bora cronicar
100% de 2% - O Meu Tudo de Quase Nada
Ela ouviu a notícia quase sem querer… entre duas novelas que gostava de assistir ao chegar em casa depois de dois ônibus normalmente lotados, ela corria para fazer o jantar para eles. Sentia-se satisfeita e tinham planos que neste ano, se conseguissem juntar R$ 150,00 reais por mês, poderiam ir passar quatro dias na praia. Ela consegue juntar R$ 60,00 todo o mês e ele tem conseguido juntar R$ 90,00; houve meses que juntou R$ 100,00, fazendo hora extra na construção. Ele sempre chegava quando a novela já havia começado, e, embora com fome, tomava um banho rápido e terminava de assistir ao lado dela a novela, e só então jantariam juntos. Naquele dia, ele chegou no momento em que o apresentador falava qualquer coisa sobre uma doença em um pais distante. Ela não prestou muito atenção, porque era o tipo de coisa que nunca lhe interessava… mas de alguma forma sentiu piedade e pensou que rezaria por aquelas pessoas, ainda que sequer fazia idéia de onde estavam, no mundo.
Jantaram. Ela lavou a louça enquanto ele fumava um cigarro no minúsculo pátio daquela casa de cozinha, quarto, sala e banheiro, na periferia da cidade metropolitana em que moravam.
Nos dias que se seguiram, seguiu-se também a rotina. Ambos acordavam antes de 5 horas da manhã, porque ambos trabalhavam na capital e precisavam de dois ônibus para chegar no trabalho. Ela chegava em casa em torno de 19 horas, ele em torno de 21 horas. Ela passou a notar que as notícias sobre uma estranha doença acontecendo em algum lugar no outro lado do mundo ocupavam cada vez mais tempo no noticiário… Ela passou, todos os dias, a rezar pelas pessoas, ainda que estivessem a uma distância que ela sequer compreendia. Passaram a falar em números… números que eram estranhos, porque ela imaginava as dores de cada um… Depois, passados mais dias, as notícias de tudo aquilo somente aumentavam… falavam palavras que ela não sabia ao certo o que significavam… não sabia a diferença… falavam em epidemia… falavam no medo de uma pandemia, mas ela sequer sabia o que significava. Mais números.
Ela via os patrões cada vez mais nervosos em casa. Houve notícias de um caso na capital. Depois uma morte. Depois mais mortes. Foi demitida. Disseram que ela podia infectar os patrões, ainda que ela sequer soubesse como. No dia em que fora demitida, vira-o chegar em casa um pouco abatido. Fora demitido também. No dia seguinte, ela levantara cedo, porque tudo que lhe passava pela cabeça era conseguir um novo emprego. Ele não levantou. Ela o deixou dormir. Quando chegou em casa, viu-o tossir algumas vezes. Estava com um pouco de febre. Fez-lhe um chá quente. Cobriu-o.
Nos dias seguintes, dividida entre cuidar dele e procurar emprego, passaram a ouvir mais notícias, mas ela não entendia direito. Todos os dias falavam em números, mas ela jamais entendeu aqueles números.
Na medida que ele ia piorando, ela ouvia números: 3 mil infectados… 4 mil… previsão de que 1% da população poderia ser infectada… destes, que “apenas" 0,6% morreriam…
No dia em que ele morreu, em casa, porque simplesmente não foram aceitos em nenhum posto de saúde, e ela preferiu traze-lo de volta para casa do que o ver morrer sentado num banco no corredor de uma UPA, ela ouviu a notícia: havia seis mil mortes no país… “menos de um por cento da população”
Ela não entendia aqueles números… para ela, houve 100% de perda em sua vida. Como poderiam falar em percentuais. Não fora uma parte dele que morrera. Não lhe sobrara 99% dele, tendo “apenas" 1% morrido. Ela perdera seu todo. Sentia-se fraca. Notou que sentindo a falta dele, também tossia.
Ela chegou a ser levada, pela vizinha, a um hospital improvisado, em um grande hangar. Mas não havia UTI… era apenas uma cama e um lençol. Na noite em que ela sabia que morreria, porque quase não conseguia mais respirar, ouviu no rádio de um paciente próximo, sobre os números percentuais… Quase achou graça. Pensou que sua morte não modificaria em nada as estatísticas, os números. Seu último pensamento foi que 100% de sua vida já havia acabado, quando ele morrera.
Luís Augusto Menna Barreto
3.5.2020
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É, uma coisinha tão pequena, invisível e com um poder de destruição tão grande, se alastrando na velocidade da luz. Triste situação essa do mundo. Mas, ainda assim tivemos uma crônica lindinha, de pessoas que lutavam, sonhavam e planejavam férias na praia, vida simples e feliz, destruída por um inimigo pequeno e invisível. ....
ResponderExcluirPrecisamos aprender as lições... precisamos sair mais fortes... precisamos ser solidários...!
ExcluirObrigado, Nice!!!
Não.
ResponderExcluirNão é melodia, não são devaneios de um poeta.
É a realidade.
É a crônica dos sonhos desfeitos.
É um irmão que escreve sobre a dor do próximo.
Por isso, choro.
... acho que seremos melhores quando a dor do outro seja a nossa dor! O sorriso do outro seja o nosso sorriso...!
ExcluirObrigado, Maria...!!
