bora cronicar
Conselho de Pai
— Faças o que é mais importante para tua vida, meu filho.
Ele nem levantou os olhos do jornal que estava lendo, no escritório com aquela mesa de tampo azul virada para a parede.
O escritório do pai ficava entre o corredor e o quarto onde eu e a mana dormíamos, de modo que, para ir pro quarto, a gente sempre tinha que passar pelo escritório. O som de ninar que eu mais me lembro, é o da velha máquina de escrever Olivetti, que entrava noite e madrugada adentro, em um ritmo lento, mas constante, considerando que o pai, embora algo ligeiro, “batia à máquina” com apenas os indicadores de cada mão.
Eu cheguei com um dos primeiros grande dilemas da minha vida. Aterradores como são os dilemas aos 17 anos de idade. Eu estava no segundo semestre do curso de direito, na Unisinos, em São Leopoldo e todos os dias eu saía do trabalho no Banco Bamerindus, no centro de Porto Alegre, por volta de 18 horas e ia correndo cerca de seis quarteirões até o “Bradescão" onde os ônibus da Central faziam ponto no sistema “lotou-saiu” até São Leopoldo cidade onde fica a Universidade que naquela época não tinha o campus de Porto Alegre. De lá, estudava até 23 horas e pegava o ônibus que, quando não quebrava, largava a gente na praça da Igreja de Baixo de Santo Antônio da Patrulha, por volta das 00h30. Dois quarteirões até minha casa, café na térmica esperando na mesa, junto com dois sanduíches que a mãe deixava preparados, mas, mesmo assim, todas noites, ao ouvir o barulho da minha chegada, ela acordava e levantava, como só as mães são capazes. Eu comia lendo algum gibi, e ia dormir depois de ir no quarto deles e garantir pro pai que tudo correu bem no dia, que eu estava inteiro e com saúde.
O que é quase inacreditável, é que dois dias por semana, a gente ainda treinava vôlei no ginásio, treino que começava perto de meia noite e ia até perto das 2 horas da madrugada. E nos finais de semana a gente passava praticamente os dias inteiros no ginásio municipal.
Daí que em Santo Antônio, tinha dois campeonatos de vôlei por ano, um em cada semestre, um “fechado”, só com jogadores e times da cidade e outro “aberto”, podendo jogadores e times “de fora".
E, pela primeira vez, meu time estava na final. Eu era o levantador! E quis o destino, que a final caísse exatamente no dia da prova de direito constitucional.
Foi quase um caos estudar direito constitucional no segundo semestre de 1988, com uma constituição (ou Atos Institucionais) sendo revogada e outra sendo promulgada no meio do semestre! Mas, sinceramente, quê me importava isso? Que importância teria uma Constituição sendo elaborada, se meu time tava na final?!
Masal (meu time) x SERB. Em uma cidade como Santo Antônio da Patrulha, um evento desses lotava o ginásio e tinha cobertura do jornal "A Folha Patrulhense", com edição semanal, e da Rádio Itapuí! Um evento!
E agora? Foi que, então, fui aconselhar-me com o pai, que me deu um dos conselhos mais graves que ouvi.
O pai ensinou-me coisas que levo pra minha vida e que hei de passar ao João. Ele me disse que um homem tinha que saber fazer ao menos essas três coisas: eu deveria saber dobrar minhas próprias calças; deveria saber fazer o nó das minhas gravatas; e deveria cumprimentar a todos, do porteiro ao Rei, do pipoqueiro ao Presidente, e apertar a mão das pessoas com firmeza, olhando nos olhos!
Até hoje, sigo isso e tenho passado ao João! Por enquanto, ele já consegue apertar a mão das pessoas. Um dia vai dobrar as próprias calças. E espero que sequer precise usar gravata, mas que saiba fazer o nó!
Pois eis que, com a autoridade que os então 82 anos davam ao meu pai (sou temporão, o pai é de 1906 e eu de 1971), fui pedir seu conselho. Fui direto:
— Pai, a final do campeonato vai ser sexta e tenho prova na faculdade. O que eu faço?
— Faças o que é mais importante para a tua vida, meu filho.
A final seria na sexta e eu perguntei na quarta-feira, antes de sair de casa às 8h para pegar o ônibus pra Porto Alegre pra entrar no banco às 11h.
Um dos conselhos mais importantes que recebi.
Aquilo me deixou tranquilo. A angústia que antes me consumia, dissipou-se.
Passei tranquilo o resto da semana. Num tempo sem celulares, consegui avisar ao técnico Sapo (Renato) e aos meus colegas de time: Guinho, Elvis, Betinho NeTê, Fernando Barbieri, Zé, Lissandro, Camarão, Cuca e Sirângelo… Estavam todos sabendo.
Quando saí do banco correndo, na sexta, como todos os dias, e depois, quando entrei no ônibus, eu não tinha qualquer peso em mim. Eu fechava os olhos e ficava imaginando o ginásio lotado, o barulho maravilhoso da torcida, o cheiro dos carrinhos de pipoca, os gritos no vestiário…
Aquele foi o melhor conselho que meu pai me deu naqueles tempos de espinhas na cara e coragem de vencer o mundo!
Entrei correndo no ginásio, quando o time estava fardando. Nunca corri tanto quanto corri quando o ônibus da linha Porto Alegre-Santo Antônio da Patrulha abriu a porta na Praça! troquei de roupa como uma flecha, em casa, peguei o sanduíche e saí comendo enquanto corria até o ginásio.
