bora cronicar… ?!
A crônica de hoje, originalmente foi a primeira que escrevi e postei no antigo blogue “menna comentários, em 29 de janeiro de 2016. O antigo blogue durou exatamente 100 dias. Como eu havia feito por brincadeira, depois de fazer um blogue para meu pequeno João então com 8 anos de idade (porque ele havia visto um filme em que a personagem tinha um blogue), o “menna comentários” não tinha qualquer “trato”, não tinha índices, ou todo o menu que pode ser encontrada especialmente se entramos pelo computador, ou optamos pela “versão web”.
A crônica está revisitada. Como se fosse a mesma música com um arranjo diferente. Compõe o Capítulo 2 da Novela de Marajó City Espero que gostem!
Boa leitura.
mennaempalavras
Capítulo 2:
A Primeira Audiência, o Mereceu e a Modesta
A caminhada, por volta de 8h da manhã, do hotel ao Fórum, deixou-me suando! Eu havia levado dois paletós que eu usava no Rio Grande do Sul, e não me havia passado na cabeça, que eu iria fritar dentro deles, antes de chegar no Fórum! Um deles era de lã! De lã, meu Deus!!
No hotel havia sido rápido. O meirinho, que era mesmo chamado de Goela (eu ainda não sabia se poderia chama-lo assim!) entregou-me a chave do quarto ainda no trapiche, na minha chegada, avisando que se não tivesse a chave, não adiantaria bater no hotel antes das 7h, porque S. Nonô não me atenderia. Então ele havia providenciado o quarto no dia anterior.
… e eu já estava devendo uma diária!
No Fórum, o caso do Mereceu e da Modesta, era de violência doméstica, ou, como as pessoas chamavam pelo Marajó, “era um Maria da Peia”.
A Maria da Penha original sofreu duas tentativas de homicídio pelo marido, lutou pela condenação dele e, dezenove anos depois, ele foi condenado a oito anos. Não, eu não inverti os números. Seria mais legal se o processo tivesse durado oito anos e a condenação fosse em dezenove anos, né?! Mas não foi! E querem saber mais? Cumpriu apenas dois anos e tá aí, soltinho, soltinho.
Assim que eu havia chegado no fórum, o Goela, que estava esperando por mim, levou-me ao gabinete, que era também sala de audiências, e, antes que eu notasse que sequer havia algum computador, ele gritou da porta:
— Tutela, liga pro Fechadura trazer o Mereceu, que o doutor tá mandando! Barganha, vou bem ali chamar a Modesta!
Não, eu não havia mandado. E não faço idéia de “bem ali” onde o Goela iria. Mas seja como fosse, resolvi pegar os autos do processo que estava em cima da mesa, e comecei a folhear. Estava nervoso, claro, seria minha primeira audiência na comarca! Mas o problema é que eu ainda estava com a sensação de o chão estar balançando. Daí, quase não notei direito quando entrou um senhor relativamente gordo, de uns 60 anos, talvez, e sentou-se na cadeira à direita da mesa de audiências. Não disse “bom dia” e ficou com a “cara fechada”, olhando pra porta, quase ansioso. Parecia brabo. Achei que fosse o promotor, mas antes que eu dissesse qualquer coisa, já estava entrando na sala o Goela com uma senhora de uns 30 anos, pequena, com óculos escuros.
— A Modesta, doutor! O Mereceu já tá no corredor falando com a Dra. Quaresma.
A Dra. Quaresma, descobri depois, era a advogada que o Município contratou para ir na cidade ao menos uma semana por mês, quando faz as vezes de procuradora local do Município, e, na falta de trabalho, atende à população como se fosse defensora pública, porque naquela época, não havia Defensoria Pública instalada por lá. E era a semana em que ela estava, evidentemente!
Assim, mandei chamar o caboclo, que chegou na sala algemado, cara de poucos amigos e olhando pro chão.
Pedi pra Modesta tirar os óculos escuros!
