sexta-feira, 15 de novembro de 2024

O Marido, a Mimosa e a Ameaça


Foi o Tonelada quem chegou com a notícia de que havia acabado de prender o Marido.

Antes, tenho de esclarecer que “Marido" é o apelido do caboclo, não marido do Tonelada… O Marido, na verdade, era o companheiro da Mimosa.

Ele ganhou o apelido em um caso anterior que até acho que já contei, mas conto de novo. Antes, entretanto, aviso que é preciso saber uma das versões para quando a gente refere “amigo da onça”. Não conheces? Pois eu vou contar a que aprendi: “disk" (uma expressão daqui, muito usada no Marajó para referir algo que já ouvimos e não sabemos precisar nem a fonte, nem se o que se conta é verdadeiro); pois “disk” um caçador ia saindo com sua espingarda e um amigo perguntou:lhe”

— Vais caçar?

— Vou!

— O quê pretendes caçar?

— Porco do mato!

— E se aparecer uma onça? 

— Atiro nela!

— E se tua arma falhar?

— Eu corro!

— E se a onça correr?

— Atravesso o rio!

— E se a onça atravessar o rio?

— Subo em uma árvore!

— E se a onça subir na árvore?

Então já incomodado com as perguntas, o caçador pergunta ao amigo:

— Vem cá, tu és meu amigo, ou amigo da onça?

Pois dizem que daí que teria surgido a expressão “amigo da onça”, aquele que torce para o amigo se dar mal!

Então, "disk" o Marido, que antes era o “Fexecler”, casou e rápido descasou com uma morena das brabas! Entre os tapas e beijos, mexe e remexe na rede, tiveram um filho. Com o descasamento, mesmo sem nenhum acordo, toda semana a morena ia cobrar um dinheiro para a merenda do pequeno. O Fexecler até tentou ir no Navio da Ação Social, para fazer uma acordo na presença da Defensoria Pública, mas a morena nunca quis! Queria mesmo, é ir pegar a merenda como sempre fazia, e decidindo ela mesma, quanto seria o necessário! Nessa função, era fácil dar barraco, e o Fexecler acabava sempre pagando, e mesmo assim não saía sem levar uma esculhambação da morena. Então, teve o dia que o Fexecler pediu para a mãe dele entregar o dinheiro para a morena! Quando a morena chegou, a mãe do Fexecler foi para a ponta do trapiche que ligava a terra até a casa que ficava por cima de um gapó, e o Fexecler ficou na porta de casa. 

Quem disse que a morena pegou o dinheiro com a mãe do coitado? Pois ela empurrou a velha e foi atrás do Fexecler! O Fexecler fechou a porta, mas como não tinha tranca, a morena empurrou a porta e entrou! O Fexecler foi para a cozinha, atrás da casa, e a morena foi atrás. O Fexecler entrou na casinha afastada, que fazia vezes de banheiro, e a morena foi atrás. O Fexecler tentou ficar segurando a porta, mas a morena forçou tanto, que acabou entrando e o Fexecler não teve por onde escapar. Daí que empurrou a morena e ela caiu da ponte entre a casa e a latrina. Foi na delegacia e registrou queixa de violência doméstica. 

O caso logo se espalhou e o pessoal falava que era como a história do amigo da onça e logo o Fexecler ficou conhecido como o “Marido da Onça”. A morena, cujo nome nem se sabe, até hoje virou só “Onça” e o Fexecler, tendo virado “Marido da Onça”, com o tempo, acabou só “Marido”.

Quando o caso veio para mim, com pedido de medida protetiva que a Onça estava pedindo, eu dei a medida “ao contrário”: determinei que ela abrisse uma conta no banco postal, e a partir de então, arbitrei uma pensão mensal para o pequeno, e proibi a Onça de ir atrás do Marido.

Nunca mais havia ouvido falar dos dois até que o Tonelada chegou com essa notícia.

