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quinta-feira, 28 de março de 2019

bora cronicar - A Noiva da Lagoa e o Aflito

Bora Cronicar

A Noiva da Lagoa e o Aflito
(Das Lendas de Santo Antônio da Patrulha)

Faz dois dias que minha bela, querida, saudosa, distante e lendária Santo Antônio da Patrulha aparece no 'bora cronicar'. Na quarta-feira, foi a crônica "O Sapo e a Enforcada". Ontem, colocando as coisas em seus devidos lugares, provei de forma insofismável, que tudo que existe em Paris, Santo Antônio da Patrulha tem; só que melhor! 
Daí, que nos comentários, chegaram a referir a Igreja de Santo Antônio. Bem, eu nem quis falar nela, pra não abalar a fama da Catedral de Notre-Dame. Mas, cá entre nós, não há o que a Igreja Matriz possa perder em beleza arquitetônica para Notre-Dame. Só sua escadaria recebendo a todos os que chegam, por qualquer dos lados, já é um convite à constatação de sua simpatia! 
E nós ainda temos a Lagoa dos Barros, que, se não é tão grande quanto a Lagoa dos Patos, é, evidentemente, muito mais charmosa. É lagoa que não se consegue enxergar a margem oposta e banha vários municípios, dentre eles, o mais relevante, Santo Antônio da Patrulha, claro! 
Eu lembro que quando éramos criança, a mãe às vezes aprontava-nos uma surpresa: nos tórridos dias do verão patrulhense, especialmente se algum parente de outra cidade estava visitando-nos, a mãe arrumava as coisas na Bela, e íamos para a lagoa. A “Bela" era uma Belina 76, que compramos em 1978 e esteve em atividade até 1998. Tudo cabia na Bela. E era um tempo muito mais romântico para automóveis. Quando viajávamos, a mãe colocava um acolchoado na “cachorreira" (o porta-malas da Belina, que ficava na parte interna traseira do carro), um travesseiro e eu pegava alguns gibis e ia de Santo Antônio da Patrulha até Canoas, distante 80 quilômetros para visitar os parentes, deitado ali atrás, lendo gibis. A mana ficava de dona do banco traseiro, enquanto a mãe dirigia e o pai ia ao lado, conversando. Era uma época sem “airbags”, sem cinto de segurança obrigatório, com postos de gasolina que fechavam aos domingos e, ainda assim, escapamos ilesos e vivemos! 
Pois a mãe aprontava a Bela e íamos em quantos fôssemos, porque não havia quem não coubesse na Bela, afinal, naquela época, década de 70 e 80, onde havia 5 lugares, cabiam ao menos 12! Uns para frente outros para trás, uns no colo outros na cachorreira, e vamos embora todo mundo! De mais a mais, a lagoa ficava há apenas 15 quilômetros de nossa casa, indo pela “estrada velha”, uma rodovia estadual, francamente sinuosa, que corta Santo Antônio da Patrulha e vai contornando o começo da serra do mar, ligando a capital ao litoral. A lagoa fica a caminho do litoral. Daí que chegávamos por volta de 15 horas e brincávamos naquelas águas calmas em que entrávamos lagoa adentro sem jamais a água passar da nossa barriga, não importa o quanto entrássemos! 
Mas uma coisa era certa: jamais, mas JAMAIS MESMO, correr o risco de sair depois do sol se por! Antes pelo contrário: quando começava a esconder-se por trás dos morros da serra do mar, a gente já recolhia tudo e ia embora. Nunca houve notícia de alguém que insistisse para ficar mais um pouco! 
Por quê? Ah!, repare. Lembra-se de como eu me refiro à Santo Antônio da Patrulha, atento leitor?: “minha bela, querida, saudosa, distante e lendária Santo Antônio da Patrulha. Pois este lendária não é retórico. Aliás, todos os adjetivos tem uma exata razão para que eu os use. Pois a lendária, como você, inteligente leitor já intuiu, é por conta das várias lendas que existem em Santo Antônio. 
A própria Lagoa dos Barros tem várias lendas e, dentre elas, estas três que vou contar: uma delas, é a de que existe uma cidade submersa na lagoa e que em dias de ventos fortes, é possível ouvir os sinos da torre da Igreja submersa. O fato é que a lenda é tão forte, que não há notícia de navegação na lagoa, embora sua imensa extensão. Ninguém se atreve a atravessar a lagoa em lanchas, ou outra embarcação qualquer, porque não há notícia de quem tenha tentado e tenha ultrapassado a cidade submersa.  
Outra lenda, que se relaciona com a primeira é que no centro existe um redemoinho que tudo suga e que leva à cidade submersa. E é fato que sequer há atividade de pesca na Lagoa dos Barros porque nem mesmo pescadores tem coragem macular as lendas e verem-se eles próprios, fisgados pelo redemoinho e condenados a passar a eternidade na cidade submersa.
Foto de Maria Luiza
Finalmente, outra lenda, a mais famosa, tem a ver com o próprio padroeiro e com a lagoa. E não é apenas uma lenda, é baseado em fatos reais: Em 1938, Maria Luísa, recém casada, foi encontrada morta, enforcada no próprio véu, na Lagoa dos Barros. Conta-se que assim que casou, fora passear com o marido e este, possuído por espíritos malignos advindos da cidade submersa, enforcou a própria noiva. Depois de dois dias, submersa, seu corpo fora encontrado intacto, o que contraria qualquer explicação científica! 
O crime jamais foi elucidado. 
Reportagem da época 
O fato é que o espírito da noiva morta, constantemente é visto no local, às margens  da BR 190, ou da RS 30, as duas rodovias que no local cumprimentam-se lado a lado pela extensão patrulhense da lagoa. Muitos caminhoneiros que se arriscaram à noite por ali, juram que viram a noiva. Alguns caminhões, inclusive, foram encontrados no local, abandonados, sem notícia dos motoristas, sem que nada se houvesse roubado! Se você, estimado leitor, tiver curiosidade, pesquise sobre a lenda na internet.
O espírito da noiva na RS 030
Mas o fato é que patrulhense que se preza, não vai na lagoa depois do por do sol.
Mas, enfim, queria contar isso e dizer para vocês que certa feita, numa noite de chuva forte em que faltou energia elétrica em Marajó City, e, diante das notícias de visagem no Fórum, começamos a contar histórias assim, esperando pela energia, no corredor do fórum - mas com a porta aberta e duas lanternas acesas! 
Entre as histórias marajoaras e gaudérias, contei a lenda da noiva, que, à noite, sai em busca de um noivo para completar suas núpcias.
Pois não é que eu jamais poderia imaginar que o Aflito ficaria impressionado?! Depois daquela noite, inclusive, nunca mais vi o Aflito. Tempos depois, quando encontrei um colega do Marajó, estávamos conversando e ele ria da história do caboclo desesperado pra casar, mas que, de tão feio, não havia morena que convencesse ao enlace amoroso. Perguntei o que era feito dele e meu colega disse que a última notícia que teve do Aflito é que havia despedido de pai e mãe, e, decidido, rumara ao sul. Aflito teria dito apenas que tinha um encontro com sua noiva, o que surpreendeu a todos, porque jamais houve notícia que tivera alguma.
… e só agora percebo que justamente desde essa época, não se tem mais notícia de que a noiva tivesse aparecido ao anoitecer da Lagoa dos Barros…!

