sábado, 1 de novembro de 2025

O Orelhão, o Mesa Branca e o Padre



Ninguém mais achava estranho, que todos os dias, o Mesa Branca ia até o orelhão, pegava o telefone e ficava algum tempo falando. 

[Acho que a maioria dos amigos que lêem essas crônicas, sabem do que estou falando quando falo em “orelhão”, mas vai que alguém nascido depois de 2005, aventure-se neste blog. Seguinte: “orelhão" era como chamávamos es telefones públicos espalhados por aí. Era uma espécie de “concha”, mas que parecia uma “orelha" (daí o nome “orelhão), que protegia um aparelho de telefone grande, no tamanho de uma caixa de sapatos colocada na vertical, e que tinha uma haste móvel, ligada ao aparelho por fios revestidos normalmente de uma proteção de alumínio em espiral, que levávamos ao rosto e uma parte ficava colada na nossa orelha e outra ficava próxima à boca. Fora isso, para falarmos, precisávamos colocar umas fichas do tamanho de moedas, na parte de cima, que nos permitia falar por três minutos se a ligação fosse local, e por poucos segundos se a ligação foce interurbana! Ah, estranhaste também o “interurbana”?: Se a ligação fosse para outra cidade! Poderíamos, normalmente, colocar até seis fichas em uma ligação. No fim, as fichas não usadas, eram devolvidas por um pequeno compartimento que colocávamos os dedos para resgatá-las. Assim que colocávamos o telefone no gancho, a ligação era encerrada e as fichas não utilizadas eram devolvidas. Cada ficha que caía, permitia que falássemos. Se a ficha não caía, era devolvida. (E aí? Entendeste? “Caiu a ficha”?). Ah, e a maioria dos orelhões era de discar… mas acho que nem vou me atrever a tentar explicar isso.. que os mais novos perguntem e peçam fotos para o chat GPT!]

Enfim, o Mesa Branca ia todos os dias, assim que o comércio começava a abrir , por volta das 16h, depois da sesta do meio dia, no único orelhão da cidade, que ficava na esquina da praça, bem em frente ao fórum. Ninguém estranhava o tanto que ele ia, em uma cidade que simplesmente as pessoas não faziam ligações. Os recados eram passados de boca em boca, levados pelo pilotos das rabetas e dos “pô-pô-pôs” que transitavam nos rios, furos e igarapés. 

E ninguém estranhava, também, o fato de que o orelhão, há muito tempo não funcionava. Simplesmente não havia sinal. Mesmo assim, o Mesa Branca ia todos os dias até o orelhão, colocava uma ficha que achou no trapiche, certamente perdida por algum passageiro visitante da ilha, e, desde então, diariamente, ia com sua ficha, colocava no orelhão, discava alguns números, e começava a falar. Depois, quando terminava, colocava o fone no gancho e sua ficha era devolvida. 

Já havia acontecido um episódio havia alguns meses, antes mesmo de eu chegar na cidade, em que o Mesa Branca foi até o orelhão e, quando desligou, estava pálido. Mudo. E mudo ficou, desde então. 

O Mesa Branca, tinha uma companheira, a Pipoca! Doce! Deixa eu contar rapidinho a história das Pipocas. A Pipoca ganhou esse apelido na adolescência, porque não parava quieta, e parecia que andava sempre saltitante. Daí, virou Pipoca muito fácil. Mas por pura coincidência, há uma outra morena, perecidíssima com a Pipoca, e, muitas vezes, as pessoas as confundiam, chamando ambas de Pipoca. Dizem na cidade, que são gêmeas de mães diferentes, e todos acreditam que ambas são filhas do mesmo pai, mas isso não se sabe, porque as duas mães juram que as meninas são filhas do boto. Daí que o Mariposa, que um dia estava cobrando de uma Pipoca a conta que a outra  Pipoca havia feito na sua loja, anotou no caderninho da conta, que uma era Pipoca Doce e a outra, Pipoca Salgada. Quando estão sozinhas, as pessoas chamam simplesmente Pipoca, mas quando se encontram, ou quando o assunto é sério e precisam ter certeza, chamam sempre acompanhada do sabor.

