terça-feira, 5 de julho de 2016

crônica - A Liberdade de Odorico, Conan e Não Me Lembro

A Liberdade de Odorico, Conân e Não Me Lembro


Originalmente  publicado no antigo blog
"Menna Comentários", precursor deste.
Data da postagem original: 1º.03.2016.
Comentários na postagem original:  11.
Visualizações até ser retirado:  509.

Essa aconteceu em Curralinho (que eu só chamava de “Pequeno Curral), no Arquipélago do Marajó!
Tenho meus motivos para não gostar de ficar falando o nome da cidade o tempo todo. Acontece que sou gaúcho (como vim parar no Pará - com o perdão do trocadilho - é outra história e um dia eu conto!). Mas, enfim… já viu, né?! Juiz gaúcho, em Curralinho, não precisa nem esforço pra fazer a piada! E como nenhuma situação é ruim o bastante que um amigo perspicaz não possa fazer ficar pior, no Arquipélago do Marajó existe a comarca de Ponta de Pedras! Isso mesmo! Bem, eu me limito a dar estas informações… quaisquer outras ilações, fica por conta de vocês!
Pois eu passei dois anos em “Pequeno Curral” (Curralinho) e foram dois anos ótimos. Como em toda a cidade que fica na beira do rio, há problemas de drogas, prostituição infantil (as meninas “balseiras”, que vão de casco a remo até as balsas que passam na frente da cidade), e um ou outro furto. Já homicídio, é muito pequeno o índice. Ocorre uma briga ou outra de faca, no final de alguma festa, e, se o Promotor precisa de produção, uma furada de faca inocente no ombro, poderia ser denunciada como tentativa de homicídio! Não era o caso de “Pequeno Curral” naquela época que passei por lá, em 2006 e 2007. O promotor era um sujeito muito tranqüilo. Daí, que nos dois anos que eu estive lá, teve apenas uma denúncia por tentativa de homicídio.
O Forum é o mesmo até hoje: um prédio antigo, na beira do rio, com salas amplas e o pé direito bem alto! No fim do corredor há o salão do júri… pois é: o salão do júri! 
Passei meus dois anos trabalhando lá, sentindo-me uma espécie de “Odorico Paraguassu”. Lembram dele, do romance de Jorge Amado*, brilhantemente vivido por Paulo Gracindo em “O Bem-Amado”? Era o prefeito que queria inaugurar um cemitério e ninguém morria!
Pois eu vivia querendo fazer um júri e ninguém matava. Nem tentava matar! Poxa, nem uma facadinha de leve, que passasse perto de algum órgão vital, nadinhas! E o salão do júri ia pegando poeira…
Pois na falta de homicídio, de vez em quando tinha uma coisa ou outra para movimentar audiências criminais.
A cidade não tinha presídio e, naquele tempo, os presos condenados eram deslocados para cumprir pena em Belém. Mas quando alguém cometia um crime e era preso, era levado para a delegacia local que tinha uma cela relativamente boa, e ficava ali aguardando o desenrolar do processo.
Pois eis que certa feita, foram presos “Odorico”, “Conân" e não me lembro. Eram três. Não, claro que o apelido do terceiro eu realmente não me lembro! Não esperavam que alguém chamasse o cara de “Não Me Lembro”, né?!
Segundo o inquérito e a denúncia, os três rapazes teriam cometido um furto em um barco, tentado levar o motor e, como não conseguiram, levaram alguns pertences da tripulação. Foram pegos e levados para o xadrez da delegacia.