— Sob controle, “Merendíssimo"! 

O Tonelada, às vezes queria trazer pompa ao que falava, e cometia pequenos equívocos, mas considerando o tamanho do Tonelada, era prudente eu achar que não era de propósito.  Vai de “Merendíssimo” mesmo!

Pois o caso foi que a Mimosa havia ido prestar queixa de ameaça contra o Marido, na Delegacia. Chegando lá, ela foi atendida pelo Brédi Piti, o preso que cuida da delegacia na ausência do Delegado e quando o Fechadura, carcereiro, saía para diligências, fazendo as vezes de investigador. Daí, o jeito era o preso servir como carcereiro, mesmo! A mimosa chegou na delegacia nervosa e com uma lesão acima do olho, como quem levou uma pancada na “esquina" da testa.

— O que houve Mimosa?

— Cadê o delegado, Brédi? 

— Tá pra Belém, vem pra semana, só.

— Cadê o Fechadura? 

— Saiu pra estrada. 

— Então tu tens que ir lá resolver, Brédi!

— Não posso, Mimosa. Se eu saio da Delegacia, levo farelo. Pego ralho do delegado e o Tonelada me dá logo uma pisa.

— Égua, Brédi, o que eu faço? 

— Me fala o que houve, pequena? Quem te fez isso?

— O Marido me ameaçou, Brédi. Tu tens que ir lá resolver.

— Ah, Mimosa, dá teus pulos, que não tem visagem que me faça sair dessa delegacia!

A Mimosa foi então procurar o Tonelada lá para o açougue do Retalho, onde todo mundo passa para fazer uma fezinha no jogo do bicho, jogar um bilhar e tomar uma cerveja… às vezes até se compra carne por lá! 

A Mimosa só achou o Fiapo, de folga, e o Manobra tomando uma. Mas quis o destino que o Tonelada fosse na delegacia, dar uma olhada no Brédi, e ficou sabendo do ocorrido. Não teve dúvidas e foi atrás do Marido, encontrando o pobre, quando ia sair pra mariscar. Sem muita conversa, pegou pelo “cangote”, jogou numa cela, olhando feio para o Brédi:

— Quero que tu me deixe ele sair, Brédi! Só te digo isso: quero que tu me deixe ele sair…

O Brédi entendeu a ameaça e por nada o Marido iria conseguir sair daquela cela!

Foi quando o Tonelada entrou no Forum para relatar-me da prisão do Marido, que a Mimosa viu e correu lá, onde soube que o Marido havia sido preso.

Quando entendi toda a situação, resolvi ouvir a Mimosa, ainda que sem o rigor de um interrogatório formal, afinal, não havia nem mesmo uma ocorrência registrada!

— O que houve, Mimosa?

— O Marido me ameaçou doutor!

Estranhei. O Marido não era disso, sempre pacato, discreto, sem notícias de confusão, diferente de muito nó cego, que a gente fica sabendo de alguma história toda semana.

— E tu ficaste com medo, Mimosa? — Por definição, o temor de sofrer um mal, é elemento do crime de ameaça! Se a ameaça não tem potencial de causar temor na vítima, não há crime.

— Muito doutor! 

— Certo, e tu queres alguma medida protetiva? Queres que eu determine o afastamento do Marido do lar? 

— Não, doutor, quero o contrário! 

— Hein?

— O contrário, doutor, quero que o senhor proíba ele de sair de casa um tempo. 

— Mas ele não te ameaçou, Mimosa?

— Ameaçou, doutor. Faz dias que eu to me atrapalhando no almoço, e acabo queimando o arroz, ou deixando muito cru o frango… ele ameaçou me deixar e ir pra vizinha que sabe cozinhar, doutor!

— Hein?

— Ele me ameaçou de me trocar por aquela uma, doutor!

— Foi ISSO, Mimosa?

— Foi, doutor!

— E esse machucado na testa? Não foi o Marido, então?

