Contículo de Uma Tragédia Alheia
Sentiu o sangue gelar quando viu os sapatos brancos entrando pela porta daquela lanchonete/bar insalubre.
Ele detestava o barulho e o cheiro de fritura no ar, misturado ao cheiro e fumaça de cigarros que começava pelo dono do lugar, um gordo sem asseio que passava o dia fumando e anotando jogo do bicho, o tempo inteiro com um engordurado rádio de pilha ligado em uma frequência AM.
Ele lavava pratos, irritado com o cheiro da gordura e fumaça. Irritado com a mistura de sons do rádio engordurado, TV engordurada pendendo no suporte da parede, murmúrios dos clientes de aspectos tão desprezíveis e dos hambúrgueres sendo amassados na chapa por aquela mulher tão silenciosa e estranha que se limitava a faze-los o dia inteiro sem dizer uma palavra. A chuva lá fora emprestava um aspecto ainda mais lúgubre, tonalizando de escuro, cinza e pingos, a única janela do local, e aumentava os ruídos em sua mente já tão preocupada com a notícia que recebera de sua namorada, única namorada que tivera na vida, que conhecera há quatro meses, sem família, sem parentes, sem passado saudável: iria ser pai! Foi o único motivo que o fez aceitar o emprego naquele lugar miserável; mas em nenhum outro lugar aceitariam um garoto de 18 anos recém feitos, que não sabia nada além de lavar os pratos dos padres e das orações que aprendera no seminário.
Então, ele viu os sapatos brancos entrando. Sabia que poderia ve-los a qualquer momento. Há dois dias ela vinha sentindo dores fortes e sangrando muito. Por isso chamaram o médico de sapatos brancos que decidiu que ela deveria ser internada. Agora, os sapatos brancos estavam ali, vindo em sua direção. Ele dera ao médico de sapatos brancos o endereço de onde trabalhava, porque era o único endereço que tinha, desde que a menina fora internada e ele tivera de desocupar a pensão porque não teria como pagar o médico e a pensão.
Os sapatos brancos dirigiram-se lentamente, quase se arrastando, até o balcão, até que ele não os enxergasse mais, mas recusava-se a olhar mais acima, recusava-se a olhar nos olhos do médico de sapatos brancos. Concentrou-se nos pratos branco que lavava, esperando ouvir a voz do homem, como quem espera que o carrasco desfira o golpe do machado brandido no ar. Quando ouviu a voz do médico de sapatos brancos, não era ainda a sentença, e sentiu-se mais apreensivo. O médico pediu um duplo, com uma voz cujo timbre parecia carregar uma infinita melancolia. Ele lavava os pratos brancos. não ousava sequer se virar.
Dez minutos. Dois duplos. Vinte minutos. Quando o médico de sapatos brancos pediu o terceiro duplo, ele não aguentou mais. Largou o prato branco que lavava, secou as mãos em um pano que havia sido branco um dia. Virou-se lentamente…
Naquele exato momento, não viu o rosto derrotado do médico de sapatos brancos. Não notou as olheiras de mais de quarenta horas insones lutando por uma vida, não conseguiu sequer ver as lágrimas que o próprio médico beberia de volta por caírem no copo de uísque. Ele via apenas o sorriso da menina grávida que entrava devagar pela porta do bar imundo. Pulou o balcão em um ímpeto e com a velocidade do amor, do alívio, do sonho, estava a abraça-la!
Um instante depois, lembrou-se do médico de sapatos brancos. Colocou a mão em seu ombro e interrogou-o com o olhar.
O médico de sapatos brancos olhou pra ele, e seu rosto era indecifrável entre um sorriso forçado e uma dor lancinante que tentava perscrutar uma ironia ferina do destino que lhe era impossível entender. E neste misto de emoções, quase em um espasmo último, saiu-lhe o fio de voz, seguido de frêmitos soluços:
— Minha esposa morreu…
O rapaz pediu um duplo.
Por Luís Augusto Menna Barreto
Uma tragédia do cotidiano de um homem cujo papel e salvar vidas.