O entrevero havia sido há trinta dias, mas quando ela tirou os óculos: “Égua da porrada”!! (Para ti, leitor, que eventualmente não saibas, “égua” é, para os paraenses, uma espécie de “bah”, ou “barbaridade” para os gaúchos. Para os paraenses, o “bah” é o “égua” e o “barbaridade” é o “pai d’égua”, e tem mil utilidades e flexões, mas isso nós iremos ver ao longo desta novela).
O olho da Modesta, trinta dias depois, ainda estava roxo e inchado! Ou o Mereceu, que era um caboclo pequeno, meio miúdo, tinha muito mais força do que aparentava, ou acertou exatamente no mesmo lugar, várias vezes.
Fui olhar o laudo do exame de corpo de delito e estava escrito “agressão por instrumento contundente – mão humana”. Para quem não está familiarizado com um laudo, ainda tem quesitos perguntando se a lesão foi causada por meio insidioso (vai saber o que é isso?!) ou cruel. Pois constava: “meio cruel, socos”! Assim, no plural!
O fato é que a vítima estava com aquele olho que fazia a gente querer e não querer olhar ao mesmo tempo.
Iniciei os trabalhos perguntando:
— Sim, Ariovaldo (esse era o nome que constava no processo), o que te deu para fazer esse estrago?
Silêncio. Resolvi perguntar de novo:
— Ariovaldo! O que fez o senhor agredir a vítima?
Nada. Nadinhas. Cabeça baixa. Será que o Ariovaldo era surdo? O Goela chegou no meu ouvido.
— Mereceu, doutor.
— Hein?
— Chame pelo apelido que ele responde!
Era estranho. Muito estranho, para mim… Mas, enfim, se eu iria passar um bom tempo da minha vida no local, deveria começar a tentar adaptar-me. Lá fui:
— Mereceu!?
— Sim senhor, doutor.
— Responde! O que houve para tu teres agredido a vítima?
— Mereceu, doutor!
Essa resposta, eu confesso que me fez pensar… ele estava repetindo o próprio apelido…? Ou estava falando que a Modesta mereceu a agressão?
— Como?
— Ela mereceu, doutor! — Cabeça baixa, sem encarar ninguém.
— Como assim “ela mereceu”? O que ela fez?
— Não sei, doutor, eu tava porre.
Deixa eu já explicar, também, que por aqui não se fala “eu tava DE porre”, com a preposição e verbo transitivo indireto! É sem preposição mesmo, o sujeito está “porre” como quem está “bêbado”. Fala direto. Verbo transitivo direto.
— Como é?, — eu perguntei.
— Não lembro, eu tava porre.
Eles não poderiam saber, porque era meu primeiro dia na comarca, mas a verdade é que se tem uma coisa que me irrita profundamente, é esse negócio de ficar se escondendo da verdade dizendo que não lembra, especialmente dizendo que não lembra porque estava de porre. O olho da guria ainda estava uma rodela roxa um mês depois, e o infeliz não lembra? Estava preso por conta dessa agressão e diz que não lembra? Nesse momento eu me segurei para não perguntar se ele está com alguma dificuldade de sentar, porque afinal, (dizem por aí) de porre não tem dono!
Tentei mais uma vez:
— Seguinte, vai ser melhor se me contares o que houve. Fala o que aconteceu para teres feito isso.
O mal acabado não deu o braço a torcer:
— Eu tava porre, não lembro doutor. — E continuava a olhar pro chão.
Nessa altura desisti e resolvi perguntar pra Modesta, a vítima:
— Então me diga a senhora: o que houve? Qual o motivo da agressão?
E agora, ela que parecia réu:
— Sabe doutor, eu não queria falar sobre mmmmmmmm… — e as palavras parece que foram murchando dentro dela, perdendo força!
— Hein?
— Eu não queria, eu que mmmmm… — Mais uma vez, as palavras iam sumindo como se ela estivesse falando ao mesmo tempo em que se afasta rapidamente.
— Não estou escutando, faças o favor de falar mais alto!
E, num filetinho de voz mais alto, a Modesta falou:
— Eu não queria ter que falar sobre isso, doutor, mas é que eu mereci!
— Viu, doutor: mereceu!