— Não, doutor… esse é que eu fui lá dizer pra ela não arrastar a asa pro Marido, e acabei pegando uma panelada.

Pois é… coisas do Marajó. 


Luís Augusto Menna Barreto

12 de novembro de 2024


terça-feira, 15 de novembro de 2022

Eôôô… O Portão Fechou

 

— “PelamordeDeus”, Moço, como assim?

— É isso! Portão fechou! Quem entrou entrou, quem não entrou, ficou de fora!

— Mas como foi isso? Quando? Ai meu Deus, moço, não pode ser!

— … mas é! Fechou, já era!

— Não pode ser! Não era pra ser assim!

— Olha, eu entendo! Mas sou só o porteiro! 

— Mas eu cheguei no horário que eu tinha que chegar, né, Prateleira?

— Daí, já não sei, Olavo, só tô te acompanhando!

— Olha Olavo… Olavo teu nome, né?

— É.

— Então, Olavo, só não me vem com esse papo de cheguei no horário! Sou porteiro dessa escola h
á 34 anos! 34! Nunca fechei o portão no horário errado! Desde que o finado prefeito S. Caipora me nomeou. Só dois dias nesses 34 anos que eu não estive nesse portão! Eu trabalhei na campanha e ele me nomeou professor. Dai, não deixaram eu dar aula, porque não sabia escrever, e fui transferido pra porteiro, porque era muito novo pra me aposentar! Nunca fechei em horário errado! 

— Sempre tem uma primeira vez! Olha direito aí! Vai que enguiçou o seu relógio!

— Meu relógio tá no meu pulso ha 34 anos, Olavo! 34! Dou corda todo dia quando acordo! Porque pra mim, relógio tem que ter ponteiro e ser de dar corda! Porque esse negócio aí de pilha não dá pra confiar…

— Isso ele tem razão, Olavo. Semana passada meu relógio digital…

— Cala a boca, prateleira! Que mané relógio! Isso não podia estar assim! 

— Eu falei no Uber, Olavo…

— Cala a boca, Prateleira! 

— Olha, moço… Olavo… Não tem o que fazer. ENEM agora, só ano que vem!

— Mas o senhor não entende, moço… era a chance da minha vida! Eu ralei o ano inteiro! Essa era minha chance!

— Todo ano é isso. Tenta o ano que vem, Olavo!

— Ano que vem não dá… perdi minha chance…

— Todo mundo que perde o horário do ENEM diz isso, Olavo! Mas daí, no outro ano,  tá aqui de novo! Ano que vem tu voltas, Olavo, chega cedo, e faz a prova!

— Eu não vou ter outra chance!

— Claro que vai, que é isso, Olavo! Ânimo! É só uma prova que tu perdeste!

— Não. Eu perdi meu emprego! O Chefe da Redação disse que se eu voltasse sem a reportagem dos atrasados do ENEM, eu ia pra rua…

— É, ele vai pra rua…

— Cala a boca, Prateleira, desliga essa câmera!


Luís Augusto Menna Barreto

15 de novembro de 2022

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

"Engente" - Em outubro o rio invade Belém

 


Quem mora por aqui, conhece. Quem vem de fora, fica até assustado. 

Na época da maré grande, vem a enchente que invade a rua.

Vem lá do rio, da parte em que a cidade começou… e logo se espalha, tomando todo o largo. Sobe a Pedra do Peixe, invade o Ver-O-Peso, que não dá pra ficar com nenhuma barraca aberta. O comércio ali, na frente do Ver-O-Peso, logo é pego pela enxurrada… impossível passar carro! Nem ônibus vence a maré subindo!

Só quem mora aqui, conhece. Quem está acostumado a ver o rio. 

E pra quem acha que a maré não sobre a lomba da Presidente Vargas, está enganado: ela sobe! Como onda mesmo… indo, forte, recuando, indo mais um pouco… Leva tudo pela frente! E os que estão no caminho, para ver a a enchente, não conseguem resistir e são levados.

