domingo, 20 de maio de 2018

Contículo de Um Milagre

Contículo de Um Milagre

Antes da fama, ele tinha fé. Por algum motivo que ele não soube explicar, lembrara-se disso olhando o desenho de uma lágrima em chamas tatuada na mão, enquanto o avião que levava a banda de rock do momento, da qual ele era o vocalista, voava por entre pesadas nuvens em direção à Capital do Estado do Pará, onde em poucas horas, fariam um show e em seguida rumariam a um festival de Rock na Cidade do Panamá, a 7ª cidade mais competitiva economicamente, da América Latina.
De repente, não muito longe de Belém, o aviso luminoso de apertar o cinto ascendeu e a voz do piloto avisou que enfrentariam uma área de turbulência. Mal deu tempo de o piloto terminar o aviso, o copo de uísque caiu no carpete do jato executivo que há meses era o local onde a banda passava mais tempo. Ele já havia enfrentado turbulências antes, mas aquela, somada às lembranças que rememorara, deixaram-no particularmente apreensivo. Num gesto instintivo, levou a mão ao pescoço, onde durante quase toda a vida usara um escapulário, o qual fora descartado por recomendação do produtor e da diretora de imagem da banda. Com o coração acelerado, o efeito da última carreira cheirada passando e algum álcool na cabeça, tentou lembrar de alguma das orações da infância e não conseguiu. Então, talvez agarrado às lembranças que estava tendo da infância vivida sob a fé ensinada pelos pais, vivida na escola, e na amizade com os Padres da Igreja próxima a sua casa da infância, ele fez uma promessa!
Algum tempo depois, naquele mesmo dia, em uma Igreja de um dos bairros de Belém, a equipe responsável pelas músicas da missa estava, já, reunida no mezanino, acima da entrada cujo único acesso é por meio de uma escada em espiral, que permanece fechada, para que ninguém não autorizado suba. Naquela igreja, a equipe da música não fica aos olhos dos fiéis e, nos momentos de cantar, apenas o som dos instrumentos e vozes dos cantores espalham-se em toda a nave da Igreja.
Pois a equipe, composta de um frade capuchinho que cantava, um leigo de aproximadamente 50 anos que tocava violão e sua filha de 20 anos que tocava um teclado eletrônico, fora surpreendida com um rapaz de capuz, que pedira para cantar as músicas da missa. Enquanto o leigo ficara em silêncio com um ar de interrogação no semblante, o frade cantor aproximou-se e pra explicar que não era permitido subir ao local… mas fora interrompido pela tecladista, que, de olhos vibrantes, pegara no braço do frade e falara-lhe, com alguma empolgação, ao seu ouvido, pedindo que lhe deixasse cantar, e explicando quem seria o rapaz de capuz. Até mesmo o frade já ouvira falar em seu nome. 
— Podem ser estas músicas? — perguntou o rapaz, entregando à equipe um pedaço de papel com uma lista de músicas antigas, mas ainda conhecidas. O frade mostrou-as à equipe e todos concordaram, embora não desse mais sequer tempo de falar com o Padre celebrante para avisa-lo da mudança das músicas.
A igreja não estava lotada naquele domingo à noite, chuvoso, mas havia poucos bancos vazios. Assim que começaram os primeiros acordes, e iniciou-se a marcha de entrada do séquito seguindo a Cruz levada com devoção pelo primeiro dos cinco coroinhas, o Padre estranhou por não ser a música que lhe fora informada, mas reconheceu-a, embora ha muito não mais a ouvisse. Assim que entrou o vocal, quase todos na Igreja repararam. Era diferente. Vibrante. Foi difícil ouvir sem a pele arrepiar, tamanha força e emoção que transbordavam na voz. Alguns mais jovens quase levaram um susto. Poderiam jurar que a voz era a do vocalista daquela banda famosa que nesta noite faria show no Hangar, em Belém! 
Feita a saudação inicial, a benção, e a primeira oração respondida, veio o canto penitencial. Ali, muitos já tinham a certeza de que conheciam aquela voz. E que interpretação! As pessoas na missa parece que podiam sentir lágrimas nos olhos do cantor ao entoar os versos "embora eu me afastasse / e andasse desligado / meu coração cansado / resolveu voltar”.
