Reflexo
####Capítulo 2
— Você está bem?
— Estou sim. Já vai passar. Apenas me engasguei.
— Você anda se engasgando muito ultimamente.
O Val sempre se preocupa comigo. Ele é o único homem com quem eu consigo falar alguma coisa sem sentir raiva ou nojo. Ele nunca toca em mim. Ele já viu várias vezes eu ter acessos de raiva quando algum homem toca em mim. O problema é que sou garçonete. Sempre fui. Nem sei se eu sei fazer alguma outra coisa. E nos restaurantes em que eu trabalho, sempre tem algum freguês engraçadinho que não se contenta só em passar uma cantada, mas quer tocar na gente.
Do último restaurante eu fui demitida quando um freguês pegou no meu braço logo depois que eu passei pela mesa dele. Foi instintivo: eu peguei uma faca e joguei a bandeja com os pratos todos em cima dele e eu o ameacei com a faca. Foi sem pensar. Instintivo mesmo. Mas fui pra rua naquele dia mesmo.
Do outro restaurante, eu fui demitida depois de virar as garrafas de cerveja que estavam na mesa de um outro freguês. Eu achei que um homem ia tocar em meu braço e quase dei um pulo. Mas bati na mesa de outros fregueses e as garrafas de cerveja caíram. Uma quebrou no chão, outra, derramou em cima do cliente. E eu?: Rua!
Não posso continuar sendo demitida assim. É a terceira cidade desde que eu saí da casa dos meus pais. A segunda cidade desde que minha filha nasceu. Na última, eu já era conhecida como a “garçonete doida”. Mas já não tem muitos restaurantes pra eu trabalhar por aqui. Meu patrão atual já disse que essa é a ultima chance.
Eu sei que tenho que controlar isso. Mas é mais forte que eu. Desde que … desde _aquilo_, enfim, simplesmente não consigo que nenhum homem me toque. Até com meu pai tive problemas… bem, acho que _até_ não é bem a palavra. Acho que _principalmente_ com ele tive problema. Pelo menos ajudou a decisão de ir embora!
Eu lembro dele gritando:
— Também, você insiste nesse emprego de merda!
Eu ainda estava tremendo. Estava tomando banho há umas duas horas. Mas ele tava ali, do outro lado da porta do banheiro, gritando:
— … parece que você queria que acontecesse isso! Queria! Vai ver é alguém que você atendeu mal nesse seu emprego de merda!
Eu sempre discutia muito com ele. Mas naquele dia, eu não consegui dizer anda. Eu só queria poder tomar banho…
Eu ouvia a mãe tentando acalmar ele, e ouvi quando ele deve ter batido nela. Mas eu não consegui reagir. Precisava me limpar. Mas eu não conseguia. Eu me sentia imunda. Sentia em mim um cheiro que não era meu. E eu só pensava em ser eu de novo, eu queria que o sabão e a espuma lavassem o nojo, que a dor sumisse pelo ralo…
Eu me esfreguei por horas, e não adiantava. E eu ouvia do outro lado da porta:
— Isso foi pra você aprender a me ouvir! E agora? Se alguém ficar sabendo? O que vai ser de mim? Vou ficar conhecido como “o pai da estuprada”! A culpa é sua. Sua.
Quando eu saí do banheiro, ele ainda estava na porta gritando. Como eu tentei apenas passar por ele, ele me segurou pelo braço. Ali foi a primeira vez. Foi instintivo. EU dei um pulo assustada e dei um tapa no braço dele. Ele me olhou com ódio. Bateu tão forte no meu rosto, que por um segundo eu esqueci a outra dor que me consumia por dentro. A mãe gritou pra ele e eu vi quando ele bateu nela também.
— Vagabunda! — ele se virou pra mãe: — tá vendo o que você fez? Você criou uma vagabunda!
Isso foi quatro anos atrás. Mas eu ainda me apavoro de andar à noite. Agora, só aceito trabalhos de dia, então, é mais difícil ainda. E é difícil também, eu ficar longe da Aurora. Ela tá com três anos. E é sempre muito difícil pra mim, ficar longe dela. Mas não tem outro jeito, eu tenho que trabalhar.
Aqui no trabalho, o Val é o único homem com quem eu converso. Na verdade, a única pessoa com quem eu converso. Acho que o Val é meu único amigo. EU sei que ele quer ser muito mais do que isso. Dá pra ver nos olhos dele. Mas eu não consigo. Simplesmente, não consigo. Eu não sei até quando ele vai esperar por mim. Até quando ele vai ter paciência. Mas eu simplesmente não posso.
E não é só por causa do meu medo de ser tocada. Tem muito mais. Mas eu nunca vou poder dizer isso pra ele.
(… continua)…
Luís Augusto Menna Barreto
24.6.2019
É difícil né Poeta?? Eu me emocionei sabia? Eu não consigo mensurar essa sensação.É forte!! È muito forte!!! 😧
ResponderExcluirDe fato, também não consigo mensurar...!
