste? Eles são assaltantes! 

— Sim, mamãe!

Eu queria olhar mais. Mas eu sabia que não podia. 

A mamãe viajou de novo no outro dia, e, na escola, o Kadu e o “estranho legal” todos os dias entregavam uma flor machucada arrancada dos canteiros da escola, para eu plantar no parquinho. E teve um dia que o garoto do galho mais alto desceu e veio falar comigo. O garoto menor ficou no galho.

Quando o garoto chegou perto, meu coração parece que ia sair pela boca, porque ele parecia com os meninos do sinal, que a mamãe diz que são bandidinhos. Mas as mãos dele estavam sujas de terra, e eu achava que era ele que estava salvando as flores que eu trazia. Daí, eu fiquei assustada, mas fiquei ali. 

— Oi. Quer que eu te ensine como plantar?

A roupa dele era toda suja, mas a máscara era novinha. E mesmo de máscara, parecia que dava pra ver que ele estava sorrindo. E bandido é brabo, bandido não sorri, né?! Então, eu fiz que sim com a cabeça.




— Eu sou o Pilha. E tu?

— Clarinha.

— Oi Clarinha.

Ele se abaixou e começou a cavar com as mãos.

— Toma. Pode usar as minhas pazinhas.

Ele me olhou e parecia um sorriso. Pegou uma das pazinhas e disse:

— Tu pega a outra e faz como eu.

Daí, depois daquele dia, todos os dias, o Pilha ensinava como plantar. 

Até que chegou o dia que a mamãe foi me levar no restaurante do amigo da tia Bella de novo. A mamãe estava enviando mensagem pelo celular e não viu que a gente tava chegando no sinal que tinha uns assaltantes. Daí, quando o “Rúlio" parou na sinaleira, um deles colocou as mãos no vidro e eu fiquei muito assustada, porque a mamãe sempre falava que eles iriam assaltar. E eu gritei. Então, o “Rulio" abriu um pouco a porta e segurou o menino pelo braço e jogou pra longe do carro. Mas chegou outro e empurrou a porta que o “Rúlio’' abriu. E esse outro, era o Pilha, o meu amigo!

— Pilha?

E o Pilha gritou:

— Ele não é ladrão! É meu amigo!

E eu acho que a mamãe ouviu eu falar o nome dele, porque ela me olhou furiosa e perguntou:

— Clara, tu conheces esses mendigos?

Quando a mamãe perguntou, o Pilha me viu e sorriu. E eu fiz a coisa mais feia que já fiz até hoje. Eu fiquei com medo de dizer para a mamãe que eu conhecia eles, porque daí, ela ia descobrir tudo: que eu não estava indo nas aulas de natação, que eu estava indo no parquinho, que a Tetê e o “Rúlio" me ajudavam a ir no parquinho… E eu sei que eu ia ganhar um castigo muito grande e que a mamãe iria despedir o “Rúlio" e a Tetê, e eu nunca mais iria ver o Pilha. 

Meu coração ficou tão apertado, que parecia que tinha uma coisa esmagando ele… daí eu falei:

— Claro que não, mamãe.

(Continua na semana que vem, na segunda metade do EPÍLOGO).


Luís Augusto Menna Barreto

24 de outubro de 2021

domingo, 17 de outubro de 2021

Eu, o Pilha e a Flor… (Ah!, tá bom: Eu, o Pilha e a Branquela Burra) - parte 3

 

Eu caí e ralei a bunda, quando o motorista do carro da branquela me jogou no chão. Fiquei com muita raiva de tudo: da branquela, do chão tão quente queimando a minha bunda, dos carros dos ricos, de terem achado que sou ladrão, de terem me chamado de mendigo… raiva do Pilha ter se metido com essa branquela. 

Eu fiquei com vontade de gritar pro Pilha: “eu não disse? Não te avisei? Quem é o mané, agora?”

Mas acho que o que eu tava com mais raiva era de ver o Pilha ali, triste, parado, olhando o carro da branquela ir embora. Daí, eu não disse nada pra ele. Só levantei e fiquei do lado. Eu não sou esperto como o Pilha, que sempre sabe o que dizer. Mas mesmo não sendo esperto, eu sei que tem vezes que o melhor é não dizer nada e só ficar do lado do amigo. Mesmo se a gente tiver com raiva que sabe que vai passar.

Ele esperou o carro desaparecer. Fiquei com medo do Pilha brigar comigo, porque se eu não tivesse me pendurado no vidro, nada disso ia acontecer, e a gente nem ia saber que a branquela tava naquele carro. Pelo menos o Pilha viu que ela é uma mentirosa. Meu coração ficou rapidão quando o Pilha se virou pra mim. Se ele brigasse comigo, eu ia falar pra ele tudo o que eu acho daquela metida. Azar se ele ficasse brabo! Mas ele não brigou:

— Machucou, mané?

— Não… Pilha, tu não tá brabo comigo?

— Não.

— Tu não tá com raiva, Pilha?

— Não sei… raiva do quê?

— Caramba, Pilha! De tudo!

— Não sei. Tu tá?