Pois aconteceu há tempos, que o Mesa Branca chegou do orelhão, olhando feio para a Pipoca (Doce), estava pálido, sentou sério, quieto, e quieto e sério ficou desde então. Não houve o que o fizesse falar. No açougue do Retalho, o Mesa Branca jogava quieto o bilhar. Na missa, não respondia mais com o coro. Em casa, nem para dar ralho nos moleques, se ouvia o Mesa Branca. Até o Goela, que jogava bola no mesmo time, não conseguiu fazer o Mesa Branca sorrir ou falar qualquer coisa. Ele se enclausurou em uma rotina de silêncio e seriedade. Por mais que a Pipoca perguntasse ou estimulasse o Mesa a falar, a reagir, nada! Ele ficava quieto, sério. Ninguém soube o que houve, ou o que o Mesa Branca teria ouvido na sua “ligação".

O Manobra, motorista da ambulância que passava os dias tomando uma cachacinha no açougue do Retalho, esperando por alguma emergência que necessitasse da ambulância, não se conformou e foi até o orelhão. Nada. Nem um sinal! O próprio Retalho, desconfiado de que o Manobra não tivesse escutado nada, porque andava sempre em estado de embriaguez, foi até o orelhão. Nada. Virou assunto da cidade, até que o Padre, conversando com S. Nonô e o Mariposa, chegaram à conclusão de que era necessário colocar uma ficha para ver se tem sinal. Mas quem teria uma ficha. A única que conheciam era a do Mesa Branca, que sempre colocava no aparelho, mas a resgatava no final.

Até que falaram com o Goela, e este veio falar comigo para trazer umas fichas telefônicas de Belém, já que todo final de semana eu ia para Belém. E assim foi. Voltei com 5 fichas telefônicas, que comprei na telefônica da esquina da Presidente Vargas, em frente à Praça da República, e entreguei para o Goela que, antes de entregar para o Padre, foi lá tentar, mas não deu em nada!

Então, o Goela entregou as fichas para o Padre e este foi decidido a desvendar o mistério! Estando praticamente toda a cidade sabendo do ocorrido, foi um alarde quando o Padre, depois da missa das 7h da manhã, tomou o rumo do orelhão. A procissão foi inevitável, e havia beatas rezando atrás do Padre, teve cantoria, e o Padre teve, mesmo, de abençoar toda aquela gente. Depois, antes de ir para baixo do orelhão, fez o sinal da cruz e disse: "Seja como Deus quer!”

Expectativa! O Padre tirou o fone do gancho, colou na orelha… as pessoas ficaram ombro a ombro ao redor do orelhão. Com muita cerimônia, o Padre pegou uma ficha no bolso da batina, ajeitou as ranhuras no local apropriado… demorou-se alguns segundos com metade da ficha para dentro do aparelho, a outra metade entre o polegar e o indicador… olhou para os fiéis… abre o movimento de pinça dos dedos que segurava a filha, e viu-a ficha para dentro do aparelho! 

Tensão! 

Silêncio.

Todos olhavam o Padre, sem saber o que aconteceria. Então, de repente, os olhos do Padre arregalaram! A expressão de dúvida e expectativa, foi rapidamente substituída por uma expressão dura. Então, em um acesso, o Padre pegou a parte do fone e bateu com raiva uma, duas, três vezes, no aparelho! Largou o fone que ficou pendurado, fora do gancho e começou a caminhar, em silêncio, em direção à Igreja. Todos foram atrás. 

A procissão de retorno à Igreja, foi maior ainda, porque havia a expectativa do que o Padre diria! O que teria ouvido? O que teria causado a fúria do Padre? O Padre entrou e postou-se no altar, como se fosse rezar a Missa. Todos entraram na Igreja, acomodaram-se nos bancos, alguns em pé… Igreja lotada. Burburinho e palpites de toda sorte, curiosidade, acima de tudo. O Padre então, olhou a assembléia lotada, ainda sério, e ordenou:

“Rezemos”! 

