Eu, o Pilha e o São Jorge*
(A quarta aventura do Pilha)
Originalmente publicado no antigo blog
"Menna Comentários", precursor deste.
Data da postagem original: 29.04.2016.
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De tudo, tudo, não me lembro. Na verdade, acho que lembro pouca coisa. Não sei o que acontece com a cabeça da gente. Ou só na minha, sei lá. Às vezes, quando não me lembro muito bem de uma coisa e faço força, parece que minha cabeça me conta uma mentira que fico acreditando. E passo a contar como se fosse verdade. Então, não sei se o que lembro foi o que aconteceu, ou é minha cabeça que inventou pra não ficar em branco.
Eu lembro que eu e o Pilha ficamos até tarde lá em volta do estádio, porque era dia de jogo grande. Ele sempre dizia que a gente podia ganhar uma grana a mais com os jogos. A gente não é flanelinha. Os flanelinhas são sempre os adultos grandões. E dá muita briga nos dias de jogo grande entre os flanelinhas, porque eles nunca se entendem sobre quem cuida de qual carro. Mas o Pilha me levou e disse pra ficar ligado nos carros em que os flanelinhas estavam longe, ou ocupados pegando dinheiro de outro dono de carro, que a gente chega como se fosse o flanelinha e ganha uma grana. Ele disse que só três ou quatro carros que a gente conseguisse, daria mais que o dia todo na sinaleira, mas que a gente não podia vacilar, senão a gente ia apanhar muito dos flanelas!
“Mas a gente nem tem flanela, Pilha!”
“Me dá a camisa”.
“O que?, eu não, pega a tua”.
“A minha não dá, é escura! A tua é branca e tá suja. Com a noite vai parecer a flanelinha amarela”.
Eu dei, né?! O Pilha sempre sabia das coisas. Eu tireI a camisa e dei pra ele. Ele colocou no ombro e ficou esperando. A gente tava meio agachado entre dois carros. Daí, quando os flanelinhas estavam longe e veio um homem e uma mulher para um carro perto, o Pilha disse:
“Vou te mostrar, fica cuidando se não vem um flanelinha, senão ele me mata”!
Como assim “ele te mata”, eu pensei, mas o Pilha já tinha levantado e ia pro lado do homem com minha camisa no ombro.
“Jogo bom, né, meu patrão? Óh, tá tudo certinho com o carro, não deixei ninguém chegar perto!"
E o cara falou uma coisa e deu um dinheiro pro Pilha. Ele voltou correndo e me mostrou:
“Vou só?! Te falei!”
5 pilas! O Pilha ganhou 5 pilas de uma vez só! A nota era roxa! Linda!
Daí me empolguei. O Pilha fez mais uma vez e ganhou mais 5. Caramba: 10 pilas!
"Tua vez”, ele falou.
Fiquei nervoso. Ele me deu a camisa dele pra vestir. Falou que sem camisa o pessoal não gosta e não dá dinheiro. Pensam que a gente é vagabundo e não trabalha. Logo a gente, que trabalha o dia todo na sinaleira! Vesti a camisa do Pilha e botei a minha no ombro. Fiz igualzinho a ele!
Caramba, foi incrível! Ganhei 5 pilas no mole! Mas dava medo! Porque a gente sempre tinha que ficar cuidando se vinha o flanelinha! O Pilha falou que se pegassem a gente eles matavam a gente!
Pois daí em diante é que não me lembro bem. O Pilha tava pegando um dinheiro e eu vi o flanelinha gritar. Fiquei desesperado. O Flanelinha correu e eu gritei: “Pilha, corre!”. O Flanelinha me viu gritar e como eu tava mais perto veio pro meu lado, correndo. Saí correndo pro lado da avenida. Não vi direito. Ouvi um estouro. Daí, não lembro de muita coisa! Tem vez que me lembro e parece que eu tava voando. Foi tão lindo! Fiquei vendo tudo ali embaixo e eu passando por cima do carro.
Mas não lembro direito.
Lembro que parece que eu tava num sonho e via um monte de camas e um monte de gente vestindo branco e verde. Lembro sempre do Pilha sentado ali perto. Mas lembro e esqueço, como se eu acordasse e dormisse. Mas parecia que eu sempre ouvia a voz dele. Mas não lembro bem o que ele dizia.
Vinha uma moça e colocava agulha no meu braço.
Dessa parte, nem lembro direito.
Até que quando acordei de verdade, o Pilha tava lá. Ele tava com um livro na mão e me contava uma história. Eu lembro de uma parte que ele contava:
“Daí, a guria de vermelho viu um lobo e falou: vou enganar esse lobo otário, e levar ele pra vovó cozinhar.”
Só dessa parte eu lembro. Porque quando acordei ele logo jogou o livro pro lado.
“Tu tá bem?”
“Arrã!”, eu falei. “Melhor que tu com esse olho roxo!” O Olho dele tava muito roxo!
Minha perna doía muito. Perguntei o que aconteceu e ele falou: "tu foi atropelado e voou por cima de dois carros. Não sabe atravessar a rua?”
Daí me lembrei mais ou menos do flanelinha correndo atrás de mim. E lembrei que corri pra avenida. Então eu fui atropelado! “E o flanelinha que me perseguiu?”
“São Jorge te salvou! Ele lutou com o flanelinha e te salvou. São Jorge! São Jorge mata dragão, ia perder pra um flanelinha?"
Essa é uma parte que não sei se lembro ou minha cabeça tá inventando prá mim, porque não entendia o que o Pilha tava dizendo com São Jorge, dragão. Só sei uma coisa! Acho que é por causa desse tal São Jorge que o pilha escolheu que o dia de anIversário dele ia ser 23 de abril.
Demorou um pouco, e veio uma mulher de branco. Correu logo o Pilha dali:
“De novo aqui, moleque. Se manda, ou vou chamar a policia”.
Eu sei que o Pilha não tinha medo de policia! Mas ele saiu. Não gostava de ficar onde tinha gente mandando ele sair.
Depois que a mulher de branco saiu, a moça que tava na cama ao lado da minha falou:
“Ele é o São Jorge”.
Não entendi.
“O que?”
"Eu cheguei no pronto socorro junto contigo. Vi a policia contar que ele tava brigando com o flanelinha que tava te batendo quando foi atropelado. Ele foi atendido no olho, mas liberaram ele no mesmo dia. Faz 4 dias que tu tá aqui, guri. E ele fica toda hora entrando, pega o livro e finge que lê, fica inventando história."
Não gostei de ouvi a mulher dizer que ele ficava fingindo que lê! Não gosto que falem do Pilha.
“Ele sabe lê”, eu falei.
A mulher não falou mais nada.
… Mas eu também tinha visto que o Pilha tava segurando o livro de cabeça para baixo. Só que não vou deixar ninguém falar do meu amigo! Enquanto eu tiver por perto, vou sempre defender ele.
Por Luís Augusto Menna Barreto
- Pilha é meu personagem mais caro… não falo de preço… falo de carinho… Já publiquei 5 aventuras do Pilha, e há uma sexta aventura inédita, ainda… mas alguns não o conhecem… por isso, decidi republicar. Perdoem-me os que já o conhecem… de qualquer forma, eu estou com saudade do Pilha…! Esta é a sua quarta aventura!