Há quem diga, que a maré grande é em março ou abril… mas quem mora aqui, conhece. E sabe: é em outubro! 

Cada gota do rio, parece ganhar vida, vira gente igual o boto, e se reúne em volta da Santinha! Ninguém nunca vai contar as gotas que formam o rio… nem as gotas-gente, que formam a maré que invade as ruas de Belém. E daí, todos podem ver o milagre: a Santinha caminha por cima da enchente, sem nunca afundar!  A maré-gente, é o tapete da Santinha! 

Quem mora por aqui, conhece: não dá para contar as gotas do rio. E não dá para contar as pessoas que formam o rio de gente no Círio. 

… quem mora por aqui, conhece!


Luís Augusto Menna Barreto

Outubro, Círio de 2022

domingo, 4 de setembro de 2022

Papagaio Queria Ser Herói


Um dia durante a sua folga de 15 minutos para o almoço, Papagaio pegara o celular e vira em um dos tantos aplicativos de vídeos de 30 segundos, um homem que correra para o meio da rua e levantou nos braços uma garotinha, no último instante antes que ela fosse atropelada por um carro que passava em alta velocidade.

Aquele vídeo, mudaria sua vida para sempre!

Ele entendeu que o homem do vídeo era um herói. Então, olhou para si mesmo, aos 26 anos, e decidiu que seria também um herói. Ele trabalhava como “segurança e anunciante de ofertas” de uma pequena loja de apelo popular bem na esquina de uma movimentadíssima BR que cortava a cidade de Ananindeua na região metropolitana de Belém, com uma das principais ruas de acesso à cidade. A rua em que havia o comércio, o Mercado Público, o Fórum da Justiça Estadual, o Fórum da Justiça trabalhista e alguns bancos. E a alguns metros, havia a passarela, sobre a BR, que despejava, minuto a minuto, um sem número de transeuntes andando sempre com pressa, sempre inevitavelmente atrasados para seja lá o que fosse. A esquina era definitivamente movimentada, para onde convergiam vários ônibus e um sem número de carros e motos.

Seu trabalho consistia em ficar vigiando se alguém tentava pegar alguma das roupas que ficavam em grandes balaios, na frente da loja, já invadindo a calçada, ao mesmo tempo em que segurava um microfone e anunciava as ofertas, contribuindo para a cacofonia urbana, que faz parte da rotina dessas aglomerações. 

Quando terminou o almoço, voltou para a frente da loja, pegou o microfone, mas ficou em silêncio. Observando.

— Ei Papagaio, bora lá, mano, anuncia as ofertas aí! — Gritou-lhe o jovem gerente.

— Eu vou ser herói, Seu Pantoja! — respondeu Papagaio.

— Vais ser é desempregado! Se não começares a trabalhar, vais levar farelo!

O fato é que dia após dia, Papagaio passou a anunciar menos, a vigiar menos a loja, e a prestar muito mais atenção à esquina. Tinha certeza que a qualquer momento, alguém estaria a ponto de ser atropelado. Então, ele sairia correndo e, no último instante, salvaria a pessoa aos olhares de todos. Ele seria um herói. Era seu destino, e sabia disso.

Cada vez mais disperso, acabou por ser demitido.

Em seu íntimo, não ficou chateado. Queria poder dedicar toda sua atenção ao tráfego naquela esquiva, queria estar alerta no exato momento em que aconteceria a sua ação heróica! Já imaginava, em todos os aplicativos, o vídeo viralizando: “Herói Papagaio salva pedestre da morte certa!”. Era seu destino!  Era o seu destino!

Sem o emprego, dedicando-se exclusivamente ao tráfego, começou a chegar mais tarde em casa. E saía mais cedo de casa. Muito mais cedo. E então, Zenaide abandonou-o! Não, ela não saiu de casa: simplesmente, não foi mais atrás dele, na esquina, chamar-lhe para jantar, para tomar banho. Não lhe levava mais a merenda, nem o fazia trocar de roupa. 