Luís Augusto Menna Barreto
29.3.2019

PS: O 'bora cronicar' está entrando em férias (junto comigo). Desde o início, decidi que este projeto seria feito nos dias úteis para eu ver se consigo levar isso junto com meu dia a dia normal de trabalho, dias úteis. Então, como eu estou entrando em férias, o 'bora cronicar' sai em férias junto comigo!
Volto com este projeto no dia 6 de maio de 2019, no meu retorno. 
Eventualmente vou fazer postagens, mas não será no projeto 'bora cronicar'!
Um imenso abraço no coração de todos os amigos e amigas.
Vou aproveitar as férias para dar andamento em vários projetos iniciados e dois que estou por iniciar:
2 roteiros de teatro;
1 roteiro de filme;
1 romance de suspense, a quatro mãos;
1 conto;
... e, surpresa, vou TENTAR, desenvolver a história do Velho e o Garrincha em forma de romance, para explicar vários "vazios" que ficaram pra serem preenchidos do conto original. A idéia ("pulga atrás da orelha"), foi a escritora Ana Isabel Rocha Macedo que plantou. Mas vou dizer uma coisa: se eu conseguir realizar este projeto, ela vai ter que prefaciar!!!!
Um imenso abraço,
Luís Augusto Menna Barreto


bora cronicar - Conhece Paris?

Bora Cronicar

Conhece Paris?

Ontem, eu falei de um evento que aconteceu lá em Santo Antônio da Patrulha, ou lá na minha bela, querida, saudosa, distante e lendária Santo Antônio da Patrulha.
E daí, diquei pensando…
Não se trata de ufanismo… é constatação mesmo:
"Torre Eiffel”… Pô, pra quem nasceu em Santo Antônio da Patrulha, especialmente na cidade baixa, e olha pra cima, pode ver ela imensa, linda, lá no alto do morro: A torre da antena da repetidora da TV! Acho até que em relacão ao nível do mar, a nossa torre é mais alta que a Torre Eiffel, porque, afinal, ela fica em cima do morro! E em cima do morro que tem em cima do morro que é toda a cidade alta.
Daí, como eu tava pensando em voz alta, e falando quase comigo mesmo sobre isso, um engraçadinho veio tirar onda e soprou: Champs-Élysées.
Báh, essa eu rebati na hora: Borges de Medeiros. Agora, você que conhece, diz aí: no que a Champs-Élysées poderia ganhar da Borges de Medeiros? Em charme, por exemplo? Nunquinhas! Nossa Borges de Medeiros é maravilhosa, com um discreto declive que, por onde nas décadas de 70, 80 e 90, desfilavam, orgulhosas, as bandas escolares em homenagem ao 7 de setembro (que saudade).
Agora me diga: como poderia a Champs-Élysées ser melhor do que a Borges de Medeiros, testemunha, inclusive, da passagem de D. Pedro II, indo do Rio de Janeiro, depois de ameaçar renunciar e ser o primeiro voluntário da Pátria, se o congresso não aprovasse sua ida à frente de Batalha nos Campos Neutrais, contra o Paraguai! Como poderia a Champs-Élysées ser maior que isso? Pela revolução Francesa, que teve aí, uma influenciasinha no mundo? Ora, muito mais teve a Revolução Farroupilha, com sua passagem também por Santo Antônio da Patrulha, porque, mais do que qualquer assuntinho mundial aí, teve influência no preço do charque!
“E a queda da Bastilha”, insistiu o engraçadinho! Logo vi que era um neófito em história mundial. Embora desprezado pelos livros de história, o presídio de Santo Antônio da Patrulha, localizado no “Beco do Laçasso”, que de beco nada tem, nada deve à Bastilha! Se existe unanimidade que a Bastilha era bonita por fora, mas muito feia por dentro, o presídio de Santo Antônio da Patrulha ganha longe: feio por dentro e por fora, e não essa coisa meia-boca afrancesada como a Bastilha!
O engraçadinho não desistiu: “E o Arco do Triunfo”? 
Rá!, monumento por monumento, a Fonte Imperial deixa pra trás o tal arco! Com a vantagem que a Fonte Imperial (construída justamente para a passagem de D. Pedro II no episódio que falei linhas acima) é fonte de verdade, com água e tudo! E mais: quem bebe da água de Santo Antônio da Patrulha, não morre sem voltar àqueles pagos! E o Arco? Quanta gente viu só uma vez e logo bateu as botas?
E daí pra frente, eu me adiantei: Palácio de Versalhes? Dou-lhe dois: a “casa do Zé Eduardo” que, de tão grande, no alto do morro, virou condomínio e o próprio “Casarão” branco, atrás da “casa do Zé Eduardo”. Rio Sena? Santo Antônio sobra: temos o Sinos, mais limpo e mais cheiroso! 
“Ah! Mas eles tem o hino mais bonito do mundo!”
Quero saber no que poderiam perder para ‘La Marseillaise’? 
“(…) E o Sinos majestoso serpenteia
Entre montes, campos verdes e floridos,
Deslizando vão mil sonhos e ilusões
Que elevam os corações
Deste povo destemido. (…)”!
Croissants? Fico com os sonhos da Casa da Colônia!
“E o Louvre”? Eu estava esperando por essa. Tinha certeza que vinha! Mas eu estava pronto: quem não conhece o Museu Júlio de Castilhos, não pode falar do Louvre! 
O que mais? O que mais?… ah… tente qualquer coisa. Para o que quiseres, haverá algo melhor em Santo Antônio da Patrulha!
Paris Saint-Germain? Neymar? Ora, precisa disso quem não jogou no Paladino, no Osório Lopes, no Jaú… Neymar é para os fracos! Quero ver enfrentar a zaga do segundo quadro do Palmerinha (de palmeira, não Palmeiras) como fazia o Pelezinho, nascido no Laçasso mesmo!
Enfim, não me venha com chorumelas! 
— Você conhece Paris? 
— Bora logo pra Santo Antônio da Patrulha!
Ah, tá! Você ia, ainda, falar de escritores franceses, como Victor Hugo e seu “Os Miseráveis”, ou Júlio Verne e suas “Vinte Mil Léguas Submarinas”? 
Tudo bem… … mas já ouviste falar nas Crônicas de Marajó City? Pois é! O escritor é patrulhense, e o nome… … a modéstia impede que eu decline!

