domingo, 17 de outubro de 2021

Eu, o Pilha e a Flor… (Ah!, tá bom: Eu, o Pilha e a Branquela Burra) - parte 3

 

Eu caí e ralei a bunda, quando o motorista do carro da branquela me jogou no chão. Fiquei com muita raiva de tudo: da branquela, do chão tão quente queimando a minha bunda, dos carros dos ricos, de terem achado que sou ladrão, de terem me chamado de mendigo… raiva do Pilha ter se metido com essa branquela. 

Eu fiquei com vontade de gritar pro Pilha: “eu não disse? Não te avisei? Quem é o mané, agora?”

Mas acho que o que eu tava com mais raiva era de ver o Pilha ali, triste, parado, olhando o carro da branquela ir embora. Daí, eu não disse nada pra ele. Só levantei e fiquei do lado. Eu não sou esperto como o Pilha, que sempre sabe o que dizer. Mas mesmo não sendo esperto, eu sei que tem vezes que o melhor é não dizer nada e só ficar do lado do amigo. Mesmo se a gente tiver com raiva que sabe que vai passar.

Ele esperou o carro desaparecer. Fiquei com medo do Pilha brigar comigo, porque se eu não tivesse me pendurado no vidro, nada disso ia acontecer, e a gente nem ia saber que a branquela tava naquele carro. Pelo menos o Pilha viu que ela é uma mentirosa. Meu coração ficou rapidão quando o Pilha se virou pra mim. Se ele brigasse comigo, eu ia falar pra ele tudo o que eu acho daquela metida. Azar se ele ficasse brabo! Mas ele não brigou:

— Machucou, mané?

— Não… Pilha, tu não tá brabo comigo?

— Não.

— Tu não tá com raiva, Pilha?

— Não sei… raiva do quê?

— Caramba, Pilha! De tudo!

— Não sei. Tu tá?

— Eu tô, Pilha! Claro que eu tô! — Eu gritei e comecei a chorar. Não sei de onde vinha esse choro, mas parecia que tava preso na minha garganta. Eu não aguentei e gritei tudo pro Pilha. — Tô com raiva da gente nunca ter nada, tô com raiva da gente nunca poder nem brincar com as outras crianças do parquinho. To com raiva dos ricos que sempre acham que a gente quer roubar. Tô com raiva de ti, porque tu só quis saber da branquela burra. Tô com raiva dessa vida, Pilha… tô com raiva de Deus! 

Eu tava chorando muito. Mas quando eu disse que tava com raiva de Deus, o Pilha parou na minha frente e colocou a mão no meu ombro. Ele nunca faz isso. Ele não gosta de encostar em ninguém, ainda mais depois que o “Desbravado" pegou ele*. Naquele tempo, eu não entendi o que o “Desbravado" fazia. Agora eu sei que o Pilha não gosta de encostar em gente porque foi “estrupado”. Mas ele botou a mão no meu ombro, e olhou direto pra mim. Eu ainda tava chorando de raiva.

— Mané, quem tu tem? 

Eu não entendi. Fiquei passando a mão no olho, pra limpar o choro. O Pilha insistiu:

— Quem tu tem?

Eu nem conseguia falar. Tava soluçando, depois de ter gritado tudo que eu tava com raiva. Daí, o Pilha falou:

— A gente só tem a gente, mané! A gente tem que ser amigo até morrer! Tua mãe não cuida de ti. Ela só quer que tu leve os 8 pilas todos os dias. Tua mana é bebê, e assim que crescer tua mãe vai botar ela na sinaleira também. O meu irmão tá preso. A gente só tem a gente. E por a gente, só tem Deus. Se a gente brigar com Ele, quem vai cuidar de nós, mané?

— Tu. 

Era o Pilha que tinha que cuidar. Era o Pilha que sempre cuidava da gente. E quando eu falei isso, o Pilha ficou olhando pra mim, um pouco. Daí, ele sorriu. Mas foi diferente. Parecia que a boca tava pesada. Mas ele sorriu mesmo assim:

— Então bora limpar esse choro, que rico não gosta de ver criança chorando. Daí que ninguém abaixa o vidro. Bora sorrir pros ricos e vamos trabalhar até a gente ficar rico, hoje!

— Nós não vamos no parquinho?

— Hoje não, mané. 

Passou um monte de dias sem que a gente fosse no parquinho. Ficamos na sinaleira direto. O Pilha parecia não cansar. Mas eu via como ele parecia triste. Até que chegou o dia de nome redondo, o dia que a banca de revista não abre e que o Pilha nunca vinha, ele veio. Eu levei um susto, fiquei super feliz. 

— Bora no parquinho, mané!

Eu nem perguntei nada e fui com ele. Não tinha quase ninguém no parquinho, naquela hora, só um velho que tem uma perna mais curta que a outra tava lá com o cachorro de pata torta. Ele vai todos os dias e a gente chama ele de Muleta, porque ele só anda de muleta. Mas a gente tem medo dele, porque ele briga com os moleques que querem jogar pedras no cachorro dele.

