terça-feira, 21 de junho de 2016

crônica - Bédi-Bói, Macaquinho e o Homem-Aranha

Bédi-Bói, Macaquinho e o Homem-aranha
(Novamente, um especial agradecimento ao Investigador de Polícia ARAGÃO, 
muito atuante no arquipélago do Marajó, que em uma ímpar gentileza, 
enviou-me os relatos que deram origem a esta crônica!)

Incrível como essas coisas acontecem sempre na sexta-feira!
“Não dá, doutor! A casa não tem porta!”
“Hein?”
“Não tem porta, doutor”, repetiu o policial militar!
O Distéfano e o Magistrado, os dois oficiais de justiça estavam ali também. Olhei pra eles como quem pergunta “que história é essa”?
“Tem não, doutor”, disse o Magistrado.
“Tá bom…” Esse foi o Distéfano. Sem mudar a expressão tranquila. Era só o que ele me dizia: ”Tá bom…”. Assim, com reticências e tudo e quase sem pronunciar o “m" do final. Saía assim: “tá bô”!
“E eles sobem lá como? Ou depois que entraram na casa foi que construíram as paredes?” Eu perguntei, já quase irritado.
“É o Macaquinho, doutor. O moleque sobe muito rápido e joga a escada pro Bédi”, explicou o policial.
O caso era o seguinte. O Bédi-Bói havia invadido um terreno lá para os lados da estrada. Onde leva esse estrada, eu não sei. Acho que leva até o outro lado da ilha. Afinal, aqui no Marajó, tudo é ilha e, se uma estrada existe e vai direto, só pode levar até o outro lado. Sei que nos finais de semana muita gente fala que “vai pra estrada”. Isso é quase uma gíria. Ouvi dizer que tem vários igarapés ao longo da estrada, mas eu nunca fui, ainda, em nenhum. O mais longe que já fui foi até a pista de pouso (de piçarra, sem qualquer regularização), quando fui buscar o presidente do Tribunal de Justiça de ambulância, dirigida pelo Manobra que nem habilitação tem! Fomos de ambulância porque era o único veículo disponível na cidade além do caminhão de lixo e algumas motos velhas e sem placa que fazem serviço de mototaxi. 
Pois o caso é que o Bédi-Bói havia invadido um terreno pra além da pista e ergueu ali uma casa. E literalmente ergueu, porque pelo que o pessoal estava contando, a casa era de dois pisos, mas não havia porta nem janela na parte de baixo. Na parte de cima, havia três janelas, uma na frente e uma em cada lado. Mas nenhuma porta. Nem escada! O Bédi aliciou o Macaquinho, um garoto com aparência de desnutrido, que já foi apreendido algumas vezes por sempre tentar furtar frutas, para que o Macaquinho suba ligeiro e jogue uma escada de cordas para o Bédi subir.
Bem, já deu pra imaginar que o Bédi-Bói não era exatamente um anjinho, né?! Pois é. Desde moleque, aprontava, entrando e saindo da delegacia. Normalmente, alguns furtos, brigas e muitos desacatos. 
Pois ele achou de invadir um terreno que tem um igarapé e uma pequena praia, formando um agradável balneário minúsculo de propriedade da D. Justa, que mantinha lá, apenas uma tenda para, nos dias quentes, vender cervejas e salgados para quem fosse ao igarapé. Como  o Bédi invadiu no inverno (é sempre quente, mas o “inverno” caracteriza-se pela estação das chuvas, quando, em vez de chover todos os dias, chove o dia todo!), deu tempo para construir a casa sem ninguém perceber. Agora, chegando o verão (pára de chover o dia todo e começa a chover todo o dia!), a pobre D. Justa havia ido até seu terreno e deu com a casa. Foi falar com um policial militar. Esse, mandou procurar o delegado. O delegado falou pra ir no Ministério Público. O Ministério Público mandou dona Justa para a Advogada da cidade (não tem defensoria, mas o prefeito paga uma advogada para fazer as vezes de defensora), e esta, finalmente, ingressou com pedido de reintegração de posse! E daí, já era sexta-feira! 
Peguei o processo e logo despachei determinando a reintegração. Entreguei para o Goela e ele, levando o processo para a secretaria, espiou a decisão e sentenciou: “encrenca, doutor”. 
Mandado feito, chamaram os oficiais Distéfano e Magistrado pra ir cumprir. Eles pediram o apoio do policial militar e lá se foram. Chegaram lá e deram com a casa sem porta. Averiguaram e ficaram sabendo que o Bédi passava o dia todo trancado na casa (não sei fazendo o quê) e só saía à noite. Mas à noite não pode cumprir mandado de reintegração, segundo a Lei. 
Não conseguiram cumprir o mandado e voltaram.
“Mas vocês não mandaram ele descer?” Perguntei.
“Mandar mandamos, né doutor” falou o Magistrado. “Mas o Bédi pegou uma garrafa com gasolina e um isqueiro e disse que ia tocar fogo em tudo se alguém chegasse perto da casa e tentasse subir! E pra subir, só levando escada, doutor!”
Ai ai ai… 
“Tem o Homem-Aranha…”
“Hein?” Minha surpresa nem foi por falar em homem-aranha. É que foi o Distéfano que falou alguma coisa pra mim além de “tá bom…”!
“O Aragão… ele sobe!”
Aragão era o único policial civil, além do delegado!… Tá, tem o Fechadura, mas esse não é policial, apenas cuida do xadrez da delegacia. Mandei chamar o Aragão, que ficou conhecido como Homem-Aranha, depois de ser filmado subindo em uma casa para pegar um ladrão. Ele conhecia há muito o Bédi e já conhecia, também o Macaquinho, o garoto desnutrido e ágil que o Bédi pegou para subir e jogar a escada.
“Missão dada, missão cumprida, doutor!” Falou o Aragão, sem pestanejar.
“Mas a casa não tem porta. Tem que subir no andar de cima”, ponderei.
“Feito”!
"E o Bédi ameaça jogar gasolina e tacar fogo”.
“Feito”!
"E tem o Macaquinho! É menor, não quero que seja machucado.”
“Feito”!
“E ‘pelamordeDeus’, não me vai dar tiro por lá”.
“Feito”!
Saindo todo mundo da sala, o último era o Distéfano que indicou o Aragão. 
“Distéfano! Tu que conheces o Aragão, o que achas?” Perguntei quando ele saía.
Adivinha?
“Tá bom…"
No outro dia, sábado, por volta de 10 horas, o Goela foi me chamar para eu ir no fórum, porque o Aragão estava lá com o Distéfano porre, enrolado em uma rede, aparentemente sem nenhum arranhão, e a D. Justa já estava desmontando a casa, pelo que disseram!
“Mas como foi isso?” Perguntei.
"Ah, doutor, falei com a Sandrinha Vira-Copo. Ela tava me devendo uma, porque eu aliviei um estelionato dela, uma vez”. (Fingi que não ouvi essa última parte!).
Como assim?
“Ontem foi sexta-feira, doutor. O Bédi ia no brega, e pedi pra Vira-Copo embebedar ele. Dito e feito. Embebedou. Quando chegamos lá, de manhã, ele tava porre dormindo. Trabalho deu, foi pra descer ele porre lá de cima. Mas enrolamos na rede que ele tava dormindo e descemos ele.”
"E o Macaquinho? Não deu trabalho?” Perguntei.
“Não, doutor. Nenhum. Foi só levar fruta!”
“Hein?”
Pois é. O apelido “Macaquinho”, não era porque subia rápido nas coisas. Era porque as primeiras vezes que foi apreendido, foi por tentar furtar bananas. E ele tava sempre com fome! 

