Crônica: Mereceu
Originalmente publicado no antigo blog
"Menna Comentários", precursor deste.
Data da postagem original: 31.01.2016.
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Pois essa aconteceu na Ilha do Marajó, que, na verdade, nem é uma ilha, é um arquipélago inteiro. Mas deixa eu explicar que o Marajó não é Fernando de Noronha. Tem que dizer porque muita gente pensa que o Marajó é como Fernando de Noronha e não é nem um pouco parecido; digo porque conheço várias cidades do Marajó... ... Tá certo que não conheço Fernando de Noronha, mas diz que lá é só praia deserta e paradisíaca. Enfim, o Marajó é diferente, pronto. Foi no fórum de uma das cidades do Marajó. Tudo bem, vocês devem estar pensando num forunzinho do interior, em que o ventilador fica rodando devagar, e dois ou três funcionários estão ali, se abanando sem ter o que fazer, não é? Pois não é mesmo! É uma correria, mais de trinta funcionários e dois juízes fazendo o trabalho de 5 ou 6.
Pois foi lá que aconteceu.
Era um caso de violência doméstica, ou, como as pessoas chamam “era um Maria da Penha” (a Maria da Penha original sofreu duas tentativas de homicídio pelo marido, lutou por sua condenação e dezenove anos depois ele foi condenado a oito anos, cumpriu dois e tá aí, soltinho da Silva).
Mandei chamar o caboclo, que chegou na sala algemado, cara de poucos amigos e olhando pro chão.
Depois entrou a vítima. De óculos escuros e pedi que tirasse.
O caso havia sido há trinta dias, mas quando ela tirou o óculos: Égua da porrada!! (Prá você que não sabe, “égua” é uma espécie de “bah”, ou “barbaridade”. Para os paraenses, o “bah” é o “égua” e o “barbaridade” é o “pai d’égua”, e tem mil utilidades e flexões, mas sobre isso falo outro dia).
O olho da moça, trinta dias depois, ainda tava roxo e inchado! Ou o cara, que era um caboclo pequeno, meio miúdo, tinha muito mais força do que aparentava, ou acertou exatamente no mesmo lugar, várias vezes.
Fui olhar o laudo do exame de corpo de delito e tava escrito agressão por instrumento contundente – mão humana. E pra quem não conhece, ainda tem quesitos perguntando se a lesão foi causada por meio insidioso (vai saber o que é isso?) ou cruel. Pois constava: “meio cruel, socos”!
O fato é que a vítima estava com aquele olho que fazia a gente querer e não querer olhar ao mesmo tempo.
Tudo pronto na sala de audiências, defensor público tentando enviar mensagens no celular, promotor olhando o iPad, perguntei:
"Sim, tchê, o que te deu para fazer esse estrago?" (ah, esqueci de dizer, sou gaúcho e a vida me trouxe até o Marajó).
"Não sei, doutor, eu tava porre."
E outra, por aqui não se fala “eu tava DE porre”. É sem preposição mesmo, o sujeito está “porre” como quem está “bêbado”. Fala direto.
"Como é?”, eu perguntei.
"Não lembro, eu tava porre."
Se tem uma coisa que quem me conhece sabe, é que esse negócio de ficar se escondendo da verdade dizendo que não lembra, me deixa furioso. O olho da guria ainda tava uma rodela roxa um mês depois, e o cara não lembra? Tá preso por conta dessa agressão e diz que não lembra? Nesse momento me seguro pra não perguntar se ele tá podendo sentar direito, porque (dizem por aí) de porre não tem dono!
Tentei mais uma vez:
"Olhas, vai ser melhor se me contares o que houve. Me falas o que aconteceu para teres feito isso."
O mal acabado não deu o braço a torcer:
"Eu tava porre, não lembro doutor." E continuava a olhar pro chão.
Nessa altura desisti e perguntei prá vítima:
"Então me diga a senhora: o que houve? Qual o motivo da agressão?"