Os poucos que não haviam acompanhado o Padre, era o Retalho, que por nada andava a uma distância que perdesse o açougue de vista, o Manobra, que não deu conta de caminhar até a Igreja, e sentou na beira, perto do Fórum, e o Goela… que decidiu ir até o orelhão! 

— Tá doido, Goela?! Não pega isso que tem visagem! — Era o Retalho gritando da frente do açougue. Até o Manobra fez o sinal da cruz e voltou tropeçando para o açougue quando viu o Goela ir pegar o fone no orelhão.

O Goela ficou com medo de pegar o fone pendurado e escutar, então, decidiu apenas colocar o fone no gancho, com cuidado, e pronto para sair correndo. Mas quando colocou o fone, e o gancho abaixou com o peso, ouviu o barulho da ficha do Padre sendo devolvida, caindo no compartimento de devolução das fichas não usadas.

Pensou uns instantes se deveria pegar a ficha ou não e preferiu deixa-la lá mesmo para quem tivesse coragem de pegar a ficha do Padre.

Dizem que, na Igreja, fora rezada uma novena inteira, mais um rosário, que são quatro vezes o terço! (Sim, tem coisas que não são explicadas pela matemática, e, para a fé, são necessários quatro terços para um rosário completo*!) Os fiéis não entenderam exatamente porque estavam rezando, mas ninguém se atreveu a sair até o final das orações, porque esperavam que o Padre, afinal, explicasse o que teria ouvido.

Não houve explicação alguma. Ao final, o Padre fechou-se em si mesmo, em silêncio. Os fiéis meio sem saber o que fazer, começaram a sair aos poucos. Mas todos eles tinham a mesma decisão, sem que nenhum precisasse perguntar ao outro: hoje, esperariam o Mesa Branca ir até orelhão. Porque mesmo mudo, jamais ele deixara de ir. A hora da sesta nunca pareceu tão longa. As pessoas começaram a ocupar as calçadas onde havia sombra, o coreto no meio da praça, que era a casa do Mochila (mas ele adorava receber pessoas em sua casa), a sombra das árvores… 

Até mesmo as lojas, que tradicionalmente retomavam o comércio reabrindo as portas às 16h, aproveitaram o movimento, e abriram mais cedo. Então, pouco passando de 16h, lá vinha o Mesa Branca, caminhando em passo decidido, dobrando na esquina da  Delegacia, rumo à beira, onde passaria em diagonal pelo meio da praça, até o orelhão.  Instintivamente, as pessoas afastavam-se um pouco, deixando o caminho livre para o Mesa Branca. Ouvia-se apenas o burburinho das pessoas, mas ninguém sequer atrevia-se a falar alto. Nem barulho de motor de pô-pô-pô ou rabeta, ouvia-se naquele momento.

O Mesa Branca chegou sem cerimônia no orelhão. As pessoas todas aproximaram-se e, agora, eram bem mais numerosas do que quando o Padre usou o aparelho pela manhã. Expectativa!

O Mesa Branca pegou sua ficha, colocou no compartimento, discou números… 

… e repetiu o Padre: em instantes, tirou o fone da orelha, e bateu uma, duas, três vezes com o fone no aparelho! Colocou-o no gancho e ouviu-se o barulho de sua ficha sendo devolvida. Resgatou-a, enfiando dois dedos no compartimento. 

Quando se virou, viu que todos esperavam por algo. Então, depois de vários meses de silêncio, ele encheu o peito, e declarou:

— Ocupado!


Luís Augusto Menna Barreto

Em 1º  de outubro de 2025


*Até 2002, o Rosário Completo era composto por três terços, com os mistérios Gozosos, Dolorosos e Gloriosos.  Daí, então, que rezar apenas uma volta no terço, representava, de fato, 1/3 do total do Rosário.

Em 2002, entretanto, o Papa São João Paulo II, por meio do documento Rosarium Virginis Mariae acrescentou  os Mistérios Luminosos, e, então, o Rosário completo, passou a ser a reza da somatória de quatro vezes o "terço".  

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