Papagaio não se importava! 

Usava o banheiro do Mercado Público, que funcionava ininterruptamente. Os antigos colegas do trabalho, sempre dividiam com ele, porções de suas marmitas. O generoso clima do Norte, permitia que as temperaturas nunca o maltratassem pela falta de roupas quentes. Acostumou-se a pequenos cochilos, em vez de um longo sono, e sempre o fazia em frente à porta da loja onde um dia trabalhara. Com o tempo, passou a conhecer as rotinas de quase todas as centenas, milhares de pessoas que passavam naquela esquina. E tornou-se conhecido, também.

Sabia que nas quintas-feiras, antes de 7 horas, D. Jandira fazia compras no Mercado Público, e saía de lá, tentando levar duas sacolas pesadas demais para seus 78 anos. Então, ele a ajudava a carregar as compras pelos quase dois quilômetros até sua casa. Descobriu que uma vez por mês, Jacinto, paraplégico, descia do ônibus com muita dificuldade, tendo de aceitar a expressão mal humorada do motorista, por ter que parar o ônibus e ir por fora, para ajudar a tira-lo com a cadeira de rodas, o que sempre atrasava o horário já tão apertado, para completar a volta na linha. Uma vez por mês, então, Papagaio empurrava Jacinto até a lotérica, tendo de vencer três degraus sem qualquer acessibilidade para cadeirantes, onde recebia o reduzido benefício do governo. E Papagaio praticamente impedia a passagem dos ônibus, forçando-os a parar contra a vontade, para receber Jacinto em sua cadeira de rodas, em seu retorno.

Uma vez por semana, ajudava D. Soraya a levar seu filho, Abelardo, que tinha esquizofrenia, pela passarela, para vir do bairro do outro lado da BR até o Crás, quase 1dois quilômetros adiante, para que fosse atendido e pudesse receber a receita e os remédios, os quais dificilmente tinha dinheiro para comprar.

Os anos foram passando… e a oportunidade de Papagaio não aparecia. A ordem natural da vida levou, ao longo dos anos, D. Jandira, mas vieram outras, às quais ele ajudava. Levaram Jacintos, Soraias, Abelardos… que eram substituídos por pessoas diferentes, e vidas iguais. Até que um dia, fora a vez de papagaio, já velho, já sem sequer saber a conta de seus anos, já sem sequer lembrar o nome com que fora batizado… 

Enfermeiros do Posto de Saúde que ficava ao lado do Mercado Público, acorreram, quando S. Pantoja, o então velho gerente da loja, não conseguiu levantar Papagaio, para abrir as portas ao expediente do dia. Uma pequena multidão reuniu-se, e alguns ouviram as últimas palavras de Papagaio:

— Eu só queria ter sido um herói.

O caixão fora simples, mas doado de boa vontade. Um vereador conseguiu um túmulo em um bonito lugar no cemitério municipal. Houve muitas flores, das tantas pessoas que não eram anônimas para Papagaio, e isso, para elas, fez diferença durante a vida. Os trabalhadores do Mercado Público arrecadaram dinheiro, e doaram a lápide.

Papagaio viveu a vida, buscando um grande ato de heroísmo… e não percebeu, que a soma de seus constantes atos de gentileza, o acúmulo de seus pequenos gestos diários, tornaram-no maior do que o ato que buscara. Na sua lápide, em que não estava seu nome, porque já nem sequer o sabiam, em que não constava a data de nascimento da qual não se tinha idéia, fizeram escrever:

“Aqui, descansa Papagaio, o herói”.


