sábado, 21 de dezembro de 2024

Aquele Olhar

 

Vamos começar com uma cena meramente hipotética:

Tu estás em um restaurante com ela, rolando o espeto corrido, e passam dois amigos por tua mesa. Conversa rápida, e eles convidam para ver o jogo da semifinal do teu time na casa do Carlão, tomando aquela cervejinha. Antes que tu respondas, ela dá uma leve cutucada com a ponta do sapato na tua canela, e fala:

— Ah, amor, é no dia da festa na casa da Cecília.

Na hora tu fazes aquela comparação mental, entre uma tarde de sábado na beira da piscina da casa do Carlão, com cerveja à vontade, o churrasco assado pelo Costela, argentino radicado na cidade há mais de vinte anos, o melhor assador de todas as nações portuguesas e castelhanas, aquele telão gigante e maravilhoso, e a casa da Cecília, com umas oito mulheres tagarelando, uma alcatéia de crianças correndo, gritando, batendo nas tuas pernas, e tu fazendo o maior esforço para lembrar do nome de quem quer que seja, enquanto pensas nos teus amigos no churrasco e olhando o jogo!

Então, tu ainda tentas uma autorização:

— Tu não te importas, né amor?

Nesse momento, vem o olhar. Aquele olhar! Ela não fala nada. Não move qualquer músculo do rosto. É apenas o olhar. Aquele! Tu o entendes. Os amigos entendem. O Carlão vai entender quando contarem. Até o garçom entende, e não te oferece o cupim, desvia da tua mesa e, com aquela solidariedade velada existente entre os homens, ele volta com o melhor espeto de picanha, e olha para ti como quem deseja boa sorte ao guerreiro embarcando para o front. 

Ela continua exatamente de onde havia parado antes dos amigos chegarem com aquele convite que equivale a um sorteio de rifa, ao prêmio final no bingo, ao crédito do 13º sem estar com conta negativa! Ela continua sorridente e já falando na sobremesa que escolherá, e que depois tomará um chá quando chegar em casa, porque exagerou no almoço. Tu a ouves falar, mas nem sequer consegues elaborar o que ela está falando, porque tua mente continua no churrasco do Costela na casa do Carlão. Tu terias mil argumentos. Ela sabe que tu os teria. Ela sabe de tudo! Mas ela fez aquele olhar! Aquele.

O olhar que não admite argumentos, que é definitivo, que te dá apenas duas opções a cada vez em que é usado: é aceitar, ou o divórcio. Não há meio termo. Não há ponderação. 

Tu conheces aquele olhar! Todos nós, casados, conhecemos, porque todos nós, em algum momento, já fizemos algo que deu origem àquele olhar. Na verdade, caímos na ARMADILHA que levou àquele olhar!

Eu já disse em outra crônica, que enquanto nós, meninos, gastamos nossa infância com sonhos irreais, em que somos Maradona, Neil Armstrong, Ayrton Senna, elas treinam! Fazem aulas práticas. Preparam-se para o futuro: elas brincam de casinha, onde dão todas as ordens, vão no salão com a mãe, onde recebem um workshop sobre casamento e em como dominar a relação, sem que a gente nem perceba. 

Em algum momento do workshop elas ensinam sobre culpa! Isso, culpa! Elas há muito desenvolveram a técnica. Não se trata do que nós, homens, fazemos, que é colocar simplesmente a culpa em alguém, ou até mesmo nelas! Porque isso não adianta, nós sabemos que não adiante. Uma culpa que é nossa, não pode ser simplesmente transportada para alguém. Toda culpa tem um molde único, que só cabe em seu responsável, por isso que não adianta querermos tirar de nós e colocarmos em alguém quando nós mesmos sabemos que a culpa é nossa. Vamos olhar para a outra pessoa e ver que a culpa acabou ficando como uma roupa três números menor. Não se ajusta, não entra. E quando a admitidos, ela nos cabe como o paletó desenhado sob medida pelo próprio Giorgio Armani! E elas sabem disso! Então, o que elas aprendem, não é a colocar a culpa em nós… é muito mais sofisticado, muito mais elaborado… quase sórdido: elas aprendem a fazer com que nós nos sintamos culpados! Porque é isso: a culpa é sempre de dentro para fora! Elas aprendem a plantar a culpa, esperar germinar, nascer… e elas como jardineiras peritas, vão cuidando desta culpa sutilmente, podando, fazendo dar flores e, principalmente, frutos! Elas a mantem viva. 

Se tu tens mais de dez anos de casamento, tu sabes perfeitamente disso. Se tu és ainda novo nesse negócio, CUIDADO! Essa culpa, elas são treinadas a colocar-nos lá no início, nos primeiros anos. Há mais de um motivo para isso: em primeiro lugar, é muito mais fácil quando ainda estamos apaixonados, quando além do amor, há ainda aquela paixão aflorada; além disso, a culpa plantada no começo, renderá frutos por muito mais tempo! 

ESSA CULPA que faz originar AQUELE OLHAR. Aquele que nos lembra para todo o sempre: "tu já esqueceste aquela vez?”; ou, “vou precisar lembrar o que tu me fizeste?”.

É isso: naquele momento, em que elas conseguem plantar a culpa, elas imediatamente combinam com um olhar, que fazem congelar na tua memória, no teu disco rígido, teu HD. A partir daí, aquele olhar será usado em determinadas situações, nas quais tu não terás como escapar.

Mas que tipo de culpa é essa, tu queres saber? Bem, vou descrever uma situação hipotética:

Tu passaste uma semana longe dela, trabalhando, e voltaste cheio de saudade, hormônios pulando, louco por romance. Por ti, é claro, tu chegarias, descerias do carro, abririas a porta e ali mesmo, na sala, já teriam todo o romance que tu precisavas e em quinze minutos, tudo estaria resolvido. Menos, talvez. Mas não é assim, sabemos. Devemos chegar, contar como foi a semana, sermos interrompidos para ela começar a contar detalhadamente a semana dela, ouvir sobre preços no supermercado, sobre o vestido da Claudinha, sobre o joanete da mãe da Fernanda, até que o jantar seja preparado. Teus hormônios continuam lá, em uma contagem regressiva e em semi-desespero, e ela sabe disso… mas faz tu ires para o quarto, para a cama, e espera-la, porque ela vai tomar banho e preparou uma surpresa: ela comprou uma lingerie nova, bonita, verde… e parou na porta fazendo pose sensual. 

Isso.

E daí? 

Daí, meu caro amigo, que por algum inexplicável motivo, tu riste! Uma risadinha discreta, sem querer… mas riste. Aquela que sai “pfuuu” e tu corres para segura-la, engoli-la, mas fora tarde! Então, ali da porta, ela faz o que ensaiou a adolescência inteira pra fazer: AQUELE OLHAR, que seria repetido cada vez que quisesse fazer valer sua vontade.

No exato momento em que escapou tua risada, tu sentiste o peso da culpa! Sentiste o arrependimento como um soco. Perdeste a noite de amores!

Ela, de forma dramática, depois do olhar, voltou para o banheiro, fechou a porta. Lá dentro, ela suspirou e pensou: “pronto”!

Eu escreveria mais… mas acabo de ser chamado para uma aula de hidroginástica no exato momento em que Manchester City entra em campo contra o Aston Villa! Mas ela insistiu e disse que quer que eu desça para a hidro. 

Se eu tenho minhas culpas? Bem… ela nem precisou fazer aquele olhar!


Luís Menna Barreto

21 de dezembro de 2024


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