Descobri depois, que, coincidentemente, o apelido de um era “Odorico”, porque vivia falando que fazia e acontecia, que com ele, se pisasse no calo ele matava e coisa e tal, mas a verdade é que nascera e fora criado em “Pequeno Curral” e nunca havia nem brigado, quanto mais tentado matar alguém. Daí o apelido “Odorico”, por conta da história do cemitério que ninguém morria pra inaugurar. O cara se diz “valente" mas nunca tinha brigado.
O outro, o apelido era “Conân” (assim mesmo, com a sílaba tônica no final, palavra forçadamente oxítona), em uma alusão “ao avesso” ao Conan (paroxítona) das histórias em quadrinhos e filmes! O mal acabado era um “pau de virar tripa”, pele e osso, do tipo que dava a impressão que um vento mais forte levaria!  
Como o terceiro não tinha nenhum apelido interessante, não lembro mais!
Pois os três estavam presos e eu havia marcado a audiência. Feito o pregão, ninguém apareceu! A auxiliar de secretaria que datilografava (isso mesmo: DATILOGRAFAVA, em pleno 2005!) a audiência e fazia o pregão, avisou que não veio ninguém! 
“Barbaridade"! (A versão paraense de “barbaridade” seria “éééégua!”, assim, com vários “éééé”)!
Na mesma hora, mandei ligar para a delegacia e trazerem os presos imediatamente. A delegacia ficava a uns duzentos metros do fórum. A auxiliar ligou, falou com o “Fechadura”, um servidor da prefeitura que cuidava da delegacia porque o delegado atendia várias cidades ao mesmo tempo, e disse que o "Fechadura" estava sozinho na delegacia e já faria os presos chegarem. Dali uns dez minutos, de fato, a auxiliar anunciou que “Odorico, “Conân” e não me lembro, chegaram! 
Entraram os três sem algemas e sentaram-se. Não entrou nenhum policial com eles, mas como eles já estavam ali dentro, não quis perguntar por nenhum policial e descobrir que não tinha nenhum… achei que podia ser pior!
Realizada a audiência, falei para a auxiliar: 
“Pode mandar os agentes policiais entrarem para levar os réus”.
(Esses três pontinhos na linha de cima significam que ela olhou para um lado e para o outro, depois disse):
"Não veio ninguém com eles, Doutor.”
"Ãnh???"
Ela olha de novo para o Promotor e para a Advogada da prefeitura que fazia as vezes de Defensora Pública, e repete com voz mais baixa:
“Não veio ninguém com eles, Doutor”.
Olhei para os presos:
“Vocês vieram sozinhos?”
Não me lembro, foi quem respondeu:
“Viemos, doutor. O 'Fechadura' tá sozinho lá e tem um 'Maria da Penha' (caso de violência doméstica) que ele tá atendendo e disse pra gente vir pra audiência.”
(Esses três pontinhos são o silêncio meu!, seguido de: “aaah”, até achar o que dizer):
“Então tá. Também estou sem tempo e tem outra audiência. Vocês sabem o caminho, não é? Voltem pra lá e em dez minutos vou ligar pro ‘'Fechadura' pra saber se vocês chegaram.”
O Promotor e a Advogada não disseram nada. Aparentemente, eles também estavam sem nenhuma sugestão melhor!
Os três saíram.
Dez minutos depois, eu mesmo liguei:
“‘Fechadura’, o “Odorico”, “Conân” e não me lembro (no dia eu sabia até o nome de batismo do preso; hoje que não me lembro mais) já estão aí?”
“Já, doutor. Já tranquei os três na cela. Desculpa, doutor, mas o Bastião ficou porre e bateu na Pequena de novo e tá uma confusão aqui.”
(Agora os três pontinhos é só para encerrar o dialogo e falar como terminou a história, mesmo!)
Naquele mesmo dia, a advogada pediu a liberdade, o Ministério Público foi favorável e  os três foram soltos.