E agora, ela que parecia réu:
"Sabe doutor, eu não queria falar sobre mmmmmmmm.."
“Hein?"
"Eu não queria, eu que mmmmm.."
"Não estou escutando, faças o favor de falar mais alto!"
E um filetinho de voz mais alto:
"Eu não queria ter que falar sobre isso, doutor, mas é que eu mereci!"
"Égua!" Esse foi o promotor, paraense da gema, que soltou com espanto!
...
Não insisti. Nós nos olhamos, o promotor, o defensor público e eu, e nem precisou debate. O caboclo saiu solto da audiência!
Era o típico caso: ele não sabia porque havia batido... mas ela sabia por que havia apanhado!
Por Luís Augusto Menna Barreto
Lamentável a situação dessa mulher, achar que mereceu apanhar, foi educada assim.....nada justifica a violência....
ResponderExcluirOlá, Tel... eu lembro que tu comentaste no mesmo sentido. Lamentando que a própria vítima de violência tenha achado que mereceu...! Comentaste em 27 de março de 2016!
ExcluirO marajó sempre é uma caixinha de surpresa, se torna um pouco cômico o fato... Mas de fato é o que acontece em nossa região!
ResponderExcluirExatamente... infelizmente, muitos casos há em que o flagrante é lavrado na madrugada e, antes mesmo de voltar para casa, a vítima já aguarda o fórum abrir para pedir que o agressor seja posto em liberdade...
ExcluirDemonstra uma triste realidade.
Que barbaridade!!!!!!
ResponderExcluirNão há justificativa para agressão,
Nunca. Jamais. Não há o que justifique. Concordo contigo!
ExcluirLamentável mesmo...Infelizmente é comum essas situações...
ResponderExcluirCalar por medo...Não...!!!!Eu sinceramente fico triste saber que ainda existem pessoas que diante da violência preferem esse tipo de atitude...
Nada justifica uma agressão...
"Tava de porre"...Ainda tenta subestimar as pessoas....
O mais, triste, Michele, é quando sequer é por medo, mas, antes, necessidade... às vezes, o agressor é o único provedor da família, ainda que com o mínimo existencial necessário.
ExcluirNesse sentido, a vítima, ainda que vilipendiada, ainda que vulnerada, tem a necessidade maior que a dor... e então, aceita...
É francamente triste, mas é realidade. Os motivos... ah... tantos, nesse Brasil de tantas diferenças.....
A falta de Educação reflete numa atitude como essa. Vemos aí o machismo se destacando... o vício como desculpa... a vítima achando que é a culpada... Mas tudo isso é a falta de políticas públicas nos nossos governos. São as leis que não são cumpridas... e a educação não é prioridade e fica em segundo (segundo ?) plano.
ResponderExcluirProfessora... permita-me reduzir tudo a uma palavra, apenas: EDUCAÇÃO. (ou a falta desta)!
ExcluirTens toda a razão!
O convívio familiar de guetos interioranos em que se acertam as relações por interesses, casos como este infelizmente são frequentes. Tudo se aceita pra se evitar problemas na "família ".
ResponderExcluirAh... e como tem, Dr. Izamir...!
ExcluirInfelizmente, esse tipo de situação acontece em todos os lugares do Brasil. Mulheres que preferem ficar caladas a denunciarem os agressores.
ResponderExcluirMedo de perderem os provedores das famílias, medo de levarem novos "sopapos", medo de não terem para onde ir... Preferem acreditar que merecem o peso da humilhação do que lutar por uma existência digna. E nessa, as crianças vão aprendendo com o exemplo.
Se meu pai estivesse vivo, certamente diria sem pestanejar: "Isso ai foi falta de pêia do pai qdo era pequena, para aprender que não pode apanhar de ninguém na vida!" (pêia é a chinelada do pai carinhoso, que quer que os filhos aprendam a fazer as coisas direito - isso, claro, aos olhos desses pais! - não os arrombos de personalidade que vemos por ai afora!)
