bora cronicar
Um Conto do Pilha - parte 1
Eu aprendi o que é uma semana: Sempre que a banca de revista fecha, e sempre que o Pilha vai pro centro vender DVD pirata com o irmão mais velho dele, eu sei que passou uma semana. Mas eu sei que os ricos também contam o tempo por meses. Aprendi o nome de alguns, e meu preferido é “setembro”! Acho bonito saber dizer: “Se-tem-bro”! Eu nem sei quantos meses existe, mas tem vários, e eu não sei colocar eles em fila. E tem os anos! Daí, pra passar ano, é um bocado de dias. A gente se perde contando, e tem mais número do que eu conheço, porque depois do dez eu me atrapalho.
Agora tá numa parte do ano que tá muito frio. O pé dói no chão, porque é muito frio! O Pilha falou que todo junho é assim, e ia ficar pior. Então, acho que “junho" é nome de mês. Ele falou “todo ano”… mas eu nem lembro muito do ano passado. Acho que eu era muito pequeno, ainda, pra lembrar. Eu sei, é que tá muito frio! Fica mais difícil de trabalhar, porque os ricos passam com as janelas dos carros fechadas. E poucos abrem pra dar um dinheiro na sinaleira. Durante o dia, a gente nem sente muito frio, porque daí, fica correndo entre os carros, e a gente se esquenta. Mas agora, que tá noite, passa menos carro, e a gente corre menos.
Hoje é o dia mais chato. O Pilha foi vender DVD com o irmão dele e a banca tá fechada! Então, sei que o nome do dia, hoje, é “domingo".
Ontem, Pilha me deu uma toalha que ele achou, pra eu me enrolar nela.
Eu trabalhei o dia todo e só consegui os 8 pilas que a mãe manda eu levar todo dia. Se eu não der quando chegar no muro que a gente dorme, ela vira o bicho e começa a me xingar e dar tapa na cabeça. Outro dia eu cheguei com 6 pilas e foi isso. Mas o engraçado, é que pelo menos ficar me defendendo da mãe batendo em mim, fez passar um pouco do frio! Acho que ela também não queria parar de me bater porque ela também tava se esquentando. Então nem fugi muito. Tava tão frio que acho que ela pensou a mesma coisa, e só parou de me bater quando cansou. Daí, ela se encostou no nosso muro, atrás do papelão, pegou a mana e ficamos nós três bem encostados. Eu acho que a noite esquentou, porque eu consegui dormir. Mas hoje tá mais frio ainda que naquela noite. Acho que tá tão frio que a mãe nem se mexe direito e fica com a mana toda enrolada nela. Ela botou a mana por baixo da roupa dela, pra esquentar. Choveu no final da noite, ontem, e o papelão molhou um pouco. Daí, estragou e agora, só tem um pedaço. Não dá pra nós três. Daí a mãe me disse:
— Vai achar aquele teu amigo e te vira com ele!
Daí eu saí. Eu não sabia onde procurar o Pilha, ainda mais à noite. Sempre encontro ele na sinaleira. Senão, é sempre ele que me encontra em algum lugar. E com esse frio, não queria ficar andando por aí, ainda mais à noite.
Eu tava congelando! Eu tava indo lá pro lado da nossa sinaleira, que é o único lugar que eu conheço bem. E de lá, eu sei ir pro parquinho. Anda tão frio, que nem o Ranho nem o Uálquim a gente vê mais no parquinho.
— Ei moleque!
Levei um susto! Era um grandão que o Pilha disse uma vez que era estranho e não era pra chegar perto dele. O Pilha falou uma palavra diferente, que eu não sei direito. Parece que ele disse que não era pra chegar perto desse cara porque ele era “desbravado" eu acho. Sei lá, palavra difícil.
— O que tu tá andando nesse frio, moleque?
— To procurando o Pilha.
— Não vai achar. O Pilha foi com o irmão dele tentar vender DVD lá pra praia. Só volta amanhã.
Eu fiquei sem saber o que fazer. Como assim o Pilha viajou? Ele nunca viajou. E ele nem me disse nada. E agora?
— Cadê tua mãe, moleque?
— Ela tá lá no nosso muro. Nosso papelão tá pequeno e ela mandou eu procurar o Pilha pra arrumar onde dormir.
— Eu tô com espaço embaixo dos maricá do parque perto do rio. Escondi uma caixa de geladeira lá. Vem comigo!