— Eu tô, Pilha! Claro que eu tô! — Eu gritei e comecei a chorar. Não sei de onde vinha esse choro, mas parecia que tava preso na minha garganta. Eu não aguentei e gritei tudo pro Pilha. — Tô com raiva da gente nunca ter nada, tô com raiva da gente nunca poder nem brincar com as outras crianças do parquinho. To com raiva dos ricos que sempre acham que a gente quer roubar. Tô com raiva de ti, porque tu só quis saber da branquela burra. Tô com raiva dessa vida, Pilha… tô com raiva de Deus! 

Eu tava chorando muito. Mas quando eu disse que tava com raiva de Deus, o Pilha parou na minha frente e colocou a mão no meu ombro. Ele nunca faz isso. Ele não gosta de encostar em ninguém, ainda mais depois que o “Desbravado" pegou ele*. Naquele tempo, eu não entendi o que o “Desbravado" fazia. Agora eu sei que o Pilha não gosta de encostar em gente porque foi “estrupado”. Mas ele botou a mão no meu ombro, e olhou direto pra mim. Eu ainda tava chorando de raiva.

— Mané, quem tu tem? 

Eu não entendi. Fiquei passando a mão no olho, pra limpar o choro. O Pilha insistiu:

— Quem tu tem?

Eu nem conseguia falar. Tava soluçando, depois de ter gritado tudo que eu tava com raiva. Daí, o Pilha falou:

— A gente só tem a gente, mané! A gente tem que ser amigo até morrer! Tua mãe não cuida de ti. Ela só quer que tu leve os 8 pilas todos os dias. Tua mana é bebê, e assim que crescer tua mãe vai botar ela na sinaleira também. O meu irmão tá preso. A gente só tem a gente. E por a gente, só tem Deus. Se a gente brigar com Ele, quem vai cuidar de nós, mané?

— Tu. 

Era o Pilha que tinha que cuidar. Era o Pilha que sempre cuidava da gente. E quando eu falei isso, o Pilha ficou olhando pra mim, um pouco. Daí, ele sorriu. Mas foi diferente. Parecia que a boca tava pesada. Mas ele sorriu mesmo assim:

— Então bora limpar esse choro, que rico não gosta de ver criança chorando. Daí que ninguém abaixa o vidro. Bora sorrir pros ricos e vamos trabalhar até a gente ficar rico, hoje!

— Nós não vamos no parquinho?

— Hoje não, mané. 

Passou um monte de dias sem que a gente fosse no parquinho. Ficamos na sinaleira direto. O Pilha parecia não cansar. Mas eu via como ele parecia triste. Até que chegou o dia de nome redondo, o dia que a banca de revista não abre e que o Pilha nunca vinha, ele veio. Eu levei um susto, fiquei super feliz. 

— Bora no parquinho, mané!

Eu nem perguntei nada e fui com ele. Não tinha quase ninguém no parquinho, naquela hora, só um velho que tem uma perna mais curta que a outra tava lá com o cachorro de pata torta. Ele vai todos os dias e a gente chama ele de Muleta, porque ele só anda de muleta. Mas a gente tem medo dele, porque ele briga com os moleques que querem jogar pedras no cachorro dele.

Eu achei que a gente ia aproveitar pra ir nos brinquedos, porque o sol ainda nem tava forte e não tinha ninguém nos brinquedos. Mas o Pilha foi direto pro canteiro. Tinha um monte de flor deitada, porque tem vezes que as crianças jogam a bola e cai ali e elas pisam nas florzinhas. E quando brincam de pega-pega, também correm ali por cima. Quando o Pilha começou a cuidar do canteiro pra branquela burra, as crianças pararam de correr por ali. Mas fazia um tempão que a gente não vinha no parquinho, e tinha um monte de flor pisoteada. O Pilha começou a arrumar elas.

— Pra que isso, Pilha?! Tu nem tá mais vendo a branquela. Pra quê tu vai fazer isso se ela até mentiu que não te conhece? 

— Eu não tô fazendo isso por ela, mané.

— Pra quem tu tá fazendo então?

O Pilha ficou um tempo em silêncio… só cavando a terra com a mão. Até que falou:

— … eu não sei. Só tô fazendo…

A gente continuou indo no parquinho. Mas agora, a gente ia cedo, antes do trabalho. O Pilha ficava arrumando o canteiro de flor e mal aproveitava os brinquedos, que estavam sempre vazios naquela hora, porque os filhos dos ricos estavam na escola. Depois, a gente ia pra nossa sinaleira. 

O Pilha nunca mais tinha falado na branquela burra. Já fazia uns vinte e onze dias, eu acho.

Daí, a gente tava sentado no meio fio, um de cada lado da rua, esperando o sinal fechar, e um carrão grandão assim, óh, veio diminuindo a velocidade, diminuindo, e quase parou bem perto do Pilha. Eu não consegui ver, porque tinha aqueles vidros escuros e o carro escondeu o Pilha. 

Quando o carro foi embora, o Pilha tava segurando uma florzinha com o galho quebrado. E tava com o sorriso mais bobo que já vi. 

(Continua no epílogo, semana que v



em…)


*Vide "Um Conto do Pilha"

Para ler Um Conto do Pilha, CLIQUE AQUI!


Luís Augusto Menna Barreto

17 de outubro de 2021