Por Luís Augusto Menna Barreto



31 comentários:

  1. Difícil saber o mais inusitado! A casa sem portas, o Macaquinho, o homem aranha...
    Tá bom...

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    1. Eu fico com a casa sem portas... Confesso que fiquei curioso e fui até lá uma vez, pra ver como era... mas a D. Justa já havia desmanchado a casa! Achei que podia até virar uma espécie de atração turística... tá bom!!

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  2. Um gaúcho sendo o melhor cronista dos costumes do povo amazônico. Seu olhar sensível e imparcial transmite de forma perfeita esse cenário.

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    1. Ah, Thais, super obrigado!
      Eu realmente tenho muito carinho com os textos e tento ser o mais fiel possível ao povo marajoara, que tanto me fascina!!!
      Tomo esse elogio como um presente!!

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  3. Valeu amigão, bela crônica mistura com força o imaginário popular pra lançar no ar histórias a contar tudo com armação e receio de ilusão.

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    1. Muuuito recheio de ilusão.... mas o ponto de partida é sempre um acontecimento real. No mais, retrato o jeito e as gentes locais!
      O Marajó é maravilhoso, não só pela beleza das paisagens... mas pelo povo!!

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  4. Kkkkkkkk...... "Tá bom" rsrsrsrs....... Realmente o Aragão é missão dada missão cumprida!!!! Show Dr!!!!!

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    1. Flávio!! Realmente!! O Aragão tem literalmente bala na agulha!!
      A propósito, voltaram os oficiais de justiça que, em um breve futuro, haverão de enredar-se bem mais em novas histórias...!!! Essa dupla tem seus segredos da profissão!!!