— Não sei…
Daí ele pegou meu braço e ficou dizendo que tudo bem, que eu ia morrer se ficasse no frio. E ele disse que tinha café. Eu fiquei meio assustado. Mas uma parte de mim queria ir só pra tomar café com esse frio! Só fiquei mais tranquilo quando passamos por um outro cara que falou com o “Desbravado”:
— E aí, maluco, arranjou jeito de te esquentar, é?! — e ele apontou pra mim. Não entendi bem.
— Vou levar o moleque pra dar um “café" pra ele! — O “Desbravado" falou café e mexeu a sobrancelha. Acho que até ele tava louco pelo café. Levou um tempão até a gente chegar no parque do lado do rio.
Mas quando chegamos nos maricás do parque, ventava muito. Tava muito mais frio que lá no muro da mãe. Ele não largou meu braço e eu comecei a me assustar um pouco. Mas ele disse que a gente já ia se esquentar.
Ele sentou no chão e me puxou. Não gostei. Olhei pra tudo que foi lado e não vi nenhuma caixa de papelão e não vi café nenhum! Ele me puxou com força e fez eu ficar sentado no colo dele. Eu tentei sair e ele disse que era pra eu ficar quieto que eu ia ficar quentinho. Mas eu acho que ele tava me enganando. Daí, eu tentei sair e ele me agarrou com força. Eu comecei a gritar e ele me deu um baita tapão e me jogou no chão e deitou por cima de mim. Eu comecei a ficar desesperado. Eu acho que ele não tinha papelão coisa nenhuma e queria que eu fosse o papelão dele. Mas como sou pequeno ele começou a tentar tirar minha roupa. Eu achei que ele queria fazer uma cama com minha roupa. Eu gritava, mas quem ia escutar ali? Eu tentei lutar mas não consegui. Eu sei que homem não chora, mas eu tava chorando, sim. E eu tava quase desmaiando, porque ele tava muito pesado em cima de mim, e já tinha tirado meu calção.
Daí, aconteceu uma coisa estranha: parecia que eu tava num sonho. Parecia que eu não sentia mais nada. Ficou tudo quieto. E eu nem sei por quê, mas lembrei da história do São Jorge que o Pilha me contou naquela vez que eu fui parar no hospital e o Pilha me salvou. E daí, São Jorge apareceu… era tão bonito, num cavalo mais bonito ainda! E eu pedi pra ele esquentar a mãe e a mana, e perguntei se ele sabia cadê o Pilha.
E eu vou contar uma coisa pra vocês: São Jorge é o melhor santo do mundo! É poderoso! Porque de repente, eu acordei com o Pilha me chacoalhando. São Jorge achou o Pilha pra mim! O homem que me levou pra lá, tava deitado com a cara no chão e parecia que tinha sangue na cabeça dele.
— Bora, mané, que esse depravado vai desmorrer daqui há pouco!
Isso! Era “depravado" o nome que o Pilha chamava pra ele! Que palavra diferente, né? Depois vou perguntar pro Pilha por que ele chama o homem assim!
Saímos correndo. O Pilha correu muito tempo! E eu corri atrás dele. Quando a gente parou de correr, já tava até quente! O frio tinha ido embora! E o Pilha levou a gente lá pra praça que tinha uma baita igreja. Eu achei um barato que a gente falava e saía fumaça da boca. Acho que a gente tava pegando fogo por dentro de tanto que correu!
O Pilha olhou sério pra mim:
— Nunca mais deixa ninguém encostar em você, entendeu!
Eu fiz que sim com a cabeça, mas não tava entendendo muito o que ele quis dizer.
— Tua sorte, mané, foi que quando eu tava voltando com o mano, cruzamos com o Cigano e ele perguntou se o o mano também tinha arrumado um moleque pra esquentar, igual o depravado, que tinha conseguido o moleque da sinaleira. Daí que eu fui atrás de você, otário!
Eu não entendi nada daquela conversa. Mas eu sabia era que o Pilha tava fazendo confusão. Foi São Jorge que me levou pro Pilha!
(Fim da parte 1)
Luís Augusto Menna Barreto
21.5.2019
😢
ResponderExcluirÀs vezes, a vida dói...!
ExcluirTantos Pilhas... tantas vezes, sequer baixamos o vidro.
São crianças... garotos que a vida está simplesmente roubando a inocência...
Se roubarem sua inocência, o que vai restar?