Vá entender os pensamentos de cada um dos envolvidos!
Ah, poetiza..... vai entender as realidades dos envolvidos......!!!
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirA cada comentário teu, escritora, leio várias vezes: tanto o comentário, quanto a releitura da crônica, tão modesta de pretensão, e tão adicionada pelo teu olho que vê "lonjura de léguas" (Ave, Drumond - poema A Mesa) retirando muito mais do que eu havia posto, e, tal como o Carpinteiro de Nazaré, multiplicas e distribuis, de onde havia um quase nada.
ExcluirSe outro efeitos nã causasses (e causas!), faz-me relar todos os textos...
... mas, realmente, afirmo: jamais escrevo com pretensões que vão além do entretenimento. O que retiras é, certamente, talento TEU, escritora, não meu...!
Obrigado!!!
Tive de remover meu comentário, para efetuar uma correção linguística. Ele está um pouco abaixo.
ExcluirÓ meu querido autor, as tuas palavras só vêm comprovar o que afirmo: tu tens um talento nato. Aceita isso! Receba um elogio sincero como quem recebe um carinho! Faz mal, não. Faz bem a quem recebe e muito mais bem a quem dá.
Tenho uma história pra narrar,lá da terra do PARÁ,na cidade de Marajo ....Tanta gente vive lá...tem muitas histórias pra contar...mas essa quero falar...terra de tanta beleza e encanto ...aconteceu um espanto....sempre naquele canto....o que é... briga de marido e mulher.....causa medo e espanto.....espanto, deixe de confusão. ....isso é pura agressão...Agressão que é....busca a punição....punição tu não vai ter razão .....foi uma agressão...Agressão que for juiz condenou ....mulher sofrendo à dor ...no ato clamou.... doutor não o condena o caboclo por favor...Não é culpa dele não, isso é confusão ...olha só pra você está a sofre .....Não senhor, não posso falar ...deixa isso pra lá ...Não quero me relevar ....juiz olhou a mulher assim clamou....Estou muito bem
ResponderExcluir..meu marido também....que culpa tem...juiz pensou e nada declarou... fato esclarecido ...Não vamos perder o juízo....
Muito bom teu "recontar" da história!!!!!!!
ExcluirBarbaridade Tche como dizem os gaúchos e o Dr. Menna Barreto nesta história dentre tantas história que acontecem no Marajo, nesse pedaço chão maravilhoso do Para e do Brasil. Pois bem, merecer, eis a questão, pela história/fato verdadeiro, tanto o juiz, quanto o promotor e o defensor público entendiam que o caso era da aplicação da Lei Maria da Penha mas, o caboclo, se mantinha com o olhar direcionado ao chão e dizia do seu estado de embriagues na ocasião em que tinha dado uma sumanta de pau na sua companheira. Não lembrava de nada. Chamada a vítima/réu para depor/testemunhar disse merecer, o que surpreendeu a todos os presentes. São histórias desse gênero que se repetem diariamente na longínqua Marajo. Merecer? Eis a questão.
ResponderExcluirÉ possível algum "merecer" de agressão....? Eis a questão....!!!
ExcluirEu não posso deixar de dizer que esta crônica é ÓTIMA.
ResponderExcluirÉ impossível mais uma vez não repetir que L. A. Menna Barreto tem um talento nato para juntar o humor com o sofrimento, no caso específico com o trágico, e tecer crônicas excelentes.
Esta prima por vários aspectos. Porém, cito apenas dois. Um deles, que é muito do meu interesse, é a evidência que o autor dá à questão da diversidade linguística. O outro, provavelmente o mais relevante, é o de natureza social que envolve a questão da violência doméstica contra a mulher.