Luís Augusto Menna Barreto

28.3.2019

quarta-feira, 27 de março de 2019

bora cronicar - O Sapo e a Enforcada

Bora Cronicar

O Sapo e a Enforcada

A minha infância em Santo Antônio da Patrulha, no interior do Rio Grande do Sul, foi uma infância normal da época. Infância desplugada, com muito joelho ralado, mercúrio cromo pintando joelhos e cotovelos de vermelho, Kichutes amarrados nas canelas, Kongas, Bambas e Havaianas apenas azul claro ou pretas que nós, garotos mais descolados, virávamos ao contrário, para que a parte colorida ficasse pra cima.
Como todo o adulto normal, sobretudo aqueles que já estão no que poderia dizer a segunda metade da vida, eu adoraria voltar. Mas, se pudesse escolher, mudaria algumas coisas. Sim, mesmo da minha maravilhosa infância em que uma tomada era suficiente em uma peça da casa, eu tenho alguns arrependimentos: eu encheria menos o saco da minha irmã (somos em dois e eu sou o caçula, aquele que fica com duas balas quando tem apenas três, aquele que chora e é defendido por ser o menor, aquele, enfim, que apareceu e roubou a atenção e os mimos que antes eram destinados ao mais velho). 
Mas afora o arrependimento de ter perturbado muito a mana, tem uma coisa que eu de jeito nenhum faria de novo: eu não atiraria pedras em sapos. Sim, isso mesmo. Eu não atiraria pedras em sapos!
É o seguinte: a gente morava atrás do salão da Igreja da cidade baixa. Naquela época, Santo Antônio da Patrulha, no Rio Grande do Sul, era dividida entre cidade baixa e cidade alta. Não, não são nomes de bairros. Por isso eu nem escrevi com letra maiúscula no início. É que a cidade limitava-se, praticamente a isso: a parte que ficava em cima do morro (chamada pelos antigos daquela época de “Vila” - “vou lá em cima na vila”, diziam), e a parte que ficava embaixo. Por motivos óbvios, um dia acaba o espaço em cima do morro e a cidade vai descendo, né?! Hoje já tem muitos bairros em Santo Antônio da Patrulha, a cidade cresceu muito! Os morros que a gente tinha que passar para ir no “açude dos cinca” já estão loteados e tem até um hotel bacana lá (onde eu fiz o João levar um tombo de bicicleta, mas isso conto outro dia!); onde era o “Sapão”, um campo de futebol onde destilávamos nossa certeza de que todos seríamos melhores que Pelé e Maradona, hoje é o loteamento Parque São José. A floricultura do Padre José (que foi padre mesmo) que era pequena na casa dele, hoje está de um lado e outro da rua. A super casa no alto do morro, feita na frente do “Casarão”, virou vários apartamentos… enfim, mudou! 
Mas eu tava falando que, na minha infância, a gente morava atrás do salão de festas da Igreja de baixo (da cidade baixa). Quando vinham aquelas chuvas de verão, rápidas, mas de generosas águas, a mãe deixava a gente tomar banho de chuva. E nós (eu e a mana) e mais a gurizada da rua (os irmãos Cuca, César e Dico, o Christian, os então pequenos Suian e Beto) corríamos para as calçadas do salão, porque havia calhas que terminavam a aproximadamente 1 metro e meio de altura e jorravam água como se fosse uma cachoeira. Brigávamos pelas calhas, para ficar embaixo e levar aquele banho todo! 
Depois, quando a chuva passava, a gente entrava em casa como um “pinto molhado” e o pai fazia a gente tomar um “martelinho” com vermute, uma bebida bem forte. A mãe reclamava, mas o pai dizia que tinha que tomar pra não ficar gripado! 
Acho que funcionava. E, naquele tempo em que nem tudo era politicamente incorreto, e nem havia extremismos legais, não virei alcoólatra por tomar um martelinho de vermute depois das chuvas, aos dez anos de idade. E meu pai nunca foi preso por isso! O incrível é que, nesses dias de chuva, quando começava a cair a noite, acontecia uma incrível reunião de sapos ali na calçada da parte de trás do salão da Igreja. Eu não faço a mínima idéia de porquê os sapos reuniam-se ali, mas que era uma espécie de point para os sapos, era! E o que nós, fazíamos? Já de banho tomado, voltávamos todos para a rua pra jogar pedras nos sapos. Os pobres sapos lá, como Madalenas sem que aparecesse ninguém para dizer-nos “quem nunca coaxou sob as calhas em dia de chuva, que atire a primeira pedra”. 
E tantos sapos sucumbiram ante nossa crueldade infantil. Pois esse arrependimento eu tenho. Se pudesse voltar, não atiraria pedras nos sapos. E mais: tentaria convencer meus amigos a não atirarem também. Pobres sapos.
Pois dias atrás, lá em Santo Antônio da Patrulha, uma amiga da Maria Júlia, minha sobrinha havia tido um desentendimento com os pais, e foi dormir lá na casa da mana. Dormiu no quarto da Maria Júlia. Daí que no meio da madrugada, a mana acordou com gritos desesperados da Maria Júlia, à porta do banheiro. Como a mana ainda estava naquele instante em que o brusco acordar mistura-se ao torpor do sonho, ela disse que ficou paralisada de medo! Pelo tom desesperado dos gritos, a mana chegou a pensar que a amiga havia-se enforcado no banheiro e a Maria Júlia, ao levantar-se, deparou-se com a cena e estava, agora, em desespero, gritando! Como os gritos não cessaram, a mana, em um arroubo de coragem, foi lá para arrancar da visão de sua prole, a horrível cena da garota pendurada pelo pescoço. Quando chegou no banheiro, também veio Milena, a amiga, ver o que estava acontecendo, acordada também pelos gritos! Ora, se Milena, Maria Júlia e ela própria estavam ali, quem se havia enforcado no banheiro? Ninguém!
Havia um sapo no banheiro! Isso, um sapo. E Maria Júlia tem pânico de sapos. 
Nos tempos de criança, não teríamos dúvida: correríamos e pegaríamos uma pedra. Mas mana pegou uma toalha, colocou sobre o coaxante e calmo anfíbio, pegou-o e colocou-o no pátio de casa, com toda a delicadeza. 
Ela também se arrepende de ter atirado pedras em sapos: eles voltam para assombrar nossa descendência…
Luís Augusto Menna Barreto
27.3.2019