— Égua! — Esse foi o promotor, paraense da gema, que soltou com espanto! Foi a primeira e única manifestação dele na audiência.
Bem, eu não insisti mais. Nós nos olhamos, o promotor, a Dra. Quaresma e eu, e nem precisou debate. Num tempo em que o processo para prosseguir, precisava de representação da vítima, que era uma espécie de autorização para que o agressor fosse processado, o caboclo Mereceu saiu solto da audiência!
Era o típico caso: ele não sabia porque havia batido... mas ela sabia por que havia apanhado!
Luís Augusto Menna Barreto
2.5.2020
A expressão "égua de porrada" me fez rir kkkkkk
ResponderExcluirÉ a tal história de que seria(e É) cômico se não fosse trágico.
Mas engraçado mesmo é imaginar sua situação em tentar entender tudo, esses nomes, ou melhor, apelidos diferentes, inclusive da promotora QUARESMA(deve ter uma razão de ser, não?) Enfim, todos esses episódios são diversão garantida, pra quem está de longe, bom demais, adorei rsrsrs
É exatamente isso, Nice: seria cômico se não fosse trágico! O fato é que entre tapas e beijos, Mereceu e Modesta criaram mais filhos do que sabiam dar nomes!
ExcluirCoisas do Marajo...!
Bora passear pela ilha, e descobrir mais histórias...!!!!!
Égua!!! ( Aqui usamos também a expressão) Hahaha... Eu lembro dessa postagem...Eu só queria ser uma mosquinha pra ver a cara do juíz diante da cena...Estou feliz por poder rever esses contos de Marajó City... E aí o rapaz foi liberado? Fiquei curiosa... Ou é segredo de juíz? 🤦🏻♀️
ResponderExcluirAmei a crônica Poeta!!!
O rapaz, foi liberado e ambos saíram abraçados do Fórum. Hoje em dia, tem mais filhos do que souberam colocar nomes, o que rendeu, também, uma crônica (inédita). Na verdade, essa crônica de hoje, que fez estrear o blogue, sem eu nem saber, ainda, que rumo tomaria, estava diferente, e tem partes dela tanto na postagem de ontem, como na de hoje. Aqui, ela está revisitada, já no formato que estará na Novela de Marajó City, e obedecendo à cronologia da minha chegada!
Excluir... como é bom ter lugares bons assim para revisitar!
Obrigado, Michele!
Toda a situação é muito engraçada! Os apelidos, a linguagem... A forma que você narra, então, é de uma intensidade sem tamanho! Eu me transportei imediatamente para o local da cena !!! Que poder incrível tem a Literatura!
ResponderExcluirQue maravilha, Poeta!!!! 👏👏👏👏👏👏
"Que poder incrível tem a literatura"...
ExcluirAMÉM!
Armelinda, de tudo que tu poderias ter falado, nada seria tão gratificante de ouvir!
Como é incrível, realmente, a literatura... é tão imersivo, faz com que visitemos tantos mundos...
Esta madrugada eu estava lendo "Coluna de Fogo" (o terceiro da trilogia que começa com "Os Pilares da Terra" e depois "Mundo Sem Fim", de Ken Follet), e também eu mergulhava em França de Catarina, na Inglaterra de Elizabeth, e mesmo na imaginária Kingsbridged.
Que tenha, ainda, vida longa a literatura!
Obrigado, Armelinda!
Hahaha😂😂😂. As pessoas de Breves vivem indo "bem ali", muito legal, adorei!!
ResponderExcluirBem a vida como é ela, no Marajó infelizmente assim existe essa história do "mereceu".
Parabéns pela crônica 👏👏
Liliane!!!! Bem vinda e muuuuuuito obrigado por teu comentário!
Excluir"Bem ali" é um mistério pra mim, que não sou nativo... aliás tem uma crônica que o tema é justamente o "bem ali"...
Eu brincava e dizia que se eu fosse abrir um bar no Marajó, o nome seria "Bem Ali". O bar viveria cheio, porque não dou conta do tanto de gente que vai "bem ali"...!!!
Super obrigado!