segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

A Casa “Meada”, a Estrada, o Desossa e a Amora

    

A sede da cidade é relativamente pequena. Deliciosamente pequena, eu diria. Mas, como em várias cidades, especialmente no Marajó, existe “a estrada”. Pois ali também!

Lembram quando eu contei a história do Presidente do Tribunal que busquei de ambulância no aeroporto? (Tá bem, “aeroporto" é um enorme exagero… na pista de terra!). Pois é, o aeroporto fica “para a estrada”. Várias pessoas que apareciam no Fórum, para audiências, moravam “para a estrada”.  Mais de uma vez, eu indaguei até onde ia a estrada, ou a quê cidade ligava, mas agora me dou conta, de que nunca recebi a resposta!

É… das mais de 30 vezes que perguntei, acho que nunca recebi a resposta… enfim, acho que as gentes daqui tem essa habilidade: falar em português, como se soasse um dialeto em que não me permitem entender os significados. 

Bem, o caso é que muita coisa era “para a estrada”, e eu simplesmente não sabia até onde iria! Até que um dia, quando fui em Belém, voltei com uma bicicleta, decidido a explorar a estrada! 

Isso se deu quando houve um caso difícil de resolver: o Desossa, que tem uma barraquinha que vende frango na beira, entrou com uma ação porque, segundo suas palavras:

— Doutor, eu comprei uma casa inteira e descobri que era meada, doutor! A Amora Preta me enganou, doutor! Quero meu dinheiro de volta!

— Enganei nada, ele tá se fazendo de leso, doutor! Falei tudinho como era a casa!

— Doutor, a casa não tem nem banheiro!

— Claro que tem, doutor! Só não é dentro da casa! Mas lá é gapó, doutor, todo mundo usa o banheiro fora!

— Mas o banheiro fica dentro do terreno dela, doutor! Como pode isso?

Ai ai ai… tava difícil! Depois de muito tempo de discussão, eu mais ou menos consegui entender: 

A Amora Preta (que tinha esse apelido por ter a aparência doce e bonita, mas ser uma mulher difícil de conquistar, como a amora preta que é uma fruta doce e bonita, mas que a gente acaba sempre se arranhando com os espinhos pra colher), por ocasião da festa da padroeira, ficou encantada com um jogo de sala, composto por sofá, uma poltrona menor, uma mesa de centro e uma pequena estante, tudo em estampa de flores, que o Mariposa, pagando promessa por ter voltado com a Constante, doou para o bingo da festa. Decidiu que precisava ganhar esse prêmio, que seria o prêmio fina da noite!

Mas a Amora Preta não tinha dinheiro para as cartelas, e para isso, decidiu algo bem peculiar: simplesmente repartiu a casa no meio, para vender metade da casa, porque agora nem precisava de casa grande, eis que os filhos já estavam criados, e só cuidava de três netos, todos filhos do Fuinha, o filho mais novo, muito namorador. Daí, que não precisava de uma casa grande, e decidiu por repartir a casa e vender metade como se fosse inteira, para comprar cartelas do bingo e ganhar o jogo de móveis de sala!

Mas o que ela fez, foi simplesmente passar uma parede de madeira pelo meio da casa! Assim, a casa da Amora Preta, que para os padrões da ilha até era grande, ficou com umas peças para um lado, e outras para outro! O “banheiro”, entretanto, era de fato, atrás da casa, daqueles que a gente anda em uma ponte que são duas tábuas e chega numa casinha de um metro quadrado com uma latrina e uma ducha. Mas o disjuntor que liga toda a eletricidade da casa e a bomba d’água, ficava para o lado da Amora Preta!

— E quando acabar a água da caixa, doutor, como eu faço?

— É só ele gritar que eu ligo, doutor, não precisa fazer esse caso todo!

O que eu sei, é que era muita confusão, e eu realmente não estava entendendo direito. Daí, que decidi que precisaria ir no local olhar. 

— Eu vou suspender nossa audiência, e vou lá ver! Onde fica a casa?

— Pra estrada!

Falaram praticamente juntos!

— Sim, mas onde, que distância?

— Pra estrada!

Repetiram juntos!

— Certo, mas quanto tempo vocês levaram pra vir até aqui?

— Doutor, eu levo uma hora, mas venho sempre pelo Igarapé, no casco! — Disse-me a Amora Preta.

— Eu só fui uma vez e também fui pelo Igarapé. Vou comprar um rabudinho pra mim, doutor, pra chegar lá, porque pela estrada não chega nunca!

Eu estava cansado demais naquele dia, para entender como que a casa fica “para a estrada”, mas não chega nunca?!

Era uma quinta-feira, e eu marquei a inspeção para a próxima terça-feira, porque segunda seria feriado por conta da padroeira. Estrearia minha bicicleta na estrada, e faria a inspeção na casa da discórdia!

Eles aceitaram bem a situação. Como cada um achava que tinha razão, queriam a inspeção.

Em Belém, comprei a bicicleta, e, domingo à noite, embarquei para a viagem de 12 horas de volta… mas deu prego na viagem, e acabou levando o dobro. Cheguei à noite no horário do bingo. Dei uns trocados para um carregador e ele levou a bicicleta até minha casa. No caminho, já estava rolando o bingo e vi a Amora Preta concentradíssima em uma mesa, com os três netos e duas noras, cuidando de mais ou menos umas vinte cartelas do bingo. Ela queria mesmo ganhar! 