Nesse momento, contra todas as recomendações, várias cabeças voltavam-se para trás e tentavam olhar o mezanino, embora não fosse possível enxergar quem quer que fosse. 
No canto de glória, a voz por vezes propositadamente grave, porém suave, inundou a Igreja e para desaprovação do Padre celebrante, muitos dos mais jovens sacaram seus celulares e começou uma enxurrada de mensagens de texto e, até mesmo, áudios dos que haviam gravado o final do canto de glória. Só podia ser ele! Muitos dos fiéis eram fãs da banda, não poderiam estar enganados acerca daquela voz! Em poucas horas, a banda tocaria no Hangar! Talvez fosse algo promocional. Era incrível e inacreditável, mas tinha de ser ele, o vocalista de rock mais celebrado do momento! E bem ali, cantando na missa!
Já durante o canto de ofertório, a Igreja começou a ficar lotada. Já não havia nenhum lugar nos bancos e os espaços laterais começavam a ser preenchidos por pessoas em pé, na maioria jovens. O frade cantor teve de descer de modo a evitar que qualquer pessoa vencesse a tentação de subir pela escada em espiral, e postou-no no primeiro degrau da escada, impedindo qualquer acesso, e recomendando silêncio. Mas decidiu que iria fazer uma selfie com o rapaz e pedir que gravasse um “oi" para a irmã adolescente que não seguira os mesmos passos religiosos que ele.
Quando da procissão da comunhão, já era difícil até mesmo entrar na nave da Igreja, nem sentados, nem em pé, nos amplos espaços laterais, cabia mais alguém. Jamais a Igreja estivera cheia assim. As redes sociais estavam inundadas pelos áudios das canções na missa, por imagens do mezanino, sem, contudo, que se pudesse ver o rapaz de capuz que cantava segurando o microfone com as duas mãos, exibindo a mão tatuada com uma lágrima em chamas.
Terminada a procissão da comunhão que, pela quantidade de gente, levara quase quatro vezes o tempo normal, antes que o Padre celebrante levantasse para a benção final, o rapaz começou, à capela, uma canção. E quase todos foram às lágrimas, tamanha dor que a voz transmitia ao cantar os versos finais: “… e, se jamais acreditei / perdoa-me Senhor / Pois hoje eu te encontrei”.
A Igreja inteira, ficou em transe. Poucos olhavam para o altar, a quase totalidade das cabeças voltadas ao mezanino. Os dois músicos, pai e filha foram até o muro do mezanino e foram recebidos por uma avalanche de cliques de fotos e vídeos de celulares e gritos de fãs que esperavam a aparição do rapaz. O Padre celebrante conformou-se em proferir a benção final para um mínimo de pessoas que prestavam atenção, embora jamais a Igreja tenha estado tão cheia. O frade tinha imensa dificuldade de conter as pessoas que se empurravam tentando subir. Havia confusão. 
Quando o frade foi finalmente vencido, quase arrancado dos degraus e os primeiros fãs alcançaram o mezanino, houve decepção. Havia ali, apenas os dois músicos, pai e filha. Estiveram olhando a agitação na nave e, quando se viraram os primeiros fãs da banda já estavam chegando no mezanino. Perguntaram por ele! Onde estava? Todos queriam fotos e vídeos com o astro do Rock.
Não estava lá. Os dois músicos ficaram com uma profunda interrogação? Teria ele saído quando estavam olhando a nave? Mas por onde? Ninguém soube responder. Somente depois de muito tempo, os fãs convenceram-se de que ele não estava mais lá. Restava, então, correr ao Hangar para ver o show, cujos ingressos já se haviam há meses esgotado.
Naquela noite, horas mais tarde, uma multidão gritava impaciente no Hangar, frente ao palco vazio, apenas com os instrumentos da banda, aguardando a entrada que era sempre espetacular. O atraso passava do comum para tais eventos.
Até que um homem sobe ao palco, com um semblante tenso. Ao mesmo tempo, os noticiários espalhavam no mundo a mesma notícia:
“É com profundo pesar que informamos a queda do jato comercial que trazia a banda para Belém. O piloto conseguiu um pouso forçado em uma fazenda, salvando quase todos os passageiros e tripulantes que tiveram apenas ferimentos leves. Infelizmente, houve uma morte. A do vocalista.”