"...acho que seremos melhores quando a dor do outro seja a nossa dor!" Exatamente isso, Poeta! Cuidar do outro, fazer algo para acalmar a angústia do irmão... Espero demais...que saiamos melhores de toda essa dor.... Eu acredito muito nisto!
ResponderExcluirÓtimo tema, Poeta!
Eu penso que isso tudo, tem a mão de Deus... e que de alguma forma, isso é uma oportunidade que sejamos melhores... porque, se não sairmos com mais solidariedade, se não sairmos com mais amor depois disso tudo... não vamos ter entendido nada... e todas as mortes terão sido em vão!
ExcluirObrigado, Armelinda!
Muito triste... Quem dera fosse somente a imaginação trabalhando, é dolorido esse receio de viver essa tragédia e ver a realidade de tantos que não tem como ter um atendimento digno, erros de muitas gerações expostos grotescamente.
ResponderExcluirEsse é nosso maior medo... saber que, se precisarmos, não conseguiremos o socorro... Saber que existiria a possibilidade de tratamento... e saber que não teremos... esse é um dos maiores geradores de pânico...
ExcluirEnfim, esse texto foi inspirado na nossa realidade... não para impor qualquer medo... mas para despertar-nos à solidariedade... a ver que, mesmo isolados, mesmo fechados, a dor do outro tem de nos importar... tem de calar em nós... Se perdermos o poder de nos importarmos com o outros, perderemos nossa humanidade.
Como se diz por ai: nao deixe o número se transformar num nome que amas e que queres chamar e ser atendido...solidariedade...acima de nossos egoísmos...
ResponderExcluirDisse Chaplin, no "Último Discurso" no filme "O Grande Ditador":
Excluir"(...) Não sois máquinas. Homens é o que sois (...)"
Que nossa nova bandeira seja a caridade e o amor!
Agora mexeu no que tem me atormentado... Às vezes me acho graça, mas ao mesmo tempo preciso ser forte...Meu maior medo é que números virem nomes meus, eu não tenho estrutura... óbvio que cada número é o amor da vida de alguém... Que Deus permita que sejamos seres humanos melhores, que possamos ser mais solidários e deixar de alimentar tanto o ego com coisas fúteis... Não conseguir segurar as lágrimas...Uma "crônica real"...
ResponderExcluirObrigado, Michele...
ExcluirA crônica de hoje, realmente fiz para instigar... Eu a fiz espelhado não em uma realidade distante. Eu a construí com o que vejo ao lado!
Vejo vizinho, pessoas que tem efetivas possibilidades, demitindo pessoas, simplesmente porque neste momento não precisarão de seus serviços... já vi vizinhos ligarem inclusive para quem dispensaram e dizerem "assim que tudo passar vou precisar muito de você"...
Mais do que em qualquer outro tempo precisamos fazer nossa parte.
A minha idéia, hoje, foi essa: o número que sustenta nossa esperança, pode, amanhã, ser o 100% de alguém que tocamos, que beijamos, que ao menos todos os dias enviamos a mensagem dizendo "te cuida; eu te amo; saudades".
Uma segunda mensagem, mas não menos importante, foi dirigida a muitas pessoas que, como eu, tem alguma possibilidade de evitar mais danos... dispensamos nossa secretaria de vir ao trabalho... mas continuamos pagando, sem qualquer redução, ou imposição de que seja "recuperado no futuro"... ela precisa agora! Paramos, momentaneamente com os treinos... e permanecemos pagando a personal (a "Camila", que tanto me aterroriza em várias crônicas); continuamos pagando a companhia de teatro que vive apenas disso, da arte; embora não estando com as aulas para o João, mantemos os pagamentos...
Importa fazermos nossa parte, porque muitos dependem dos que podem ajudar...
O recado na crônica é a solidariedade! A caridade. O amor!
Precisamos passar por isso e sair melhores... PRECISAMOS SAIR MELHORES!
Correção: *Me acho fraca......
ResponderExcluirAh, guria... a gente sempre entende...!
ExcluirCaramba!! Fiquei sem fôlego. As pessoas que fazem parte das estatísticas, representadas por números, fazem parte da vida de alguém e somente aí se transformam em nomes, sobrenomes em perdas reias e doloridas!
ResponderExcluirÉ isso... e exatamente isso!!!!
ExcluirOs números, tão frios e distantes que vemos, são GENTE... o número é sempre GENTE, que ama, que é amada, que chora e que chorarão por ela...
Obrigado!
A crônica retrata a realidade que nos apavora e mostra o agravante medo de ser contaminado e não ter atendimento médico, por falta de vagas nos hospitais.
ResponderExcluirMas há outro fator que parece ser usado para causar mais impacto e pânico na população: pessoas morrendo por outras causas e sendo atestadas como COVID-19.
Sou missionária da Igreja e visito idosos. No último sábado, um deles faleceu por insuficiência cardíaca. A família ficou surpresa ao ouvir o nome dele no noticiário da TV, como vítima do COVID-19.
Isto foi revoltante, mas está acontecendo muito.
Gratíssima, meu amigo, pelo texto tão realista. Um abraço
Tirar proveito da tragédia, é por e-mais ignóbil... triste povo, de merecidos governantes... enquanto não entendermos que somente pela educação seremos maiores, continuaremos a “morrer de covid”, trocando a nossa saúde pela pila do caixa automático!!!
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