Também encontrei meu amigo China, e, pelo que entendi, ele havia arrematado um motor rabudinho e estava arrecadando dinheiro para pagar. Eu estava muito cansado e fui para casa.

No dia seguinte, convidei o Goela para ir comigo:

— Só se for de voadeira, doutor, de bicicleta não dá!

— Por que isso, Goela, bora, arruma logo uma bicicleta e vamos lá!

— Doutor, o senhor me desculpe, mas não tem jeito! Se o senhor quer arriscar… — e disse isso com aquele sorriso malandro que sempre me deixa em dúvida. Mas não iria dar o braço a torcer!

Acabei convidando o Rob, assessor do Promotor, que eu sabia que tinha bicicleta e e fomos para a estrada. Ele estava há mais tempo que eu e perguntei: 

— Já pedalaste na estrada, Rob?

— Várias vezes, doutor, mas só fui até a pista. A estrada não tem fim, Doutor. O senhor não vai encontrar a casa. Tem lugar que só indo pelo igarapé!

— A Amora Preta me disse que levou uma hora de casco, pelo igarapé… de bicicleta a gente deve chegar em menos de meia hora, Rob.

— Chega nada, doutor… tem lugar que só existe pelo Igarapé!

— Tá louco, Rob? Já estás acreditando nessas crendices? 

— Não é crendice, doutor. Pela estrada, não chega nunca!

Estava uma tarde agradável, e parecia muito fácil de pedalar. Com 15 minutos, estávamos na pista. Calculei que com mais 15, acharíamos a casa, porque a Amora Preta disse que era bem na beira da estrada.

30 minutos e nada… mais 15… mais 15… olhei o relógio… já havia dado 1 hora que saímos… eram mais ou menos 16h30… levando uma hora pra voltar, chegaríamos ainda antes do sol se por. Dei o braço a torcer e decidi voltar. 

O Rob pedalou o tempo todo da volta com aquele sorrisinho de canto de boca, que universalmente quer dizer “eu te disse!”!

Chegamos de volta já era noitinha, porque eu não havia percebido que tínhamos ido a favor do vento e foi muito mais difícil voltar! O Goela estava na frente do Fórum, na praça e tenho certeza que ele também estava me esperando com aquele sorriso de canto de boca!

— Farelo, doutor?

Apenas olhei para ele com a cara de derrota!

— Não esquente sua cabeça, já falei com o Dentadura e ele nos leva amanhã de voadeira pelo Igarapé!

Bem, vou resumir: Pelo Igarapé deu certo e chegamos no local junto com o Desossa que acabou chegando atrasado no bingo da noite anterior, mas comprou o motor Rabudinho do China, que estava vendeu pelo WhatsApp.  A casa era mesmo na beira da estrada, dava para ver a estrada quando chegamos no trapiche atrás da casa!

Quando desembarcamos, vi um sofá, uma poltrona, uma mesa de centro e uma pequena estante floridas, no trapiche, fora da casa e a Amora Preta já veio com o dinheiro do Desossa e foi logo devolvendo sem nenhuma confusão.

O Desossa pegou o dinheiro e foi embora rapidinho. 

Eu vendo os móveis, apenas comentei:

— Ganhaste no bingo, Amora?

— Ganhei, doutor, por isso desfiz o negócio.

— Hein? Mas o que tem uma coisa a ver com a outra? 

Eu não me dei conta, doutor, mas quando dividi a casa, a sala ficou para o lado dele. Eu não ia ter onde botar o sofá!


Luís Augusto Menna Barreto

23 de dezembro de 2024

6 comentários:

  1. Olá!!! Que belo dia pra lembrar das histórias do Marajó! Dia desses lembrei deles... E que "estrada" sem fim! Coisas do mundo MARAJÓ! Adorei estar de volta. Boas Festas!

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    1. Guria.... que incrível ter-te de volta por aqui!!!! Estamos voltando!! Marajó vem de novo, mostrar suas gentes, suas aventuras, sua realidade tão deliciosamente fantástica!!
      Bem vinda!!!!! Entra! Tu já conheces a casa! Fica à vontade, e vamos ver se resgatamos, ainda, velhos amigos para conversar na sombra de uma mangueira, à beira de um igarapé!

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  2. Show, são estórias que ficam registradas na memória e materializadas em suas narrativas, obrigado por compartilhar esses momentos de forma leve 👏🏼👏🏼👏🏼

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    1. Grande Roberto... inspirada naquela nossa pedalada na estrada... fomos a favor do vento sem perceber e foi punk voltar... coloque isso com outras histórias... e dá um caldo!!! Saudade boa daquele tempo!

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  3. Que alegria conhecer suas obras! É uma grande satisfação reencontrá-lo (depois de 20 anos). Sempre o admirei e agora ainda mais. Saudades dos tempos de Juizado. Um grande abraço pro senhor e pra Bela Ana.

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    1. Manuuuuuu!!!!!! Guria!!! Como tu me encontraste???? Que alegria!!!
      Eu me lembro bem de ti, teu jeito mais quietinho, mas eficiente, que logo já sabia até o que eu nem havia ditado ainda…!!!! Depois do Juizado, passei muitos anos no Marajó, e acabei me apaixonando por aquela Ilha Maravilhosa, e não resisti em contar suas histórias!!! Sejas bem vinda!!!!!!!!!!! Estou realmente curioso para saber como chegaste no blog?!

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