Por Luís Augusto Menna Barreto


18 comentários:

  1. Sem palavras. Lindo. Sempre há tempo para conversão. O que é breve para alguns as vezes chega tarde para outros.

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    1. Talvez aquele momento dele, no avião, tenha sido um sincero reencontro com Deus... e ele tenha recebido a chance de pagar a promessa que havia feito...
      Um grande abraço, amigão!

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  2. De forma sobrenatural, um espírito arrependido, teve a chance de uma aproximação com Deus. Lindo o contículo, parabéns.

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    1. Super obrigado!
      Foi minha primeira experiência num texto sobrenatural! Mas a idéia veio muito forte!
      Como era algo novo preferi situar a história num ambiente familiar para mim: a cidade onde moro, a igreja que frequento...!!!
      Que super bom que gostaste!!!!!!

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  3. Jesus! Que isso?!!!
    Não sei o que dizer...
    Emocionada...é pouco.
    Só me resta refletir...e muito!

    Obrigada por esse chacoalhão...!

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    1. Uau!!!
      É uma surpresa muito boa receber esses comentários, nessa primeira experiência no gênero!!!
      Tive essa ideia como há 3 dias, e simplesmente não tive oportunidade de sentar e escrever! Fiquei com medo de perdê-la, mas hoje consegui ocasião de escrever, e tratei de desenvolve-la...!
      Muito obrigado mesmo!!!!

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  4. Nestes teus dois contos, tu inauguras um novo estilo de contar: menos pretensioso, porém muito mais atraente.

    Lembras do tal "grau zero prático", ou seja, a quebra da expectativa? Ele, nestes contos de agora, tu o colocastes nos lugares e nos momentos certos.

    E sabes de uma coisa? Tu andas merecendo uns PARABÉNS maiúculos e um abraço forte, capaz de romper os mais de dois mil quilômetros que nos separam.

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    1. Mais uma vez, fico sem saber o que dizer!
      Acho que tenho uma ideia sobre o que queres dizer com “menos pretensioso”...
      De fato, a duas últimas ideias era realmente contar de forma simples e curta!

      Talvez a diferença (que tenha feito toda a diferença) é que nas tentativas pretensiosas, eu tinha só a vontade de escrever sem ter a ideia definida... nesses dois, a ideia veio pronta e inteira, sem eu ter de procurá-la!

      Mas de tudo, o melhor é ganhar o abraço!!!!!!!!!!!!!!!

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  5. Você me surpreende com cada novo estilo
    que nos apresenta!!!!!
    Descobri que você definitivamente não conhece limites!!! Isso é maravilhoso!
    Desejo-te os mais altos voos!!!!!

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    1. Bah... não sei o que dizer!!!! De novo!!!!!!
      Fico feliz demais!!!!
      Tive um pequeno surto de inspiração no banho, e o conto ficou incubado dois dias, até que hoje pela manhã consegui escrever!!!

      Hoje, no carro no trajeto de Santo Antônio da Patrilha para Porto Alegre, tive um fio de inspiracao de outro, quando minha mãe atendeu o telefone!
      Não sei explicar como acontece... simplesmente acontece...!
      .... mil obrigados... vira outro essa semana!!!!

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  6. Muito bom, surpreende e emocionante final...

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    1. Grande Roberto!!! Que legal que tu gostaste!!!!!!!!!
      Um baita abraço, daqueles com saudade da Ilha!!!!!

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  7. Conticulo?!? Bah!! Quanta modéstia...
    Baita novelão !! Dava uns cinco capítulos... Pelo menos.
    Ia perguntar da inspiração, da pesquisa... Mas já entendi.
    Eu chamaria na minha crítica é debochada intervenção de: um "contão"!

    Mas credo! Não gosto de espíritos...

    Mas disse Ana Isabel, PARABÉNS!

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    1. Ah, guria!!!! Obrigado!!!!
      Primeiro achei que escreveria em menos de uma página! Três parágrafos clássicos: uma curta introdução, um parágrafo maior com a história, e o parágrafo final com arremate.... depois, comecei a imaginar um conto maior, com uns 4 ou 5 capítulos.... por fim, decidi apenas ir escrevendo e ver o tamanho! Como ficou relativamente curto, decidi pública-lo assim!!
      Super obrigado!!!!!

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  8. Lindo!!Que sensibilidade abençoada ao falar do amor de Deus, Magnifico!!antes da fama ele tinha fé, tornou se famoso foi seduzido pelas tentações do sucesso e afastou-se de Deus e antes de morrer fez a conversão com Deus. Bela reflexão para todos nós!!

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    1. Bem vinda!!!!!!!
      Fico imensamente feliz de tu haveres gostado!!!!!
      Os caminhos do Senhor nem sempre são compreendidos......!!!! Mas é importante que O aceitemos pela FÉ!!

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    2. Lindo demais!!!tudo parou à minha volta nesses momentos
      Em que saboreei cada palavra deste conto!!
      Uma mistura do real e do sobrenatural .
      Do músico famoso que em sua trajetória perde sua fé, levado
      Por bebidas,drogas etc...
      E no momento crucial onde sente sua vida em risco aproxima_se de Deus e faz uma promessa....
      Seu espírito vem cumprir a promessa em uma Igreja da forma mais linda e surpreendente redimindo assim suas culpas e unindo_se a Deus.
      Quando mais leio mais admiro suas obras
      Simplesmente maravilhoso
      Esse conto, pois chamá_lo de contículo ,não condiz com a qualidade do mesmo !!!!

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    3. Eu gostei muito de escrever esse conto e sou grato por tê-lo escrito!!!!
      Eu o escrevi em Santo Antônio da Patrulha, embora o Conto passe-se em Belém, na igreja dos Capuchinhos!!!!
      Super obrigado por tua gentileza!!!!

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