segunda-feira, 25 de março de 2019

bora cronicar - O Velho e o Garrincha - parte 4 - final

Bora Cronicar

O Velho e o Garrincha - parte 4 - Final

As tosses de Clarêncio começaram a intensificar-se. Às vezes, havia sangue junto. 
Mesmo assim, todos os dias, desde que Garrincha aparecera, dois anos atrás, ele sorria quando olhava no espelho. Não mais o minúsculo espelho quebrado. Agora, um espelho com moldura de madeira, simples mas adequado, presenteado por Júlia. 
Sim, era a mesma Júlia que um dia, sessenta anos atrás, ofereceu amendoins caramelados, depois que o garoto que nunca saía para o recreio, emprestou-lhe o apontador. Aquela Júlia que ficara para sempre em seu coração. 
Durante aquelas intermináveis férias de verão, em que o garoto aleijado ansiava pela primeira vez pelo reinício das aulas, o pai da Júlia, também em dificuldades, recebera o convite para trabalhar na oficina mecânica de um irmão, em uma cidade vizinha. Júlia trocou de escola e cidade e, nas raras vezes em que visitavam parentes, era sempre em finais de semana, e jamais se viram novamente. Júlia cresceu, transformou-se em uma moça discreta e casou com um rapaz bom, vendedor ambulante, precocemente viúvo, que já tinha uma filha de três anos… surda. Com menos de uma ano de casados, o rapaz falecera vítima de um atropelamento e tudo o que Júlia e Beatriz receberam foi o seguro obrigatório que lhes permitiu ‘comprar’, sem jamais ter a escritura, o pequeno apartamento de sala, quarto e cozinha, que o velho visitara a primeira vez, dois anos atrás, porque, com a tragédia do marido, Júlia resolvera voltar à cidade de sua infância.
Garrincha passara quase uma semana sem caminhar. E Clarêncio poderia jurar que Garrincha ficara manco também na pata traseira. Mas Júlia e Beatriz afirmavam que não. 
Nas conversas que se seguiram, descobriram que o destino os manteve perto por quase uma vida. Ela sempre ia no mesmo parque… todas as manhãs. Beatriz mantinha uma barraca de venda de água de coco diretamente da fruta, e ficava no parque todos os dias, desde 8h, até perto de 18h. Foi de sua barraca de cocos que vira o acontecido com aquele velho que ela via todas as tardes, sentado no parque. Júlia ia, todas as manhãs conversar com Beatriz e levar-lhe o almoço em uma pequena panela enrolada em um pano, e ficava horas sentada ali. Além dos rendimentos com a barraca de cocos, Júlia recebia um salário mínimo de aposentadoria, depois de trinta anos contribuindo com a previdência social. Quando se aposentou, largou de vez o ofício de costureira e, em vez de continuar para complementar sua apertada renda, Júlia preferiu ocupar suas tardes como voluntária em um asilo mantido pela Igreja em que congregava. Era a maneira de retribuir a Deus as coisas boas de sua vida, e a alegria de ter Beatriz como filha, ela dizia.
Em pouco tempo, Garrincha acostumou-se com Júlia e Beatriz e permitia ser tocado por elas, sem que ameaçasse morde-las. E, nos domingos, os quatro almoçavam juntos, quase sempre na casa de Júlia. No aniversário de Beatriz, esforçavam-se e compravam alguns pedaços de carne que assavam em uma improvisada churrasqueira montada com pedaços de tijolos no minúsculo quintal de Júlia. E Garrincha deliciava-se com os ossos. 
As tosses de Clarêncio haviam piorado. Júlia, por várias vezes, tentava consultas para o velho, por meio do Sistema Único de Saúde. Quando finalmente conseguiu a consulta, havia-se passado, já, quase seis meses da primeira vez que cuspira sangue ao tossir e, depois da consulta, havia exames que eram sempre caros demais. Pelo SUS, o agendamento seria para os exames era para oito meses adiante. 
Quando finalmente conseguiram os exames, os resultados mostraram manchas enormes nos pulmões do velho. E o diagnóstico foi o pior possível. O médico falara que restavam poucos meses.
Por algum estranho motivo, Clarêncio jamais se mostrou abatido. Já Garrincha, parece que entendia cada palavra estranha do diagnóstico. Não se afastava mais do velho. Nem mesmo quando ouvia os garotos gritando no parque. 
O próprio velho soube de sua hora quando, poucos dias antes, fora colocado na cama pelas mãos delicadas de Júlia e Beatriz, aos olhares de Garrincha. Largou a muleta de madeira que parecia parte de si mesmo e sorriu, como quem se despede de uma companheira de toda a vida. Quando Júlia perguntou-lhe se estava confortável, o velho sorriu. E disse-lhe:
— Morreria mil vezes, pelos dois últimos anos que tive!
Pediu apenas que colocassem no catre a muleta, porque queria partir completo.
Numa manhã em que os pingos pareciam lágrimas caindo do céu, Clarêncio expirou. Não em uma maca de hospital, não por corredores. Ele preferiu e foi respeitado por Júlia e Beatriz, a dignidade de sua pequena moradia, que, desde que reencontrou Júlia, esta fazia questão de deixar impecavelmente limpa e organizada. 
Garrincha estava com a cabeça encostada na perna ruim do velho, quando do último suspiro. Todos os bens que juntara em vida, couberam em um carrinho de mão para serem levados para casa de Júlia, incluindo a caixa de papelão que há dois anos Beatriz preparou para Garrincha convalescer. Duas mulheres e um cachorro aleijado foram todo o velório de um homem que passou despercebido pela vida. 
Os anos continuaram a passar devagar. Beatriz arrumou um companheiro, conseguiram um apartamento na mesma vila, e Garrincha transformou-se na inseparável companhia de Júlia. Todas as sextas-feiras, Júlia ia com Garrincha, que então se deixava prender em uma coleira, ao cemitério, distante quarenta minutos de caminhada. Lá,  retirava a coleira de Garrincha, sentava-se em um banco próximo à lápide simples, e retirava da sacola plástica o lanche que trazia:
Uma banana e duas bolachas de água e sal, que dividiria com Garrincha, todos os dias, pelo resto de suas vidas.