Quanto a esse último aspecto, fico com vontade de conversar um pouco com o amigo Izamir, a fim de convidá-lo para uma pequena reflexão. Será mesmo, Izamir, que o acerto das relações por interesses é uma característica de guetos interioranos. Tenho dúvidas quanto a isso. Veja bem, são dúvidas, não são certezas. E em relação à outra afirmativa sua em que você completa o que diz: "Tudo se aceita pra se evitar problemas na "família ". Há um trabalho de uma colega, na minha universidade, fruto da tese de seu doutoramento, que, se não me engano, o título é Mulheres Ricas Também Apanham. E esta pesquisa a professora Tânia Rocha desenvolveu em um centro urbano de médio para grande porte. Tenho a forte impressão, meu amigo, que este tipo de violência é envolvido por uma capa de silêncio muito mais espesso do que imaginamos.
Pelo amor de Deus, não vai aí qualquer crítica ao seu comentário, viu? Muito pelo contrário, suas palavras levantaram a dicussão. E isso é bom.
Meu querido autor, esta sua crônica já tem lugar certo no livro, não é? Vai iniciar?
Parabéns, mil vezes parabéns
Como é bom ver estabelecido um diálogo de tal grandeza, pela página deste blog sem pretensões maiores que não seja trazer um sorriso aos amigos que me brindam com sua visita...
ExcluirAh, escritora... nem sei como agradecer....!!!
Prezada Ana, concordo com você,pois será difícil viver num mundo onde viver significa se dar bem em todos os sentidos, sem perceber que viver por viver será sempre uma condição de sofrer.
ResponderExcluirMil obrigados, Dr. Izamir, pela gentileza do enfrentamento (aqui, entendido no melhor dos sentidos possíveis), com a escritora...
ExcluirUm especial obrigado aos dois...!
oi Luís,
ResponderExcluirAchei triste essa história, ainda mais por ela ser verídica. Mas nem vou tentar encontrar uma explicação para alguém se achar merecedora de sofrer uma agressão. Tem tantas coisas que não entendemos nesse mundo vasto, não é mesmo?
Tirando o drama da situação, sua narrativa foi prazerosa, como sempre. rs
/abração/bom final de semana/
Essa crônica foi que inaugurou minha ideia de ter um blog!
ExcluirAo longo do caminho de 100 dias fui moldando melhor minha forma de escrever.... penso que hoje, minha mão está mais leve....!
Obrigado, escritora!!
Impressionante como o senhor captou perfeitamente o significado e as nuances do linguajar paraense de raíz, que pelo jeito se conserva sem alterações no Marajó.
ResponderExcluirMais curioso ainda, Thaís, talvez seja o sotaque com o charme da influência francesa da região de Cametá, onde até hoje ouvimos "já me vu" para quando alguém vai embora....!
ExcluirApesar de os paraenses imediatamente detectarem meu sotaque gaúcho, quando vou ao sul, minha mãe nota em mim, nuances tipicamenres paraenses....!!
Que triste!!! Chegar numa audiência para dizer que mereceu, não dá para acreditar!!! Infelizmente esse tipo de caso se repete inúmeras vezes!!!
ResponderExcluirLamentável, Camila.... Lamentavel....!
ExcluirÉgua ! Assim fica difícil, mas parece um caso do "Anjo Bandido". A letra da música do ex-grupo Calipso, o qual, salvo engano, originou-se no Marajó. Essas situações ainda são comuns lamentavelmente.
ResponderExcluirExatamente... ainda acontecem todos os dias...!!
ExcluirQuanto ao Calipso, o que sei é que é justamente de Breves, cidade Natal da Joelma, vocalista.
Esta crônica foi a que deu o pontapé inicial à idéia de eu escrever em um blog!
Na terça-feirapublicarei a segunda crônica que postei no blog, quando achei que seria um blog apenas de crônicas e alguns livros que eu recomendasse... depois, o blog tomou a forma que tem hoje...!!
Um grande abraço, Doc.!!
Muito obrigado por visitar o blog!