ExcluirCom muito cuidado, estou tentando escrever como penso que tenha acontecido na situação da personagem que estou construindo...
Depois do impacto inicial vou começar, devagar, a dar a ideia do contexto da personagem e o meio em que ela está inserida... então, as novas questões dramáticas começarão s surgir...!
Super obrigado por teu comentário, Michele!!!
Ai meu Deus ela teve uma filha do canalha que fez isso com ela? Coitada uma dor que nem imagino seu tamanho, e conviver com isso ainda o pai fazer isso com ala. 😢😐😔😓
ResponderExcluirEssas são duas das questões que começo a propor, junto com uma maior caracterização da personagem... A relação em família, a filha, os traumas... A partir de agora, começo a tentar construir a personagem e ir propondo, aos poucos, as questões a serem tratadas...!
ExcluirObrigado demais, Liu, pela força e por sempre vires aqui...!
Situação triste, meu Deus. E saber que isso é realidade na vida de muitas mulheres, é ainda mais triste.
ResponderExcluirEssa questão da violència doméstica também é terrível.
Ah!, Armelinda... realmente...
ExcluirEsse projeto "Reflexo" tem muito disso: expor. Os personagens vão ser expostos, vão viver e deixar-se expor com problemas que muitas vezes são disfarçados ou encobertos por nossas culpas, nossas vergonhas, nossos pré-conceitos sobre tanta coisa... espero que eu consiga manter isso com o respeito que essas questões merecem, e com a delicadeza que cada leitor também merece...!
Obrigado, Armelinda!
É a triste realidade da vida de muitas mulheres, corre risco na rua e às vezes isso ocorre dentro de casa tbm, o que é mais triste ainda....
ResponderExcluirRealmente, Nice... Há muitos dramas e tragédias que não vimos (ou preferimos o conforto de não ver), mas elas acontecem cotidianamente.
ExcluirO projeto "Reflexo" vai tratar de alguns desses dramas, e vou tentar expor com todo o cuidado e respeito...!
Super obrigado, Nice!
Que sofrimento não ter pra onde correr num momento destes. Sem contar que ela já tinha o trauma de ver a mãe apanhar do crápula, e com certeza ela também havia apanhado mas o subconsciente esconde dela. Muito triste a situação dela. E Aurora deve ser feito deste estupro já que o acontecido foi há 4 anos e a menina tem três. Se o trauma existe pelo terrível fato, o estupro, ela não teve mais ninguém. A menina é o resultado. Se houvesse denunciado ela teria sido medicada de várias formas e possivelmente evitaria a gravidez. Desculpe Menna, por me antecipar aos fatos e ainda me intrometer na sua crônica com coisas que ainda não foram relatadas.
ResponderExcluirAh, Sônia!!!! Adorei teu comentário e tuas conclusões!!!!! Podes antecipar-se à vontade à história... porque o mais importante nesta construção literária serão as questões dramáticas propostas!!!!
ExcluirEu só posso agradecer a forma como tu te posicionaste e o teu evidente engajamento na história!!! Super obrigado!!!
Fiquei enjoada, até... Putz, a filha ser fruto do estupro!!! Li mais de uma vez, na esperança do estuprador não ser o pai dela. Luís, você TEM que continuar essa história, ainda tem muito pano pra manga aí... Aurora é filha do avô???
ResponderExcluirJane... eu sei que esta história haverá de causar esses sentimentos: raiva, nojo, indignação... até culpas, às vezes, causa-me...
ExcluirEnquanto estiver sendo aceita pelos amigos do blogue, eu vou manter a história por aqui. Este é um projeto grande, que levarei muito tempo escrevendo, porque esta é minha primeira idéia real para um romance. Muito se haverá de revelar, ainda... e outras questões também demasiado grandes, haverão de ser postas...
Obrigado demais por teres vindo aqui comentar, Jane!
Isso dói em mim, vivencio tanto esses casos aqui na escola, é muito mais comum do que se pensa. Como é importante um olhar amoroso e acolhedor, tento aqui na sala do SOE ser uma escuta , havia uma mãe que me procurava e e certa vez eu disse a ela se queria ajuda, ela me disse , eu só gostaria que algúem me escutasse , me deu um abraço tão carinhoso. Sabe Menna, estou sempre atenta a qualquer comportamento que remeta a um abuso nas nossas meninas, conversamos tanto, conseguimos palestrantes , colocamos caixinhas para bilhetes anônimos sugerindo pautas. Fizemos uma vez por semana Roda de Conversa, no turno inverso e é tão bom eles terem voz. Abraço!
ResponderExcluirDenise... é francamente gratificante a mim, ver que de alguma forma, essa história tem tocado de diversos modos as pessoas que a tem lido. Há muitas questões a serem tratadas, ainda. Haverá muito mais... Vou manter a história aqui no blogue, enquanto ela for aceita pelos amigos do blogue. Mas o projeto é grande, e um tanto ambicioso. E saber dos comentários é algo que tu não tens idéia do quanto importa pra mim!
ExcluirRealmente, super obrigado!