Luís Augusto Menna Barreto

26.3.2019

domingo, 24 de março de 2019

bora cronicar - O Velho e o Garrincha - parte 3

Bora Cronicar

O Velho e o Garrincha - parte 3

Não houve o que fizesse Garrincha usar a coleira que o velho ganhou do vizinho que trabalhava na construção civil. O velho até tentou, mas jamais conseguira. De alguma forma, Garrincha sempre evitava. Na única vez que ele conseguiu colocar a coleira no Garrincha, ele espichou seu pescoço fino e, deitado, empurrando com a pata boa, conseguiu tirar a coleira. 
Depois, mordeu-a forte, olhando para o velho, e largou-a aos pés da muleta. Desde então, o velho nunca mais tentou colocar a coleira no Garricha. Com o tempo, o Garrincha passou a dormir dentro de casa. Primeiro, ele colocou o pano pelo lado de dentro da porta. Mas, depois de alguns dias, em uma noite que o velho acordou por ouvir barulho de tiros na rua (o que não era tão incomum, levando em conta o local em que morava), notou um calor ao seu lado. Era o Garrincha. Encostado justamente em sua perna ruim. Parecia não se importar, e estava tão bem acomodado, e dormia um sono tão tranquilo, que o velho sequer ousou acorda-lo.
O Garrincha, enfim, mudou a rotina. E, de alguma forma, alterou as despesas, já tão apertadas. Era preciso comprar algo para que também o Garrincha comesse. E talvez o Garrincha não conseguisse acostumar-se com apenas uma refeição por dia e, às vezes, um pedaço de pão puro à noite. Optou por dividir a sopa com o Garrincha, dividir o saco de amendoim, e comprar um cacho de bananas por semana. Dividiam uma banana todas as noites. Para isso, o velho teve de deixar de comprar um dos remédios. Justamente o que lhe ajudava a dormir. Com o tempo, descobriu que com Garrincha ao seu lado, dormia a noite toda, e não deu falta do medicamento. E era sorrindo que dividia a banana com o cachorro e, ao fim, era mais barato do que o remédio. Uma vez por mês, com a economia feita, dava-se ao luxo de comprar um saco de bolachas de água e sal, e, divida as bolachas de tal forma, que todos os dias passaram a acrescentar bolacha à sopa.
Passaram a ser vistos juntos, todos os dias, no parque. Assim que o velho sentava, pegava Garrincha e colocava-o também em cima do banco e logo sentia Garrincha descansar sua cabeça sobre a perna ruim. Às vezes, ouvindo gritos dos garotos, Garrincha assustava-se, e saía correndo. O velho ralhava com os garotos e preocupava-se porque perdia Garrincha de vista. O coração afligia-lhe, mas Garrincha sempre aparecia, quando os garotos afastavam-se. Ainda que agora fossem companheiros, Garrincha jamais perdera o olhar inquieto e arisco. 
Um dia, quando já a vida de ambos havia-se estabilizado com a nova rotina em que tinham um ao outro, depois que Garrincha acordou do sono da tarde no banco, junto à perna ruim do velho, ambos retomaram o caminho de casa. Mas na esquina do parque, esperando o sinal fechar para atravessar a rua, dois garotos vinham em uma bicicleta e, perdendo o controle, bateriam no velho. Garrincha jogou-se contra o pneu dianteiro, fazendo a bicicleta desviar-se e derrubando os garotos.
O velho virou-se assustado, pronto pra ralhar os garotos… mas viu Garrincha sob a bicicleta. O cachorro, assustado, tentava em desespero sair dali, mas ficou com uma pata traseira presa entre os aros da roda da bicicleta. Os garotos, assustados correram. O velho jogou a muleta de lado e sentou-se. Uma cena patética: o velho sentado, tentando soltar a perna do aflito Garrincha, e este grunhindo em um misto de desespero e raiva, ameaçava com mordidas. O velho tentou várias vezes, mas nem mesmo ele conseguia. Algumas pessoas juntaram-se próximas à cena, olhavam as mãos agora ensanguentadas do velho e alguns tentavam afastá-lo, das mordidas. Um policial próximo, instintivamente levou a mão à arma… 
E foi em meio a este cenário, com pessoas gritando, Garrincha latindo e grunhindo, debatendo-se, que surge uma mulher, com uma espécie de grosso pano enrolado nas mãos, colocou o pano por sobre o garrincha, que então não mais conseguiu morder, e segurou-o com firmeza, possibilitando ao velho, que soltasse a perna do cachorro. Decidida, pegou Garrincha, enrolado no pano e teve de esforçar-se para contê-lo, entre os uivos de dor e a tentativa de desvencilhar-se. O velho, com incomum agilidade, pegou a muleta e pôs-se de pé. Atônito, com as mãos sangrando, apenas seguiu a mulher. O velho tentou chama-la uma ou duas vezes, mas desistiu, duvidando da própria voz, achando que sabia falar apenas com Garrincha. Sentia as mãos arderem, e foi deixando um rastro de sangue que lhe caía das mãos. Seguiu a mulher que se virou sem falar nada, por duas ou três vezes, para ver se ele ainda a acompanhava. Tinha talvez, entre 30 e 35 anos. Movia-se rapidamente e o velho esforçou-se alem do comum para segui-la de longe pelos dois quarteirões que ela o fez percorrer. Até que, finalmente, ela entrou em uma vila, não muito diferente da que o velho morava. 
Chegando ao portão da vila, viu que a única porta aberta era da última casa ao fundo e dirigiu-se para lá. Chegando, nada viu além de móveis simples, mas notou tudo limpo e também notou que havia uma geladeira e pelo menos um quarto e um banheiro além da pequena sala com cozinha, onde uma segunda porta aberta dava para uma espécie de minúsculo quintal. Ouvindo os uivos do Garrincha, resolveu atravessar a pequena residência e deparou-se com duas mulheres: a que pegou garrincha e uma senhora talvez de sua idade, segurando Garrincha em um pequeno tanque de lavar roupas. Apenas a senhora falava, enquanto a mulher mais nova seguia as instruções. Estavam lavando um corte na perna do animal, mantendo-o, ainda firme, por entre o pano. O velho olhava com angústia.
Depois de algum tempo, a mulher silenciosa entrou na casa e voltou com uma caixa de papelão com um pano velho dentro. E depositaram Garrincha na caixa. Este tentou sair, mas simplesmente não conseguiu. Com a pata aleijada e uma das traseiras sem conseguir apoiar no chão, acuou-se, sem tirar os olhos nervosos de todos, prontos para disparar mordidas em quem se aproximasse.
Então, finalmente, a velha senhora olhou para aquele velho de muleta, rosto atônito e mãos sangrando que lhe sujavam o piso limpo, e falou:
— Ele vai ficar bem. Não quebrou a pata, mas talvez fique alguns dias sem conseguir caminhar. Esta é minha filha Beatriz. Ela é muda. — Beatriz abanou para o velho. — Agora, vamos dar um jeito nestas suas mãos, Clarêncio. 
O velho desequilibrou-se na muleta, como quem perde subitamente as forças. Quase nem lembrava de seu nome. As raras pessoas que falavam com ele, chamavam-no simplesmente de velho. Nem lembra há quantos anos não ouvia o som de seu nome.
A senhora sorriu… e completou:
— Você não lembra de mim? Eu sou a Júlia.