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  5. Os personagens maravilhosos do Marajó, o Goela então, estão em todas e em todas está palpitando, ele conhece cego dormindo e rengo sentado, o Homem Aranha Aragao, o único policial das redondezas, o Fechadura, a Sandrinha Vira-Copos, o Bedi-Boi, o Macaquinho enfim, todos os que têm um bom e marcante apelido. D. Justa deve ter agradecido a Sandrinha Vira-Copos em facilitar a vidas dos oficiais de justiça deixando o dito-cujo em porre, facilitou a vida de todos. Não sei se falo assim mas essa é uma retaguarda não jurídica mas que ajuda, de uma forma ou outra, os afazeres jurídicos por meio da interligação dos relacionamento da esfera dos personagens que tem apelidos significativos é que praticamente, dizem o porque do seu apelido. Assim é o Magistrado, o Distefano, todos personagens que se pecham no seu dia a dia em Marajó. Enfim, eles sabem das coisas e resolvem coisas usando esse meio, esse conhecimento entre eles. VIVA MARAJÓ.

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    1. Muitas vezes, Dr. Valdomiro, seja pela distância, sejam pelas condições geográficas, seja pela herança cultural, seja pela sempre alardeada falta de verbas, não temos, no Poder Judiciário, especialmente no Marajó, as condições que gostaríamos de ter, que a população efetivamente mereceria... ... mas a vida é rica em soluções. Os marajoaras mais simples dão jeito nas vidas... como não haveríamos de contornar pequenos problemas para achar grandes soluções, com um povo tão criativo??!!!

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  6. Não querendo ser repetitiva... procurei outras palavras: texto rico e história hilária... excelente a transcrição desse povo que dá nó em pingo dágua... não tem professor, polícia nem doutor que os ensine. Parabéns!!!

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    1. Pelo contrário.... tem uns chamados "doutores" que vivem aprendendo com esse povo maravilhoso... ouvi falar de um juiz que vive sendo enrolado (e aprendendo) por um tal de Goela, pela Socorro Rezadeira, pela Maria Sem Sossego......

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  7. Muito engraçado tudo isso, os apelidos são de uma imaginação... rs, acredito que seria mais fácil ter conversado com o menino, lhe oferecido as frutas, principalmente a banana que tanto gostava, e ele não mais ajudaria o Bédi-Bói mas seria um forte aliado da lei, parabéns, impossível não sorrir !

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    1. Pois foi essa a solução que o Aragão encontrou para o Macaquinho! Ofereceu-lhe as frutas e teve-o como aliado! No mais, os apelidos são, efetivamente, maravilhosos..... todos os dias, eu me surpreendo!!!
      Muitos outros, ainda, desfilarão pelas linhas do blog!!

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  8. Doutor, onde o senhor foi parar? Povo esperto, esse... Lugar cheio de histórias...apelidos...esperteza... e um juiz vindo de fora, mais esperto ainda! Imagina, um juiz/poeta!! Ou é o contrário...??? A d o r e i !!!

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    1. Amiga...
      Como irmã devo te contar, que com certeza, a poesia veio primeiro. Está já veio no DNA.
      Nosso amado e saudoso pai era, também, um grande poeta, um grande escritor e um grande homem!
      E, como diz o ditado: a fruta não cai longe do pé.
      Beijos.

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    2. Juiz vindo de fora, sim.... mas "mais esperto", aí, acho que não... rsrsrsrs como eu disse ao comentário da Sylvia ali em cima, mil vezes esse juiz foi enrolado pelo Goela, pela Socorro Rezadeira, pela Maria Sem Sossego... até o Distéfano às vezes me enrola.... "tá bom"....!

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    3. E, mana, aprendi como o Wolf (não o escritor, um nosso primo e meu padrinho), que a ruta cai sempre perto do pé... ... mas a preocupação é o estado em que cai!! rsrsrsrs

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  9. Mano, o que é isso?
    Parece história inventada!!!
    Até o nome dos personagens são dignos de ficção!
    Hahaha...

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    1. Os nomes é que são reais (apelidos na verdade!)... quanto a inventar... como diria aquele apresentador: "não invento... mas, quem sabe, aumento um pouquinho!"

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  10. O loco thê!!é cada uma ai no Marajó que parece brincadeira, adorooo...rindo muito.

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    1. Ah, mas o Marajó é assim...!!! E tem muito mais, ainda, pra contar!!!
      Ô povo que se vira! Acho maravilhoso!

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  11. Quase sem tempo para comentar a crônica de hoje.

    Entretanto, impossível deixar virar o dia sem dizer que eu desejo que a fome do Macaquinho doa em nossas carnes e em nossas almas.

    Um beijo em teu coração, meu cronista maior! O fechamento deste teu texto foi de arrasar.

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    1. ... e como temos, escritora, os "Macaquinhos" por aí...
      Compremos as frutas. Descubramos seus nomes... e veremos muitas crianças escondidas nos seus disfarces de bicho, pra conseguir sobreviver...!

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  12. Me lembrou um seriado que eu adorava assistir nos anos 80, chamado Armação Ilimitada.

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    1. Ah!!!!! Adorava!! Juba & Lula e a Zelda Scot!!!!!
      Era muito bom!!!!!!!

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