Das Despedidas Que Não Vi

Eu lembro que quando era criança, lá na minha bela, querida, saudosa distante, inesquecível e lendária Santo Antônio da Patrulha, havia muitos amigos. Alguns dias, especialmente no começo do verão, havia perto de vinte bicicletas escoradas na nossa casa, na esquina atrás da “Igreja de Baixo”, e todos nós brincávamos enlouquecidos em volta da casa, até que a mãe trazia uma jarra de “Ki-Suco” de groselha, e um copo em que bebíamos e passávamos de um para outro.
Em algum dia, entre tantos havidos, foi a última vez que reunimos as bicicletas lá em casa. Alguma vez, foi a última que a mãe serviu “Ki-Suco” para toda aquela turminha. E eu nunca soube qual foi.
Muitas vezes, nas manhãs de final de semana, eu pegava algumas bolinhas de gude que guardava em uma lata antiga de “Nescau” (no tempo em que era vendido em latas de três tamanhos diferentes e precisávamos de um cabo de colher para abrir a tampa), e corria para a casa da Tia Jussara, para brincar com o Cuca, o Dico e o César, bem na entrada da garagem, onde era chão de terra, e então, fazíamos a “risca" e a “marraia”, para jogarmos bolinha de gude onde ganhávamos e perdíamos mutuamente. Quando chegava perto da hora do almoço, a mãe ia na janela do quarto, ou pelo lado da casa, e gritava para voltar, lavar as mãos e almoçar.
Em algum dia, durante aquela infância e adolescência, foi a última vez que joguei bolinhas de gude com eles, e ouvi a mãe gritando para chamar.
Havia também o campinho da esquina, onde todos jogávamos bola. Tinha dias que eram quase trinta garotos. O campo tinha alguma grama, mas pelo meio era pura areia… e ficávamos com camadas de poeira misturadas a suor nas pernas, as unhas pretas de sujeita por baixo, voltávamos roucos de tanto gritar… e, em algum dia, foi a última vez que nos reunimos por lá, e ficamos tão cheios de areia. Eu só não sei dizer qual foi este dia.
Até mesmo os almoços em família, apenas nós quatro, o pai, a mãe, e mana e eu, em que o pai não deixava que lêssemos gibis na mesa (era um maravilhoso mundo sem celulares, sem controles remotos), para que a família conversasse, até mesmo esses dias, simplesmente terminaram, tiveram uma última vez… … e eu nem vi.
Eu também não sei quando foi a última vez que a mãe levou “Ki-Suco” para a turma, quando foi que andei na minha bicicleta pela última vez, qual foi o último jogo no campinho, quando eu enterrei pela última vez a lata com as bolinhas de gude, e quando foi que virei adulto para esquecer onde elas estão enterradas.
Hoje, carrego comigo vários pedidos de desculpas impossíveis.
Queria pedir perdão à minha bicicleta, que um dia foi abandonada, esquecida, sem que eu sequer me despedisse e agradecesse por tanto ter suportado e enfrentado as ruas esburacadas, as poças d’água, os tombos… por ter sido tão minha parceira, e simplesmente ter sido algum dia que nem me lembro, abandonada!
Queria pedir perdão para minha lata de “bolitas”, porque algum dia eu a enterrei no pátio, como era o costume da gurizada, e simplesmente eu a deixei lá, sem que jamais fosse crescer uma arvore de bolinhas de gude, sem um mapa para que eu as reencontrasse!
Perdão ao campinho da esquina, de tantos jogos arraigados, campeonatos, tantas alegrias, e um dia eu saí, sem olhar para trás, sem perceber que seria a última vez em que joguei lá.
Perdão ao pai, que tanto fazia questão de nos reunirmos para almoçar, e alguma vez reuni-nos pela última vez sem sequer um discurso, uma homenagem ao último almoço de nós quatro naquela casa, a mesma que um dia viu-o adormecer, apagando-se, então, tão velhinho que estava…
De alguma forma, eu olhei para trás e percebi mil despedidas que não tive. Mil “adeus” que não dei. Vejo que trouxe comigo mil abraços que não foram dados, mil palavras de carinho que não foram ditas, mil gestos de gentileza que desperdicei… porque não notei todas as despedidas que passaram por mim, sutis, discretas, sem alarde (talvez, protegendo meu coração, sem que eu soubesse).
Bem… eu já vivi, certamente, mais da metade da minha vida. E acho que somente agora, eu estou percebendo tudo isso.
Não terei a oportunidade de largar o fardo das vezes que não disse adeus como deveria… mas eu espero que pensar nisso, hoje, faça com que cada vez que eu deixar um amigo, um encontro, ou cada vez que eu simplesmente for dormir depois de um dia bom, eu possa entende-lo… e agradecer… simplesmente, agradecer.
Luís Augusto Menna Barreto
Em 19 de julho de 2025
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