Luís Augusto Menna Barreto

25.3.2019

quinta-feira, 21 de março de 2019

bora cronicar - O Velho e o Garrincha - parte 2

Bora Cronicar

O Velho e o Garrincha - parte 2

Naquela noite, o velho não ligou o rádio nas notícias como fazia todas as noites. Procurou uma rádio com músicas. Passou algum tempo girando o botão do dial no rádio antigo e achou, entre os chiados, uma rádio que tocava uma música com palavras que ele não entendia. Mas gostou assim mesmo, porque o som parecia alegre.
Notou que havia algo diferente em seu rosto e percebeu que deveria ser o sorriso que vira no pequeno espelho. Deixou o rádio ali em cima da mesa minúscula, girou a única lâmpada da pequena peça aos poucos para não queimar os dedos, até que ela se apagou e permaneceu ali, emitindo calor pendurada no fio que vinha da casa ao lado.
Com alguma dificuldade, dirigiu-se para a cama. Largou cuidadosamente a muleta de madeira que apoiava abaixo da axila esquerda, sentou-se na cama e puxou a perna inerte para cima. Uma perna que lhe ficava pendurada, com a metade do tamanho da perna direita, e que carregava como um apêndice. Desde criança, sua perna era muito mais o pedaço de madeira que usava embaixo do braço para poder ir de casa até a escola e voltar todos os dias. Então, quando chegava na escola, bem cedo, sentava-se no canto, para sua perna ficar escondida ao lado da parede. E não saía até a aula terminar e todos os colegas já terem saído. Mas, naquela noite, ele não pensava em nada disso…
Ele simplesmente sorria, de olhos fechados, enquanto a música com alguma estática, preenchia o ambiente. Ouviu um barulho qualquer na porta, pelo lado de fora, e imaginou que era Garrincha. Imaginou-o ali, mancando, sem colocar sua pata no chão, enrolando-se até finalmente deitar por cima do pano em frente à porta. E simplesmente adormeceu assim, pensando no Garrincha… 
Os dias seguintes foram diferentes de tudo o que o velho podia lembrar. Ele nem lembrava há quanto tempo morava naquela peça minúscula que lhe consumia um terço do benefício assistencial que recebia da providência social. Nem lembrava há quanto tempo tomava os remédios que lhe consumiam mais um terço. Não lembrava sequer há quanto tempo usava o mesmo calçado que o vizinho, que trabalhava na construção civil, dera-lhe quando recebera equipamentos novos na construção do shopping novo. Ele não tinha quase lembranças, porque tendo dias sempre iguais há tantos anos, nada havia para ser lembrado.
Mas dos últimos dias, ele lembrava de quase tudo. Dos farelos dos amendoins que deixava no dia anterior no pano da porta. Do pano enrolado e ainda com o calor do corpo do Garrincha, cada vez que abria a porta; e do Garrincha que, primeiro, mal espiava lá da entrada da vila e que, dia após dia, arriscava-se a ficar mais perto quando ele abria a porta e saía. 
Sentiu-se especialmente emocionado, no dia em que abriu a porta e finalmente o Garrincha permanecera deitado. Notou a pata aleijada, que ficava sempre dura à frente, e viu que no lado na pata havia sujeira e algo escuro, como se fora sangue coagulado há muito tempo. Com alguma dificuldade, pegou o único lenço que tinha, molhou-o e foi até o Garrincha, ainda deitado, mas com olhar atento, arisco e desconfiado. Quando chegou perto, Garrincha levantou-se em três patas, mas não saiu. Ficou esperando a reação do velho. O velho largou a muleta e sentou-se no chão, à porta, e tentou passar o pano na pata. Garrincha, instintivamente, reagiu. Mordeu a mão do velho e disparou correndo em três patas. 
O velho com a mão sangrando ficou parado, olhando Garrincha. Garrincha parou adiante. O velho não o xingou. Não esbravejou. Sequer gemeu. A mão ainda sangrava-lhe, e ele sorriu, sem nem ao menos saber que estava sorrindo. Garrincha deu dois ou três passos claudicantes em sua direção. 
— Você é um sobrevivente como eu. E eu fico feliz que você sabe se defender…
O velho surpreendeu-se com o som de sua própria voz, que há tanto tempo não ouvia em sua rotina de silêncio, ausente sequer de pensamentos durante tantos anos.
Garrincha aproximava-se devagar, sempre mancando, com a pata aleijada à frente. O velho não se mexia. O sangue na mordida começava a parar de sair… Garrincha aproximou-se mais. Duas ou três vezes, chegou com o focinho perto da mão do velho, mas recuava, desconfiado… até que cheirou a mão do velho, e começou a lamber-lhe sobre a ferida que sua mordida causara. 
O velho suspirou. Em toda a sua vida, fora aquele cachorro manco naquele momento, que lhe fizera o gesto mais carinhoso.
E finalmente, o cachorro permitiu que lhe fizesse carinho na cabeça:
— Você tem as pernas tortas, mas sabe correr como ninguém… vou chamar você de Garrincha!