No que se transformam garotos que tem a inocência roubada, quando crescem...?
Ohh coitado, verdade poeta quantos tem a inocência roubada quantos passaram por isso nas ruas, a mãe dele de proteger ainda bate nale, imagina até fome passa nas ruas eles o pouco que ganha em,vejo meninos e meninas aqui nas ruas fico com pena, queria proteger todos se podesse 😔😔 parabéns poeta
ResponderExcluirObrigado, guria...
ExcluirO Conto de hoje, é quase como expor minha covardia...
ouvi o Pilha, escrevi... fiquei triste e revoltado... e meus braços parecem ainda cruzados...!
Até eu fiquei com o coração apertado, só de imaginar o fato que aconteceu tadinho 😓😢 Revolta mesmo entendo vc!
ExcluirRealidade nua e crua.... Doentes como o depravado estão em toda parte. A vigília de que quem tem crianças deve ser constante. Infelizmente é um risco que não podemos saber de onde ou qdo vai aparecer... Só podemos vigiar ��
ResponderExcluirVigiai! A hora vira e temos de estar preparados...! Vigiemos e oremos....
ExcluirObrigado, Lola!!!
Aí gente a realidade de tantas crianças. Que triste isso!!! Por sorte o Mané foi salvo pelo Pilha, mas quantos não tiveram e não tem o mesmo livramento. Ótima crônica escritor um alerta, uma estória que podemos contar para crianças sem deixar traumas apenas alertando para os perigos de gente covarde e sem escrúpulos!
ResponderExcluirUma história de tantos Pilhas...
Excluirquanta inocência roubada... quanta infância violada.... quanto custará nossa omissão...?!
Manda teus anjos, Sônia.... manda teus anjos....
Qta crueldade com um ser tão inocente. Triste realidade de um mundo, onde tantos tem tanto e outros não tem onde se recostar. .. onde se tornam usuários de drogas, até para "aliviar" suas angústias de passar fome, frio e tristeza de não ter para onde voltar, depois de um dia de luta pela sobrevivência. E ainda são taxados de vagabundos. É de cortar o coração, ver crianças serem roubadas de sua inocência. ... impossível não chorar com isso, ficar indignada e até se perguntar, Deus é tão misericordioso, pq Ele permite isso?
ResponderExcluirAcho que Deus sempre olha... sempre sabe... E nós, muitas vezes não entendemos os desígnios...
ExcluirDe outro lado, muitas vezes, os Pilhas são colocados na nossa frente para dar chance a nós mesmos... de sermos melhores.. de sermos iguais...
Eu sei que esse conto foi diferente e mais cru... mas foi o que o Pilha veio contar-me. Há mais, ainda, da aventura desses garotos enfrentando a época fria do ano... O Conto ainda trará desdobramentos...!
Uma vez já falei aqui...Sou fã do Pilha... É a nossa nua e crua realidade!! O que dói fundo é a omissão com tantos 'Pilhas' que acabam cruzando nosso caminho...
ResponderExcluirMichele... eu concordo em tudo contigo. Desde eu TAMBÉM ser fã do Pilha, até minha própria covardia de ficar escrevendo as aventuras e desventuras desses garotos sem tomar uma efetiva atitude pra mudar algo diante dos Pilhas que sempre cruzam meu caminho... É um conto diferente. Eu espero que o Pilha não me conte em vão suas histórias, e alguém possa ser tocado e sair, quem sabe, reconstruído...!
Excluir.....
ResponderExcluirAs palavras nào querem sair. 😯
Armelinda... às vezes esse silêncio diz muito.
ExcluirE eu agradeço demais o fato de tu teres vindo aqui trazer teu abraço e mostrar que não ficaste indiferente ao Pilha.
Obrigado...!
Estava com saudade do pilha, sou muito fã desse garoto, todos deveriam ler, que texto maravilhoso para uma bela reflexão, o que estamos fazendo com aqueles que chamamos o futuro do Brasil??
ResponderExcluirNós nos sentimos tão confortáveis quando essa realidade não é jogada na nossa cara...
ExcluirEu sentei, abracei o Pilha, e chorei com ele...!
Taí!
ResponderExcluir.O Pilha me desmonta, me esfarela, me liquefaz.
Foi sempre assim, desde que o conheci.
Sem palavras, Méri.
Ah!, escritora.... e ele estava esperando por ti!!!!
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