terça-feira, 16 de dezembro de 2025

A Marmita, a Confissão e o Padre




Foi o Mariposa quem notou: a Marmita estava indo até o orelhão. Ficou curioso.

Ela havia falado alguma coisa quando passou pelo Mochila, deitado na rede atada no coreto da praça. Depois, abanou para a Telegrama que estava na porta da agência do Correio. Antes, havia falado algum gracejo para o Chaminé, enfermeiro que estava fumando na porta do hospital. Para o Mariposa, que estava tomando uma cervejinha no açougue do Retalho, ela abanou. Foi daí que ele ficou acompanhando com o olhar aquela morena fogosa… e notou que ela foi para o orelhão.

Saiu debaixo da cobertura de telha que protegia a mesa de bilhar na calçada, na frente do açougue e foi até a rua, para ver melhor! Parecia que a Marmita havia colocado uma ficha no orelhão. Primeira pergunta: ficha da onde, que a única que se conhecia na cidade era do Mesa Branca?! E o que a Marmita faria no orelhão estragado?

Ela fica um instante com o fone no ouvido e, de repente: largou o fone e começou a abanar-se como que querendo falar e sem emitir nenhum som. O Mariposa foi acudir. Copo na mão, caminhou rápido até a Marmita:

— Que foi, já, pequena?

Ela gesticulava, apontava para a boca e não falava! Ele ofereceu um pouco da cerveja gelada que trazia no copo. Na falta de água com açúcar, pensou…! 

A Marmita aceitou, tomou o copo todo, devolveu para o Mariposa, mas continuou sem falar! Logo chegaram o Manobra e o Goela. A Tutela, que estava na porta do Fórum, também foi. Nada da Marmita falar! Só gesticulava, apontava para o orelhão e para a boca. Depois, colocou as duas mãos para a frente, como quem pede calma, e fez os seguintes sinais: apontou para a boca, depois uniu as duas mãos como se fosse rezar, e apontou para a Igreja. A Tutela colocou o braço por cima do ombro da Marmita, como quem vai ampara-la e começaram a andar em direção à Igreja. De repente a Marmita parou, voltou uns passos e lembrou-se de colocar o fone no gancho. Ouviu o barulho da ficha sendo devolvida, colocou dois dedos no compartimento e resgatou a ficha. 

Nesse momento, já havia quase uma dezena de pessoas em volta.

Foram todos em uma pequena procissão em direção à Igreja. Marmita foi direto para o confessionário. A Tutela foi até a sacristia para chamar o Padre. Lá estava apenas o Tinho, neto da D. Mocinha, coroinha prometido à vida de celibato e de sacerdócio em promessa feita pela avó, por conta do menino ter nascido com vida, quando a mãe morreu no parto, dentro do barco. Muitas mulheres tem medo de simplesmente falar com Tinho, porque D. Mocinha faz confusão com qualquer uma que fale com o neto “Santo”, crente que é o diabo em forma de mulher querendo desencaminhar o moleque da vida de santidade a que ela prometeu. A Tutela perguntou da porta mesmo e o Tinho disse que o Padre talvez estivesse no bar do S. Nonô.

A Tutela foi atrás. Quanto isso, a notícia ia espalhando e começaram a chegar mais pessoas na Igreja comentando o acontecido e querendo saber mais notícias. 

— Que história é essa Tutela? — quis saber o Padre.

— Tudo que sei é isso, Padre: ela tá lá, mudinha da silva, ajoelhada no confessionário!

— Mas essa aí nunca se confessou! 

— Disso não sei. Ela foi no Orelhão e saiu muda, veio ligeiro pra Igreja e quer se confessar!

O Padre olhou o S. Nonô, que apenas disse “iiiiiiiiiiiixi" e continuou passando o pano no balcão. Mais por curiosidade do que por intenção de salvar uma alma, o Padre foi com a Tutela para a Igreja. Admirou-se ao entrar, porque havia mais de quinze pessoas sentadas, olhando para o confessionário, onde estava a Marmita. 

Estranhando aquilo, entrou no confessionário.

— Queres confessar, minha filha?

Silêncio.

— Você precisa falar seus pecados para eu poder dar-lhe absolvição.

Silêncio. O Padre tentou olhar pelos furinhos. Já não gostou muito de ver a Marmita confesso sem véu na cabeça, mas vá-la. A marmita, vendo o olhar do Padre, fez-lhe sinal apontando a boca e fazendo que “não" com o dedo…

“Que estranho, pensou o Padre… não pode ser… outro caso de mudice?” 

Na dúvida, o Padre decidiu fazer o mesmo que fizera com o Mesa Branca afinal, se o havia confessado, pegaria mal não aceitar a confissão da Marmita.

— Certo, minha filha… pense, então, nos seus pecados…

Bem, o Padre havia repetido o que fizera com o Mesa Branca… e não esperava o que aconteceu com a Marmita. Com o Mesa Branca, levou poucos minutos, muito sério, pensando e pronto! Além disso, sempre fora devoto, frequentava a Igreja, cantava no coral… mas a Marmita… 

… bem… ela levou a sério e cumpriu o que o Padre mandou: começar a pensar nos pecados!

Primeiro ela fechou os olhos… até aí, tudo bem. Mas à medida que começou a lembrar dos pecados, seguiu-se uma série de reações: lembrando de uns, sorria de olhos fechados… para outros, suspirava! Em alguns, chegou deixar escapar uns gemidos… 

O Padre depois de alguns minutos, interrompeu-a:

— Vais demorar, minha filha?

Ela levantou a mão com a palma para cima e começou a fazer movimentos de unir e separar todos os dedos, como quem diz: "ainda tem vários…”

O Botóquis, que era um dos que havia ido até a Igreja e, ciente dos próprios pecados*, sentara bem perto do confessionário, escutou o Padre dizer “pense nos seus pecados”, e logo levantou dali…

Demorou uns vinte minutos e o Botóquis entrou novamente na Igreja em um estranho silêncio e, em vez de sentar-se, postou-se em pé, mais ou menos um metro atrás da Marmita, que ainda sorria pensando nos pecados, ajoelhada no confessionário.

O Padre já nem impaciência demonstrava, observando um silêncio quase incomum para confissões. As pessoas aos poucos, dado que não se sabia o tempo que a Marmita levaria em sua confissão, começaram a sair da Igreja. Porém, na medida que os bancos esvaziavam, a fila de confissões aumentava significativamente: atrás do Botóquis, entrou a Pipoca (Salgada), que havia saído algum tempo depois do Botóquis. Depois veio o Cara de Cuspe, a Mimosa, o vereador Relege, a Tonha Puxa Ferro, o Pena de Galinha… a fila não parava de crescer… em um silêncio como nunca se viu! 

Lá fora, duas esquinas depois, enquanto o Mesa branca dormia um sono pesado na rede, a Pipoca (Doce) ia recebendo presentes: um litro de açaí aqui, um saco de farinha ali, camarão, mandioca… 

… e a fila no orelhão aumentando, com a ficha do Meu Branca passando de mão em mão, repetindo-se em ligações que nunca se completavam!


*Para saber dos pecados do Botóquis, vide a crônica: “Os Casos da Tonha, do Botóquis e da D. Mocinha

Se você gostou dessa história e quer ver como tudo começou, leia a crônica: "O Orelhão, o Mesa Branca e o Padre"

Se você ainda gostou, veja a parte dois: "A Confissão do Mudo, o Padre e a Marmita"


Luís Augusto Menna Barreto

15.12.2027

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