Luís Augusto Menna Barreto

4 de setembro de 2022. 


segunda-feira, 30 de maio de 2022

Adeus, David Coimbra - Meu Melhor Amigo Morreu Sem Me Conhecer

 

“Adeus, David Coimbra…

Em tua homenagem, acho que vou colocar uma mesóclise no começo. Fa-lo-ei. Pronto, fiz! Na antepenúltima frase desse parágrafo, óh!

Aprendi contigo, em uma das tantas crônicas que li nesses mais de 30 anos, que uma mesóclise no começo, é ótimo para chamar atenção para o texto. Ou também citar algum grande escritor. Bem, eu estou te citando.”

Esse texto acima, eu escrevi em 15 de fevereiro de 2019. Era minha intenção de despedir-me de David Coimbra. Não porque naquela época ele estivesse indo embora ou morrendo. Era eu. Não, não estava morrendo nem indo embora. Estava desistindo. Sim, desistindo. Por mais de trinta anos, desde os meus tempos de adolescente, desde “a Mulher do Centroavante”, eu leio David Coimbra e o admiro. Veio o vestibular, e um pedacinho dentro de mim falava para eu cursar comunicação social, tentar ser jornalista. Mas tudo na minha volta dizia “direito”. Ninguém jamais me forçou. Eu mesmo optei. Talvez por comodismo, talvez por covardia, optei pelo direito. 

Por algum motivo, Deus escolheu-me para qualquer um dos dois. Outorgou-me tanto o dom da oratória, quanto da escrita. Eu sei disso. O que não fiz, foi multiplicar os talentos que recebi, como era esperado. Acomodei-me naquilo que se vinha sempre mostrando mais simples. Daí, com o passar dos anos, fui também escrevendo, de forma amadora, modesta. Mas durante esse tempo todo estava ali, David Coimbra. Ele me perseguia nos jornais. Na rádio Gaúcha. Desde o primeiro dia que li, eu pensei: "tenho que conhecer esse cara! Ele escreve quase tão bem quanto eu.” (Tá, tudo bem, quem sou eu, né? Mas a modéstia nunca foi minha companheira, e, se além da minha mãe, eu mesmo não acreditar em mim, será frustrante). 

O fato é que sempre pensei que tinha que ser amigo desse sujeito. Ele pensa o que eu penso e muitas vezes, diz antes. Eu comprava seus livros, e, quando os lia, achava que poderia ter tranquilamente meu nome na capa, porque eu escreveria, sim, aquilo ali! Em 2002, quando troquei minha profissão, mas ainda dentro do direito, e me distanciei 5000 km de Porto Alegre, pensei: pronto, agora não vou mais ficar lendo David Coimbra… Começo dos anos 2000, não havia aplicativos de notícias como hoje. Havia páginas como Uol, Terra, Yahoo… Mas não havia smartphone nem os "Apps". Então, aconteceu de passar um tempão sem David Coimbra diariamente na minha vida. Logo mais, embrenhei-me na Amazônia, em Novo Progresso por um tempo, a 400km de lugar nenhum para qualquer lado, e, depois, uma radical (e grata!) Mudança para o Marajó, onde fiquei por 11 anos… mas acontecia algo peculiar nesse meio tempo: cada vez que eu ia em Porto Alegre, o encontro com os escritos de David Coimbra eram certos! Eu mesmo comprava os livros, procurava a coluna na Zero Hora. E cada vez que o reencontrava, era como um velho amigo, o melhor amigo: não havia vazios na conversa, não havia constrangimentos! 

Era como se eu tivesse lido ontem a última coluna, tamanha nossa intimidade. Sempre aquela sensação de “exatamente… eu poderia ter escrito isso”, eu dizia como quem diz para um amigo, afinal de contas, éramos.