Foi uma noite histórica. Vencíamos o quinto set por 8x1, e perdemos o jogo por 16x14, num tempo que os sets tinham 15 pontos! Tenho até hoje as reportagens no jornal.
Eu repeti o semestre em Direito Constitucional. No mesmo dia da semana; com o mesmo professor!
Mas o destino, este pândego, armou-me outra: no semestre seguinte, o primeiro semestre de 1989, a final do campeonato de vôlei “aberto”, aquele que podia ter jogadores e times de outras cidades, caiu quando? No dia da prova de direito constitucional! Sério!
O que eu fiz? Joguei a final, claro!
Eu já sabia o que fazer.
Conselho de pai, não precisa ser dito duas vezes!
Luís Augusto Menna Barreto
Que bela crônica!!Que belo exemplo de pai!! O seu e o que você se tornou para João! Está explicado todo seu caráter,honestidade,generosidade e sabedoria que lhe são intrínsecas!! Eu muito me orgulho de também ter tido a honra de partilhar parte da minha vida com um pai que foi e é minha referência!! Somos privilegiados Poeta!!
ResponderExcluirDe fato, Michele... e que bom que tive estes conselhos...
ExcluirO que me arrependo são os vários que não segui, numa época em que minha juventude tinha resposta para tudo e o que vinha dos mais velhos era algo "ultrapassado" para meu coração afoito...!
Mil obrigados, Michele!
Pois é! Esta história que eu já sei, acho-a MARAVILHOSA.
ResponderExcluirPorém, tenho de fazer dois destaques:
- primeiro: você não disse que o o seu time ganhou, na segunda vez. Então, infiro que tenha perdido.
- segundo: você só contou que nessa época ainda tinha cabelos na cabeça, pela linguagem fotográfica.
Abração carinhoso!
Escritora, como é bom ver-te por aqui!!
ExcluirMas vou dizer... vencemos a segunda final... mas é que essa é outra história a ser contada...!!!
Quanto aos cabelos... ah... quanta saudade!
Muito sábio, teu pai!
ResponderExcluirExemplo lindo de obediência, carinho e cumplicidade!!!
Onde estiver, ele deve estar muito orgulhoso do filho que criou! Do homem honrado que ele forjou (juntamente com dona Zélia)!
Só posso dar...PARABÉNS!!!! 👏👏👏👏👏
Armelinda... sempre tão bom ver-te aqui...!! Quanto à obediência... ah... nem tanto.
ExcluirNessa história, mesmo, eu sei que o pai disse pra eu fazer o que era mais importante, na esperança que eu achasse a universidade e os estudos mais importantes que um jogo... daí, em uma "desobediência" camuflada, eu interpretei que o mais importante seria o jogo...!
Foram tantas as desobediências... queria poder voltar e obedece-lo muito mais... compreende-lo muito mais...! Ahhh... saudades!
Saudades...!!!
ExcluirSaudades só temos do que foi bom!
Ah...!!!! Tens TODA A RAZÃO!!!!!!!!!!!
ExcluirComo é difícil tomar uma decisão né? Mas se temos alguém para nos orientar, facilita. Belíssima crônica, com fotos melhor ainda, parabéns.
ResponderExcluirObrigado, Nice... as fotos remetem-me a uma saudade deliciosa.
ExcluirProcurei uma foto do pai sem paletó, sem estar investido do Doutor Menna Barreto! Queria só o pai... aquele que andava de camisa de flanela, boina, bombachas e tamancos de madeira ou alpargatas gaudérias...! Uma foto em meio aos livros dispostos em prateleiras que ele mesmo fazia, em madeira simples, e colocava nas paredes que cobriam todo o escritório...!
Crônica belíssima, cheia de carinho, com noticiário e tudo, seu pai é um homem muito sabio, o filho necessita muito mais de seus ensinamentos do que de roupa de ultima geração, qualquer coisa material que seu descendente receber irá ficar ultrapassado, os valores que vc transmtir, jamais!!Parabéns as 03 gerações Pai, filho e neto!!
ResponderExcluirMeu pequeno não não conheceu o avô paterno... conseqüências de eu sr muito temporão... Eu não conheci nenhum de meus dois avôs... Mas eu sei que o pai seria completamente apaixonado pelo meu pequeno João... e tenho certeza que o João receberia um apelido carinhoso, uma mania que o pai tinha, de colocar apelidos em todos (inclusive em mim)...!!!
ExcluirQue crônica linda! Amei!!!Como era sábio teu pai! Mas como todos os filhos,seguimos com nossos próprios caminhos, nossas escolhas que nem sempre são as que a razão manda mas as que nosso coração decide.
ResponderExcluir... e um coração adolescente faz escolhas tão longe da razão tantas vezes......!!!!
ExcluirSuper obrigado, Denise!!!
Meu pai não era tão sábio nem muito letrado mas, com certeza tenho aproveitado muito do que ele conseguiu passar aos filhos. Era o tipo de homem que sabia um pouco de cada coisa, o suficiente pra entrar em qualquer tipo de prosa e ter sempre algum comentário pra acrescentar. Essa crônica me fez valorizar ainda mais o que ele deixou enraizado na minha lembrança.
ResponderExcluir.... então, esse texto justificou-se...!!!
Excluir