Por Luís Augusto Menna Barreto

*O Bem Amado não é de Jorge Amado. É de Dias Gomes, lembra-me a escritora Ana Isabel Rocha Macedo! E não é que ela está certa?! 
Pois não sei o que me deu na hora, que eu estava falando em Odorico Paraguassu, mas pensando em "Tieta do Agreste"! Não sei por que fiz a confusão mas eu a fiz!!!!!!
Por qualquer coisa que não sei explicar, não quis mexer na crônica, apenas colocar essa ressalva!
Mil obrigados, escritora!






17 comentários:

  1. Quantas histórias,caro amigo!!!
    A gente lê e se envolve tanto na narrativa que imaginamos tudo em riqueza de detalhes...!!!!
    Como deve ter ficado a expressão deste nobre juiz ao ver que os três"réus" estavam sem acompanhamento policial....rsrsrs....
    Muito bom ver essas tuas"aventuras"(não deixa de ser)...
    Ah!!!Apoiado..."Pequeno curral"soa mais bonitinho tá???
    Muito bom esse bom humor nesse finalzinho de tarde...

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    1. E foi só no finalzinho da tarde que eu consegui um tempo para postar... Hoje seria uma crônica inédita, mas absolutamente não consegui tempo...
      Daí, republiquei esta do blog antigo... mas também me diverti muito com esta!!

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  2. Quanta inocência desses delinquentes. Quanto respeito à autoridade. Ah...quem dera ainda fosse assim.

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    1. Por incrível que pareça, em um ou outro lugar, ainda encontramos coisas assim..!
      Foi uma surpresa!

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  3. Menna,perdoe-me, mas não dá para não rir...imagino só sua expressão quando disse "Ãnh???" Por pior que fossem os três elementos, eram corretos concorda, rs voltaram direitinho para a cadeia. Ohhh Menna, você tem histórias incríveis, esta de "Pequeno Curral" ou Curralinho, é demais! Boa noite!!!

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    1. Tive excelentes momentos por lá e muitas histórias... espero poder continuar achando tempo para conta-las por aqui!!!

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  4. Você tem razão Thais, na cidade da minha infância os presos eram responsáveis pela limpeza da delegacia, capinavam o quintal e ajudavam na limpeza das ruas sem nenhum problema. Pois eles eram da cidade conhecidos nossos e o "crime" de maior incidência era bebedeira e roubo de galinhas. Como éramos felizes. Sem criar polêmicas acho que pioramos em humanidades em nossas relações. Amigo adoro suas crônicas são muito sensíveis e gosto da moral da história.

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    1. Ainda temos uma ou outra cidade assim...
      Acho que a violência está, sim crescendo muito... mas ainda encontramos, em lugares como a deliciosa cidade de Bagre, crimes de brigas, e prisões que curam porres...!!!!

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  5. Caro Menna, boa noite. De todos os "apelidos" que tenho acompanhado o "não me lembro" foi o melhor! Gostei demais desse tipo... fala mais dele!

    Saudações!

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    1. pois Sedrick, também eu aprecio demais os apelidos e suas histórias!
      Por vezes, é do apelido que nasce a crônica inteira!

      ... por falar nisso: andavam te procurando pela Noite Nua.... por onde andas...???

      www.noitenua.blogspot.com.br

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  6. "Ãnh???"
    Rsrsrsrs
    Eu tiraria meu chapeu, se tivesse, pra esses moradores da ilha, pois sem eles, não teríamos essas histórias maravilhosas... com tantos risos... E parabéns a você, poeta, que escreve dessa forma hilária e nos tira tão boas gargalhadas...👏👏👏👏👏👏👏

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    1. Acho que em todos os Estados, se formos aos seus interiores, às suas raízes, teremos maravilhosas histórias.....
      ... mas que o maravilhosos povo marajoara tem-me gratamente surpreendido, isso não há dúvidas...!!!!

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  7. Eles mereceram ser soltos pela honestidade de ir e vir sozinhos da delegacia...muito boa e engraçada crônica....Parabéns amigo....

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    1. Foi o que pensei!
      Se os meliantes "prendem-se" sozinhos, tem a medida de suas próprias culpas... que aguardem o julgamento em liberdade!!!!!!

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  8. Não me surpreende que estejamos as gargalhadas!

    Tua escrita é sempre rica nos detalhes, sensível, cheio de gentilezas.

    Até!

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    1. Até..... volte sempre....!!!!!!!!!!!!
      Bora visitar o povo marajoara...!!!!!

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  9. Kskkskskskks kskkskskskks Éguaaaaaaaa éeeeee diferente de Portel em Dr...... Em fim cada cidade tem suas peculiaridades, e aqui em Breves fico feliz com seu retorno, seja muito bem vindo 🌹🙌👏👏👏👏 colocar o município em ordem 🙌

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