Luís Augusto Menna Barreto

22.3.2019

bora cronicar - O Velho e o Garrincha - parte 1

Bora Cronicar

O Velho e o Garrincha - parte 1

Ele nunca soube o que tinha havido com o Garrincha. Ele conheceu o Garrincha no parque. Garrincha apareceu do nada, mancando, com uma das patas dianteiras tortas. Ele estava sentado no mesmo banco em que sentava todos os dias. Ele acordava cedo, mas custava a levantar-se, e, então, ia devagar até a lancheria do ponto de ônibus. Na verdade, apenas uma porta menor que uma garagem de carro, um balcão e duas mesas plásticas, já na calçada. Ele chegava por volta de 10h30, e assim que a sopa ficava pronta perto de 11h, ele tomava a sopa. Depois, ficava quase até meio dia, comprava um pequeno saco com amendoins caramelados e saía devagar, até o parque, onde sentava invariavelmente no mesmo banco à sombra. Olhava as pessoas passarem, os carros pararem no sinal e serem abordados por garotos pedindo moedas ou tentando lavar os vidros dos carros. Ele gostava quando chegava algum malabarista para exibir sua arte no sinal em troca de algumas moedas. 
Foi num dia em que olhava o malabarista, já cansado, que ele ouvira o barulho de gritos de crianças, e vira o Garrincha vir correndo, com o que lhe restava de rabo entre as pernas. Era uma corrida angustiada, porque mal tocava com uma das patas dianteiras no chão. Viu alguns garotos correrem com algo na mão e pararam quando Garrincha passou por ele, e ele encarou as crianças com ar de reprovação. Depois, foi ver onde o Garrincha fora e não achou. O olhar assustado do cachorro de alguma forma comoveu-lhe. Resolveu deixar alguns amendoins na grama ao lado do banco, antes de levantar-se e voltar para a pequena peça que alugava, onde passaria o resto da tarde ouvindo o antigo rádio de pilhas que sintonizava apenas as freqüências “AM”. 
No dia seguinte, cumprindo a mesma rotina, teve a impressão de ter visto Garrincha por entre as tantas pernas das pessoas paradas no ponto de ônibus. Naquele dia, no caminho até o parque, olhou várias vezes para trás. Nada tirava-lhe a impressão de que vira Garrincha. Sentou-se, mas o dia não foi como os outros. Havia uma espécie de angústia, uma ansiedade, ao menos. Demorou-se um pouco mais do que o costume no banco do parque e, novamente, não comeu todo o amendoim, tendo deixado alguns na grama ao lado do banco. À noite, ainda com o rádio ligado, lembrou-se da única vez em que havia sentido algo parecido. Fora há mais de sessenta anos, ainda criança. Naquele tempo, mesmo durante o intervalo de recreio ele nunca saía da sala de aula. E um dia, Júlia foi até ele pedir um apontador emprestado. Em silêncio, ele pegou o apontador e emprestou para Júlia. Ela apontou o lápis, e, quando devolveu, ofereceu-lhe alguns amendoins caramelados. 
Depois daquele dia, e até o final daquele ano, todos os dias ele sentia uma angústia parecida. Chegou a pensar em quebrar a ponta do lápis da Júlia algumas vezes, mas jamais o fez. Seria difícil demais pra ele, naquela época. Foi o primeiro ano que não queria que as férias chegassem. Foram as férias mais demoradas que jamais houveram. E, quando as aulas recomeçaram, Júlia não estava mais na turma. E tudo voltou a ser como antes. Cinza. Vazio. 
Lembrando daquele tempo, durante a noite, teve a impressão de ouvir algum barulho em sua porta, mas não foi ver o que era. Quando saiu da peça onde morava, achou que o pano que coloca em frente à porta, estava enrolado. Olhou para a entrada da pequena vila e teve a impressão de ter visto Garrincha. 
Cumprida sua rotina até o almoço, depois de tomar o prato de sopa diário, ele comprou dois sacos de amendoim, fazendo as contas sobre qual dos remédios ele poderia adiar a compra, para cometer aquela extravagância de comprar dois sacos de amendoim no mesmo dia. Sentou-se no mesmo banco e teve a certeza: era Garrincha olhando-o ao longe, por trás do caramanchão. Ele nem notou as horas passarem. Atrasou-se novamente em sua rotina, mas, afinal, qual seria seu compromisso, senão ir para casa e ligar o rádio?
Deixou amendoins na grama e, ao chegar em casa, deixou mais alguns no pano da entrada da peça onde morava. Quando foi no banheiro, olhou-se no pequeno espelho pendurado na parede acima da pia e estranhou suas próprias feições… seu rosto estava diferente e quase não se reconheceu: descobriu-se sorrindo, como já nem imaginava que saberia fazer. E, de algum lugar ingênuo e puro, ainda, do seu coração, ele falou a si mesmo: “seu velho, safado… você está namorando!”  
E enquanto um velho deitava-se redescobrindo como sorrir, um cachorro aleijado acomodava-se em um pano sujo posto à porta…

Luís Augusto Menna Barreto

21.3.2019

quarta-feira, 20 de março de 2019

bora cronicar - O Rodízio, a Neta e a Filha

Bora Cronicar

O Rodízio, a Neta e a Filha

Hoje vou só contar uma história curtinha. Mais uma de Marajó City, e, perdoem-me, novamente envolvendo curiosidades com nomes.
Outro dia, eu falei que embora seja comum nomes masculinos com “Netos”, ou seja, os pais homenageiam um dos avós da criança que está nascendo, com o nome do avô desta, com “Netas" é bem mais raro. Daí, o fulaninho ou fulaninha herda o nome pronto acrescido de “Neto” ou "Neta". 
Pois estava eu em mais um dia de rotina de audiências… peraí! Vou refazer a frase. Estava eu em mais um dia de audiências (no Marajó, dia de audiências nunca é rotina!) E o Goela fez o pregão:
— Neta, Filha, bora pra audiência… Rodízio, entra pra levar farelo!
Até aí, tudo normal. Três pessoas, nenhuma chamada pelo nome próprio!
A ação era de pedido de alimentos. Infelizmente comum. O incomum foi quando eu li que a Neta estava representando a Filha. Como assim? Seguinte: resumindo, quando alguém é incapaz, precisa ser representado para poder ser parte em uma ação judicial. Assim, naturalmente, por exemplo, os pais representam os filhos menores. Daí que toda hora, uma mãe ou um pai, representa uma filha ou filho. Filhos, eventualmente representarem pais, também não é tão incomum, porque ocorre muitas vezes de o pai ou mãe serem pessoas idosas, e por não terem mais condições de saúde, serem interditados por algum motivo e, então, os filhos os representam.
Mas eu confesso que fiquei intrigado quando li a Neta representando a Filha e, na verdade, entraram na sala uma mulher que aparentava no máximo vinte e cinco anos e uma garotinha que não teria mais de oito. Fiz o que aprendi depois de muitos micos: fiquei quieto esperando pra ver se entendo no decorrer da audiência.
Entendi. Vou resumir: o caboclo Rodízio recebeu este apelido porque certamente tinha algum defeito de cromossomos. Acho que ele não tinha o tal do cromossomo “y”. Era um caboclo de uns quase sessenta anos e tinha mais de quinze filhos… quer dizer, filhas! Sério! A história é a seguinte: 
Rodízio era um homem desesperado pra ter um filho. Dizem que desde a juventude, fazia planos de ter um filho homem pra deixar seu pedaço de terra numa das tantas ilhas do arquipélago do Marajó, deixar o açaizeiro, ensinar a pescar, fazer e colocar matapi pra pegar o camarão, essas coisas. Daí, que quando se amasiou a primeira vez, lá com vinte anos, tratou logo de “embuchar" a morena. Nasceu uma filha. Quem o conhece, diz que não escondeu a decepção. Mas, passado o período do “resguardo”, lá foi a cabocla “pegar cria” novamente. Outra filha! Tentou uma terceira vez… filha! 
Foi então, que passou a culpar a companheira até que se houve a separação. Não demorou muito, amasiou-se novamente e tratou de logo engravidar a pequena. Filha! Daí, nem esperou pra tentar novamente. Deixou a pequena e saiu a procurar outra, o que encontrou sem muita demora, sobretudo porque alguém que tem alguma terra, e condições de alimentar uma família, é sempre um marido em potencial no Marajó. Mas a sina continuava: filha.
E assim continuou o Rodízio, fazendo rodízio de companheiras, na busca por um filho homem! Fiquei sabendo, inclusive, que ele chegou a juntar-se com a Mata-Macho, uma mulher de uns 38 anos, viúva de três maridos, que teve dois filhos homens com o primeiro e mais dois filhos homens com o segundo e terceiro falecidos. Mesmo advertido pelos amigos, do risco que corria, (afinal, se de um lado nasciam filhos homens, de outro lado o pai não vivia pra cria-los) o Rodízio arriscou, tamanha era a vontade de ter um filho homem. Pois quis o destino, que o Rodízio acabasse com dois tabus de uma vez só: a Mata Macho pariu a primeira filha e o Rodízio não morreu. 
Tendo ficado vivo, para desespero da Mata-Macho, seguiu tentando.
E assim deu-se a saga do Rodízio, que seguido vê-se em audiências sendo cobrado por alimentos às filhas. 
E você deve estar-se perguntando: e onde entra a história da neta representando a filha?
Explico: casualmente, o nome da Neta era “Raimunda (Sobrenome-Que-Não-Me-Lembro) Neta”. Ela herdada o nome da avó, e colocaram “Neta" ao final! Já quando engravidou do Rodízio, os planos, claro, eram que fosse menino e teria o nome do Rodízio, acrescido de “Filho”. Pois bem: o nome do Rodízio é José Maria (Alguma-Coisa)! Daí, que, tendo nascido menina, houve só uma pequena inversão e registraram: “Maria José (Alguma-Coisa) Filha”!
Por isso, a Neta, que é a mãe estava mesmo representando a Filha, que é a filha da Neta.
E o Rodízio? Ah, dizem que saiu da audiência e foi na farmácia do Aspirina comprar viagra. Ainda não desistiu!
Luís Augusto Menna Barreto