Daí, que ano a ano, fui alimentando o propósito de realmente encontra-lo. O plano era simples: iria na redação da Zero Hora, um dos livros de David Coimbra embaixo do braço, iria apresentar-me, ele me olharia intrigado no começo, depois, talvez, gentil, assinaria o livro, faria uma ou duas perguntas, e voltaria para sua rotina tendo a mim por mais um entre centenas, milhares de fãs que o acorreram e acorriam… Ele certamente não me reconheceria como grandes amigos que somos há décadas. Não saberia das inúmeras discussões que tivemos, dos conselhos e sugestões que lhe dei e que tanto ele reproduziu em suas crônicas… Mas ainda assim, eu acalentava esse plano. Ano após ano.

Então, eu decidi: próximas férias no sul, vou lá! 

Foi então, que o destino colocou o câncer no caminho do David, e levou-o a Boston. 

Por essa ocasião, já havíamos retomado nosso contato diário, eu já tinha smartphone, já assinava GZH, já o ouvia em podcast todos os dias, seja no Timeline, seja no Sala de Redação. Como grandes amigos que somos, rezei por ele, fiz promessas, acompanhei sua luta! Regozijei-me com suas vitórias! Então, ele voltou a Porto Alegre. Pronto: agora nada haveria de impedir que eu o encontrasse, finalmente, e dissesse: "olá, David, sou eu! Dá cá um abraço!" Seria um abraço de melhor amigo! Eu já estava na porta dos cinquenta anos, e não havia mais tempo para perder apenas como fã, depois de uma vida inteira sendo tão íntimo, lendo suas entrelinhas, participando de sua vida!

Veio a pandemia. Viagens canceladas. Adiei.

Meu sogro, então, sabendo de nossa intimidade, fez o que eu jamais havia feito: foi até a redação de Zero Hora, levou um livro do David, e pegou, para mim, o autógrafo do meu amigo, meu chapa, meu camarada! Quando me enviou, não tomei por livro autografado: era uma carta! Claro, uma carta endereçada a mim, e assinada por meu amigo! Eu li cada um dos capítulos da carta, que tinha brochura e capa! Mas era pra mim, era assinada ao final por meu amigo David Coimbra. Aquela carta era o sinal definitivo: “tá bom, estou com passagem comprada para julho de 2022, em férias, e meu primeiro compromisso, será ir na redação, ou mesmo bater em sua casa, e encontra-lo! Já estou com 51, conheço-o desde os 16, 17 anos, já é tempo de abraçar meu amigão!

… e veio o dia 27 de abril de 2022.

Em julho, vou levar o livro. Vou pedir para o Diogo, o Maurício, o Potter, a Kelly, o Guerrinha, o Pedro, o Leonardo, o Luciano… vou pedir para todos assinarem o livro por meu amigo… 

… meu melhor amigo, que morreu sem me conhecer…!


Luís Augusto Menna Barreto

30 de maio de 2022


domingo, 1 de maio de 2022

Governo Eficiência 100%


— Olá, boa tarde, S. Alfredo está?

— (Cof-cof)… pois não, sou eu mesmo…

— Nós somos do Governo, S. Alfredo! O Senhor esteve consultando pelo SUS, ontem pela manhã?

— Sim…?

— Bem, por isso nós estamos aqui! É sobre o seu exame!

— Meu Deus! (Cof-cof)… nem acredito! Disseram que eu deveria ir marcar mas que não conseguiria exame para antes de seis meses… eu até brinquei que até lá eu nem estaria mais vivo!

— Exatamente, seu Alfredo!

— … oi?

— Exatamente! Este governo está implantando uma gestão muito mais eficiente, para evitar desperdício de dinheiro público. Então, todas as consultas do SUS estão passando por uma triagem, e os casos mais graves nós estamos visitando imediatamente!

— Nossa! Nunca imaginei que o governo pudesse ter essa eficiência toda! 

— A gestão foi profissionalizada, S. Alfredo, o senhor não precisa mais se preocupar! A partir de agora, não haverá mais nenhum desperdício. Nosso novo slogan é "eficiência 100%"!

— Para… (cof-cof) … béns! Finalmente, o governo que a gente espera! E quando vai ser meu exame?

