Eu já contei algumas histórias sobre a “Black Friday”, especialmente histórias que aconteceram no Marajó. Porque tu sabes que tem coisas que só é possível acreditar, porque acontecem no Marajó!
Pois essa foi outra da “Black Friday”… no Marajó:
Eu lembro que em 2019, quando houve a inauguração da loja Americanas em Marajó City, a “Black Friday” foi um acontecimento. E eu cheguei a contar duas histórias sobre aqueles eventos maravilhosos.
Em 2020, ainda que houvesse a pandemia como uma nova realidade imposta, houve, também um ou outro caso, mas nem cheguei a contar… ainda! Mas o que aconteceu antes, naqueles meus maravilhosos anos de Marajó, é algo difícil de acreditar. Bem, mas nem tudo que conto eu espero que acreditem, porque eu mesmo lendo, penso que se eu não tivesse vivido tudo isso, eu duvidaria! Só posso afirmar que são histórias reais, e que eu as vivenciei. Se tu és Marajoara, certamente não duvidas. Se não és Marajoara, eu rememoro Shakespeare: “Há mais mistérios entre o Céu e a Terra, do que tua vã filosofia possa imaginar”. Então, um conselho: se não vais acreditar, apenas não duvides, antes de conheceres o Marajó e suas gentes!
Pois, como era de se esperar, era sexta-feira! “A” sexta-feira! A aglomeração na frente das lojas locais era inenarrável! Mal o Tonelada dispersava uma briga aqui, surgia uma outra escaramuça ali, todas em frente às lojas que abrem as portas à meia noite de quinta-feira para sexta-feira. Daí, que normalmente, por volta do meio dia, as confusões vão terminando e a cidade começa a recuperar um ritmo lento. Isso tudo, sem contar o sol, que faz com que a cidade fique com as ruas desertas a partir do meio dia. Daí, que a partir de 12 horas, é raro chegar ao fórum qualquer caso, ou mesmo, qualquer pessoa presa em flagrante delito, porque até os malandros respeitam o horário da sesta.
Mas naquela sexta-feira de “Black Friday”, o Fechadura chegou apresentando o Cedecê!
Eu confesso que estranhei, porque o Fechadura é o carcereiro e “faz tudo” na delegacia, mas raramente apresenta os presos. Normalmente chamam o Tonelada, policial militar, porque com ele, ninguém “se rebarba”, como dizem por aqui!
— Fala Fechadura! Tu, trazendo preso?
— Esse fui eu que dei voz de prisão, doutor!
— E agora tu também sai atrás de preso, Fechadura?
— Não fui atrás, doutor! Ele que veio na delegacia!
— Hein?
— Foi lá fazer reclamação, doutor! Disse que foi enganado na “Bléqui Fráidi”.
— E tu prendeste o caboclo por ir reclamar?
— Tava com droga, doutor! Fosse o Tonelada, já ia botar no 33. Eu acho que é 28, daí trouxe para o senhor, logo!*
Eu não estava entendendo muito bem, então, decidi perguntar logo para o Cedecê!
— Caramba, Cedecê, e tu tá doido? Entrar na delegacia com droga? Logo na delegacia? E como o Fechadura descobriu que tu estavas com droga? Ele farejou?
— Eu que mostrei, doutor!
— Hein?
O caso foi o seguinte: o Cedecê sempre arruma confusão no comércio dizendo que o comerciante está infringindo o “CDC" (Código de Defesa do Consumidor). Acontece, que o Cedecê é usuário de drogas, e “diz que”** que até a droga entrou em promoção na “Black Friday”. O problema é que na boca da Simulada, ela até baixou o preço, mas daí, para compensar, aumentou na mistura. Então o Cedecê fumou, mas não deu barato. Ficou indignado! Foi pedir a intervenção da autoridade, para dar jeito e a Simulada diminuir a mistura!
Isso já era bem “diferente" para uma sexta-feira, mesmo de Black Friday! Mas o dia ainda reservaria mais uma situação peculiar!