20.3.2018

terça-feira, 19 de março de 2019

bora cronicar - A Gertrudes, o Garimpo, o Rabeta e a Leocádia

Bora Cronicar

A Gertrudes, o Garimpo, o Rabeta e a Leocádia

Você conhece alguma “Gertrudes”? 
Eu conheci uma. Confesso que foi um choque. Foi no Marajó. Estava eu, em um dia de rotina, com casos relativamente simples, e o Goela chamou: 
— Gertrudes, Garimpo, passar pra audiência.
Tá, vou corrigir. O Goela realmente não chamou assim. Ele disse:
— Gertrudes, tua vez! Bora, Garimpo, que agora tu vais levar farelo!
Enfim, o fato é que, como quem já conhece as histórias de Marajó City deve estar pensando: sim, estranho: o Goela chamou pelo nome! Quando o Goela chama pelo nome, tem algo errado. O que seria? Peguei o processo rápido, naqueles segundos entre a tal Gertrudes ser chamada, despedir-se da Tutela que conversa com todo mundo que fica pelo corredor esperando a audiência, ou vir da cozinha, no final do corredor do fórum, onde D. Boneca sempre está preparando alguma coisa e oferece às pessoas que vão ao Fórum. Outro dia conto a história do Etiópia, que ia no Fórum pra ganhar mingau da D. Boneca. 
Mas, como eu ia dizendo, naqueles breves segundos, eu peguei rápido o processo e deu tempo de ler algumas informações da capa: “ação de alimentos”; “Gertrudes”; "Raimundo Anunciação”. Adivinhei que o “Garimpo" era o Raimundo.
Entraram: um caboclo com a pele cor de cuia, curtida, típico de quem trabalha “no mato”, como eles mesmos dizem, e uma senhora com as feições contraídas, também conhecida como “cara de braba” com uma criança de alguns meses no colo e outra menina de uns 4 anos, talvez, pela mão.
Mais do que o caso propriamente dito, eu estava curioso pelo fato de que o Goela não havia chamado a Gertrudes por apelido.
Naquela altura, eu já estava um pouco ambientado no Marajó e sabia que seria muito mais produtivo eu chamar o sujeito pelo apelido, do que pelo nome, porque sempre demora um tempinho até o cidadão lembrar-se de seu próprio nome. Se chamo pelo apelido, venço uma etapa rapidinho. Lá foi:
— Fala, Garimpo. O que está havendo que foi preciso ela te colocar na Justiça?
— Trabalho no mato, doutor, dinheiro eu não tenho. Posso ir levando a farinha pra merenda. Mas dinheiro não tenho, doutor.
Ela continuava lá, com cara de braba, balançando o bebê que estava enrolado em um pequeno lençol, com um fralda sobre o rosto. Já a menina era esperta. Olhava para todos os lados e eu via que mal se continha sentada. De repente olhou pra mim, sorrindo, e fui surpreendido por um par de olhos azuis vivos e brilhantes. Foi um impacto. Por instinto, procurei os olhos da “cara de braba” e do Garimpo. Embora os olhos do Garimpo não fossem tão escuros estavam lá, combinando com a pele: castanhos. Definitivamente castanhos. Tentei mediar um pequeno acordo entre os dois, enquanto a menina agitava-se cada vez mais até que, quando a menina fez menção de levantar-se, veio o “ralho”:
— Te quieta, Gertrudes!
Hein?
“Gertrudes" era a menina. Por isso não tinha apelido. Cá entre nós, você conhece alguma “Gertrudes”? Se conhece, duvido, mas duvido mesmo, que seja uma “Gertrudes" criança. “Gertrudes”, por favor, não é nome de criança. É nome para vovós. Olha como fica bonitinho: “oi, vovó Gertrudes”. Ou, “hoje a gente vai visitar a vovó Gertrudes”. Mas em uma criança? 
Era por isso que a Gertrudes não tinha apelido. Porque, sendo criança, o próprio nome quase representava um apelido. Certamente, quando crescesse, e o nome fosse adequando-se à idade, o Marajó haveria de emprestar-lhe um apelido, um vocativo, uma forma diferente de ser conhecida. Mas, ainda criança, “Gertrudes" era quase um apelido.
Eu não me aguentei e perguntei:
— E o nome dessa pequena, foi a senhora que escolheu?
— Foi esse estrupício! — Falou apontando o queixo para o Garimpo, sem parar de balançar nem um segundo sequer o bebê no seu colo.
Aquilo meio que ajudou na condução da audiência. Fique sabendo que o Garimpo fora fruto de um relacionamento da mãe do Garimpo com um marinheiro de um barco alemão que aportara no Marajó por pouco meus de um mês para levar madeira. Mesmo não tendo sido registrado com o nome do pai, o Garimpo orgulhava-se da ascendência alemã e por isso escolheu "Gertrudes". Mas, tendo escolhido aquele nome para uma criança (que me perdoem as “Gertrudes”), haveria de compensar, ao menos, pagando uma verba decente de alimentos, né?!
Terminada a audiência, não terminaram as coincidências. (Ah!, como o Marajó era pródigo em fazer isso comigo). O Goela foi chamar a próxima:
— Rabeta, tua audiência com a Leocádia!
Era o dia! "Leocádia"! Como pode alguém olhar para um bebezinho recém nascido, normalmente tão delicados e bonitinhos, e colocar o nome de Leocádia? Leocádia deveria ser permitido apenas para pessoas acima de 50 anos!
Mas era o Marajó, né? Fiquei esperando a “cara de braba” (meu Deus, notei que até eu já estava dando apelidos às pessoas!) levantar-se e fiquei curioso para ver quem entraria, se seria criança ou não. Mas a “cara de braba” não saiu.
Sim, a Leocádia era o bebezinho que estava em seu colo. Filha do Rabeta com a Cara de Braba. E descobri depois, que o Rabeta que escolheu o nome!

Luís Augusto Menna Barreto

19.3.2019