— Ah!, o senhor não precisa mais se preocupar com isso!

— Ótimo. Quando vai ser?

— Não vai mais ter exame, S. Alfredo, o senhor não vai precisar se preocupar em levantar cedo, entrar em fila, esperar, nada disso!

— Como assim? O exame vai ser aqui em casa?

— O senhor não entendeu: não vai mais ter exame!

— Mas… (cof-cof) … o médico falou que meu caso é grave!

— Justamente, S. Alfredo! Agora, os médicos do SUS são obrigados a passar imediatamente todos os casos graves para nossa junta médica e analisamos quais valem à pena. No seu caso, seria só desperdício de dinheiro!

— Como assim?

— Seu caso é terminal, S. Alfredo! Não vale a pena gastar dinheiro no seu tratamento!

— Mas… mas o médico (cof-cof)… ele me disse que dependendo do resultado dos exames, se eu começar logo a medicação e fizer o tratamento, posso ter mais dois ou três anos de vida…

— Não, S. Alfredo! Veja, nosso governo, eficiência 100%, analisou seu caso: o senhor não teria condições financeiras para comprar toda a medicação necessária, nem mesmo de comparecer para a realização do tratamento! E para receber do governo, o senhor teria de pegar 2 coletivos para ir e 2 coletivos para voltar, toda a semana, entrar na fila, irritar-se com o mau atendimento, e esse esforço todo iria fazer a sua saúde piorar. De um jeito ou de outro, o senhor não duraria os três anos!

— Mas… mas…

— Não… nem se incomode, não precisa agradecer! O governo eficiência 100% está aqui para resolver seus problemas!  A propósito, o senhor sabe onde é a casa da D. Gertrudes?

— É… (cof-cof) aquela ali na frente!

— Obrigado, S. Alfredo! O governo deseja-lhe uma morte breve e feliz!

— Boa tarde. Dona Gertrudes?

— Sim…? 

— Nós somos do governo. Aqui na nossa ficha diz que a senhora está com mais de 75 anos…?

— Estou com 78 anos na verdade! E me sinto ótima! Vou longe, ainda!

— Justamente! Nós viemos trazer este comunicado que a sua caderneta de poupança foi transferida para o governo!

— O que?! Mas é um absurdo! Eu tinha trinta mil reais na poupança, passei minha vida toda juntando esse dinheiro para caso de necessidade!

— Exatamente! No nosso governo, evitamos qualquer desperdício e nosso lema é "eficiência 100%”. Detectamos que a senhora ficou juntando dinheiro a vida toda e nunca usou a poupança. Ora, se não usou a poupança em 78 anos de vida, não será agora que restam poucos, que a senhora usará! E veja: por uma questão de metas, baixamos a expectativa de vida para 65 anos e, então, a senhora já está com 13 anos além da expectativa projetada! 

— Mas… e se eu fico doente, se sofro um acidente? 

— Ora, D. Gertrudes, nessa idade, não valeria à pena a senhora gastar o dinheirinho que suou a vida inteira para juntar! Uma vez que a senhora ultrapassou a meta de expectativa de vida, o governo recomenda que a senhora não gaste mais nada com remédios ou médicos, e, em caso de enfermidade, deixe-se morrer tranquilamente. Isso aliás, pouparia muito para a senhora!

— Como assim?

— É que o governo criou um imposto de sobrevida, com alíquota progressiva! Qualquer um que ultrapassar a meta da expectativa de vida que foi reajustada para 65 anos, terá que pagar 5% de imposto para cada ano vivido a mais! 

— Isso é um disparate! Desse jeito, nós idosos vamos acabar nos matando!

— Bem, se a senhora optar por esta solução, nosso governo está implementando um programa de incentivo e apoio ao suicídio, de modo a que a senhora pode suicidar-se tendo 50% das despesas subsidiadas pelo governo… mas vai precisar de um fiador!


Luís Augusto Menna Barreto

2.5.2022