Perto de fechar as portas do Forum, por volta de 14h, o Goela entra no gabinete, com aquela cara de quem sabe que que vou ficar estressado:
— Doutor, parece que o Barganha tá precisando de ajuda!
— Qual é, Goela? O Barganha já tem mais de 20 anos de fórum, que ajuda que ele pode precisar…?
Mal falei isso e ouvi a D. Boneca, que cuida da limpeza do Fórum, passar apressada pelo corredor em direção à porta da rua, e logo depois, a Tutela saindo correndo:
— Credo em cruz, ave Maria, sai pra lá, visagem! — Saíram gritando!
— O que é isso, Goela?
— Falei, doutor! É que o Ralhado desmorreu.
— Hein?
— Doutor, o Ralhado é o Raimundo Anunciação dos Prazeres.
Tentei puxar pela memória, afinal não eram tantos processos assim. Repeti o nome, de forma “espichada”, como a gente faz quando quer tentar lembrar:
— Raimuuuuuuuuundo…
Lembrei:
— Raimundo Anunciação dos Prazeres? Mas ele morreu, o inventário tá no fim! Não tem filhos, vai ficar tudo pra Arraia! — (“Arraia”, é a Socorro dos Anjos de Oliveira, viúva… eu acho!)
— Pois se morreu, é a alma penada que tá lá com o Barganha, doutor!
Mandei chamar. Confesso que quando o Goela virou as costas, até fiz o Sinal da Cruz. E quando o Caboclo entrou, senti um arrepio na espinha, mas tentei manter a pose!
— Tu que és o Raimundo Anunciação dos Prazeres?
— Sou eu, sim senhor!
— Meu Deus! Tem um inventário tramitando há mais de 5 anos! Que bom que demorou e não mandei expedir os formais de partida ainda! Ia ser muito mais complicado para o senhor recuperar os bens!
— Doutor… sabe o que é… eu não queria recuperar nada não. Na verdade, doutor, nem quero desmorrer!
— Hein?
— Sabe, doutor, a Arraia era muito braba. No começo era bom, mas logo virou só briga! Não podia me ver numa rede, que logo arrumava uma terra pra roçar, um matapi pra por no rio, um açaizal pra me fazer tirar palmito, doutor! A vida era muito sofrida! Daí que conheci a Escondida lá pra bandas da água grande da baía, e fui logo me engraçando com ela, doutor! Deixei tudo pra trás sem fazer caso, e a Arraia encontrou o casco que eu tava e logo achou que me afoguei por estar bebido! Eu vim duas ou três vezes na cidade e fiquei sabendo que eu tava morto!
— Mas agora tu estás vivo, Ralhado!
— Carece não, doutor! Nunca vivi tão bem, quanto depois de ter morrido!
— Mas tu não vieste aqui pra desmorrer? Vou ter que anular o inventário e te desmorrer, Ralhado!
— Faça isso, não, doutor! Pior que uma ex-mulher, é uma ex-viúva! E eu só vim aqui, por causa da “bléqui-fráidi”!
— Hein?
— Doutor, como to morrido, meu crediário não passa! Queria comprar um fogão pra Escondida, aproveitando a “bléqui fráidi”. Daí queria ver se o senhor podia me dar um papel pra ressuscitar só um instante, e autorizar fazer um crediário! É o tempo de fazer a compra e eu “desvivo” de novo!
Pois é… tem coisas que só no Marajó.
*Referência aos artigos 33 e 28 da Lei 11.343/2006. O primeiro (artigo 33) trata do tráfico propriamente dito, com previsão de pena bem maior que o segundo (artigo 28), que trata de consumo.
**“Diz que”, é uma expressão corrente no Marajó, que se pronuncia quase como se fosse apenas uma palavra com o som “dísqui”, quando se quer referir a comentários dos quais não se sabe a origem! Por isso que na oração, no texto, a expressão “diz que” é seguida de mais um “que”. Equivale a “diz-se”, como na frase: “Diz-se, por aí, que brasileiros são alegres” = “Dísqui que brasileiros são alegres”.
Luís Augusto Menna Barreto
27.11.2021