ResponderExcluir.... mostrando que somos todos iguais... e por mais que pensemos que algo está ruim, a vida, especialmente de quem amamos, é o que nos importa!!!
ExcluirEnquanto uns sorriem...outros choram.
ResponderExcluirEnquanto uns nascem...outros morrem.
É a vida...
Devemos celebrar e comemorar os bons momentos sempre que tivermos oportunidades.
“Para tudo há um tempo debaixo dos céus”!
ExcluirOs tempos são, entretanto, diferentes para cada um de nós: tempo descobrir de uns... tempo de chorar de outros...:!!!
Obrigado, mais uma vez!!!!
Retrato do cotidiano!!E a vida não perdoa!
ResponderExcluirPerdoemo-la nós, e perdoemos a nós mesmos, então...!!!
ExcluirTão bom ter-te de volta por aqui!!!!!!!!!!
É muito bom estar aqui!!
Excluir☺️☺️ Sê sempre bem vinda!!!!!
ExcluirEssa é a vida como ela é. Quem salva vidas e a traz de volta, infelizmente, como todos nós, um dia também perde.
ResponderExcluirTriste, mas verdadeiro.
Às vezes, a vida imita a arte....
Excluir.... mas que essas tragedias sejam só contículos!!!!
Um turbilhão de sentimentos descrito no contículo, preocupação de um, tristeza de outro. Saúde e doença,morte e vida... retrato da realidade. Lindo o pequeno conto , como sempre. Parabéns poeta.
ResponderExcluirAh.... como é bom ler teu comentário assim!
ExcluirEsse contículo foi construído com todo esse carinho... a ideia era justamente essa... buscar varios nuances, dirigir a atenção pra um lado.... e trazer uma guinada na visao final....!!!!
Muito bom o teu conto. Muito bom mesmo.
ResponderExcluirMeus parabéns e meu abraço!
Seria tão bom se o que escreves estivesse em um livro... Aliás , em dois. Um de crônicas, que já está escrito e, parcialmente, revisado; e outro de contos que pode ser, aos poucos, construído.
Ah! Não vou falar mais isso, não. Tu não me levas a sério. Não! Na verdade, acho que tu não te levas a sério.
Mas é tão bom, TÃO BOM te ler em teus romances* ou teus comentários!!
ExcluirEu TE levo muito a sério! Mesmo!!!
Talvez, de fato, eu não ME leve muito a sério!! Mas acho, mesmo, que é muito mais uma aversão completa a qualquer coisa administrativa.... eu sei: teria mesmo um monte de gente que me ajudaria.... mas só o fato de EU ter de separar algo, meio que escolher, ordenar, catalogar..... nossa: já fico com pipocas vermelhas nos braços!!!!!!!
Mas de forma alguma está fora dos planos uma edição!!!
Quanto a este contículo, que super que gostaste....! Escrevi com algum receio, porque é um caminho novo, numa linha experimental....!!
Mas fico realmente feliz que tenhas achado bom!!!!!!
Ameii!
ResponderExcluirConseguiste reunir neste pequeno conto vários sentimentos!! Nos fez curiosos e apreensivos pelo desfecho, prendendo o leitor de forma encantadora...
É a vida como ela é, dependemos da boa, perfeita e agradável vontade de Deus!!
Abs
Sempre!!! Sempre dependemos!!!!!!!
ExcluirQue surpresa maravilhosa e que felicidade saber que essas linhas chegam ao Atlântico Norte, em algum lugar no país de 50 estados!!!
Que seja, pois, a vontade de Deus, manter sempre teu sorriso e dos teus três maravilhosos pequenos!!!! Que a VIDA sorris-te por estas plagas nesta aventura de vida nova!!!!
Belo e reflexivo!!!Não espere o definitivo bater na sua porta, nós não conhecemos a vida e não sabemos o amanhã, viver é fazer a dinâmica da ultima ceia todos os dias. Vamos amar a vida!Vamos amar as pessoas antes que elas vão embora!
ResponderExcluirAmar.... como o novo mandamento que veio pra revogar todas as Leis: amar a Deus sobre todas as coisas, e o próximo como a ti mesmo!!!!
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