Eu achei que a gente ia aproveitar pra ir nos brinquedos, porque o sol ainda nem tava forte e não tinha ninguém nos brinquedos. Mas o Pilha foi direto pro canteiro. Tinha um monte de flor deitada, porque tem vezes que as crianças jogam a bola e cai ali e elas pisam nas florzinhas. E quando brincam de pega-pega, também correm ali por cima. Quando o Pilha começou a cuidar do canteiro pra branquela burra, as crianças pararam de correr por ali. Mas fazia um tempão que a gente não vinha no parquinho, e tinha um monte de flor pisoteada. O Pilha começou a arrumar elas.

— Pra que isso, Pilha?! Tu nem tá mais vendo a branquela. Pra quê tu vai fazer isso se ela até mentiu que não te conhece? 

— Eu não tô fazendo isso por ela, mané.

— Pra quem tu tá fazendo então?

O Pilha ficou um tempo em silêncio… só cavando a terra com a mão. Até que falou:

— … eu não sei. Só tô fazendo…

A gente continuou indo no parquinho. Mas agora, a gente ia cedo, antes do trabalho. O Pilha ficava arrumando o canteiro de flor e mal aproveitava os brinquedos, que estavam sempre vazios naquela hora, porque os filhos dos ricos estavam na escola. Depois, a gente ia pra nossa sinaleira. 

O Pilha nunca mais tinha falado na branquela burra. Já fazia uns vinte e onze dias, eu acho.

Daí, a gente tava sentado no meio fio, um de cada lado da rua, esperando o sinal fechar, e um carrão grandão assim, óh, veio diminuindo a velocidade, diminuindo, e quase parou bem perto do Pilha. Eu não consegui ver, porque tinha aqueles vidros escuros e o carro escondeu o Pilha. 

Quando o carro foi embora, o Pilha tava segurando uma florzinha com o galho quebrado. E tava com o sorriso mais bobo que já vi. 

(Continua no epílogo, semana que v



em…)


*Vide "Um Conto do Pilha"

Para ler Um Conto do Pilha, CLIQUE AQUI!


Luís Augusto Menna Barreto

17 de outubro de 2021

12 comentários:

  1. Aí meu coração 😭 não tem como se emocionar diante disso escritor. Essa meninos que Deus cuide sempre deles, sofrem mas ruas .... Tão triste pegamos amor por esses dois, que no próximo venha novidades boas eles merecem um futuro melhor!! 👏👏👏

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    1. Super obrigado, Liuu….! Na semana que vem, teremos uma visão “DIFERENTE”… talvez vejamos o Pilha por outros olhos…!

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  2. Foram tantos aprendizados hoje com esses dois guris...muitos mesmo! E, ainda, teve uma florzinha que brotou bem aí no finalzinho...Ah já estou ansiosa, quando teremos o próxima parte??

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    1. Tão obrigado, Valéria… tão obrigado…!
      Foi especialmente gratificante contar essa historinha, e ver que o Pilha tocou a realidade de outro personagem, de outro conto (O Velho e o Garrincha - o velho é o Clarêncio, que os garotos chamam de “Muleta” e o cachorro “de pata torta”, o Garrincha)! A próxima parte (epílogo), será uma visão bem diferente do Pilha… e acho que um outro personagem aparecerá….!!!! A publicação está prevista para o próximo domingo, 24.10.21!

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  3. Bom ver a coisas entrando nos eixos... Que superação🌻

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    1. Os garotos só tem a eles mesmos… a impressão que tenho, é que o Pilha está sendo “obrigado” pela vida a amadurecer, e, de alguma forma, está intuindo isso… talvez, ele seja obrigado a transformar-se, muito antes do tempo em que seria natural!

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  4. E como todas as pessoas mais pobres, os meninos também vão adquirindo um modo de resolver suas dores do jeito que a vida lhe oferece as soluções possíveis, a partir da solidariedade. Um abraço, o silêncio em forma de afago, o riso fácil com se nada tivesse acontecido, o tocar a vida pra frente, seguir adiante...
    E fiquei contente em ver, de novo, o Garrincha e o seu dono.

    Ah, Poeta, e ninguém mostra o chão dos simples como você não.
    Só você.

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    1. “(…) levo esse sorriso porque já chorei demais (…)
      Penso que cumprir a vida seja simplesmente
      Compreender a marcha e ir tocando em frente (…)”

      Acho, Maria, que o Pilha, ainda que muito antes do tempo, ainda que pela crueldade e aleatoriedade da vida, está intuindo a necessidade de amadurecer, como uma defesa… Ele sente, de alguma forma, que precisa cuidar do amigo… e compreende que olha para os lados e não vê ninguém que possa cuidar dele próprio…
      Eu me tenho preocupado com alguns silêncios do Pilha… acho que ele tem recebido uma carga maior do que qualquer criança deveria receber….!

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    2. E, quanto ao Clarêncio (batizado pela escritora Ana Isabel) e o Garrincha, vem aí uma edição especial, com desenhos do artista Murilo Lopes (que fez a capa do Conto Della)! Achei que seria delicado homenagea-los, juntando seus universos…! E talvez haja mais surpresas no epílogo deste conto do Pilha… vem aí, uma visão do Pilha, por um ângulo que ainda não havíamos visto!!!

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  5. Entre uma sinaleira e o parquinho, a gente se encanta com a história desses dois garotos.

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