bora cronicar
Um Pequeno Conto Sobre o que Realmente Importa
Quando o motorista notou, Álvaro já estava curvado sobre o banco traseiro do Maserati sedã Ghibli, que havia chegado da Itália, personalizado por dentro, já com as suas iniciais gravadas no couro dos bancos. Tinha 48 anos, e achava-se em plena forma. Acabara de comprar uma companhia aérea com vôos em 32 países, que passava por dificuldades financeiras. Iria “reparti-la” em várias pequenas partes e obteria um lucro acima de seiscentos por cento. Era o que ele fazia.
O escritório nos fundos do supermercado, bem acima da entrada para o depósito, oferecia a visão de todos os 12 corredores da grande loja. Havia sempre uma nuvem de fumaça e, ainda que o ar condicionado estivesse ligado, de alguma forma ele sempre suava. Dificilmente tirava o cigarro da boca e tinha a habilidade de manter a cinza sem cair, até quase metade do cigarro. Espremia os olhos após soltar a fumaça de cada tragada. Desde às 6h da manhã de todos os dias, Plauto, um homem baixo e visivelmente acima do peso, afundava-se entre papéis de pedidos, remessas, notas fiscais, duplicatas, telefonemas, negociações com fornecedores e, acima de tudo, contando dinheiro. Mas Rosa, a sua secretária encontrou-o com o rosto afundado nos papeis em cima da sua mesa e teve dificuldade mesmo para tentar levantar sua cabeça e escora-la na poltrona, antes de gritar para que alguém ligasse para uma ambulância. Tinha 54 anos.
Ariovaldo não sabia sua idade. Deitado na rede atada por entre as árvores na praça daquela pequena cidade do Marajó, todos o cumprimentavam. Por isso, quando Marcela, que todos chamavam de “Telegrama" passou a caminho da pequena agência dos correios em frente à praça, não recebeu resposta de Ariovaldo (que todos chamavam de “Mochila”), ela se preocupou e foi até ele. Em seguida, com um grito, um enfermeiro que fumava em frente ao Hospital Municipal, do outro lado da praça, veio correndo e foi auxiliado pelo motorista da ambulância para leva-lo até a emergência.
Assim que chegou à emergência daquele seleto hospital e Álvaro começou a ser atendido em procedimentos de emergência, o motorista ligou para o secretário, que em seguida ligou para a ex-esposa de Álvaro que estava em Madri, com o atual companheiro; deixou recado na caixa posta da filha que morava em San Diego, Califórnia, e há seis anos não vinha ao Brasil, recebendo periodicamente, os depósitos que seu pai fazia para bancar suas necessidades e seus luxos. Não conseguiu localizar o filho de Álvaro que estaria praticando snowboard em algum lugar na Europa. A notícia espalhou-se com a rapidez de uma flecha e logo as ações do grupo empresarial de Álvaro começaram a cair.
Todos olharam quando a ambulância chegou com a sirene ligada e parou bem em frente à porta do supermercado, no local destinado aos deficientes. Enfermeiros entraram correndo com uma maca e tiveram dificuldades de retirar e descer Plauto pela estreita escada que dava acesso ao escritório. Os funcionários ficaram olhando, preocupados, e a rotina no supermercado foi retomada quando o barulho da sirene perdeu-se ao longe, levando Plauto. O filho fora avisado, mas seguiu as instruções do pai: foi primeiro ao supermercado, fechou todos os valores no cofre, trancou o escritório, ligou para os fornecedores do dia e, então, dirigiu-se ao hospital.
Quando o enfermeiro e o motorista levaram o Mochila nos braços, até o posto de saúde, várias pessoas foram-se reunindo em torno, e acompanharam o trajeto. O único médico que estava na cidade, um clínico geral, empenhou-se com todo seu conhecimento, com todo seu coração e usando como podia os poucos recursos técnicos disponíveis naquele hospital de uma pequena cidadezinha no Marajó. A todo instante, o técnico de enfermagem ia e vinha, dando notícia às pessoas que mais e mais juntavam-se em frente, comentando o ocorrido.
Quando Álvaro expirou, era o motorista quem lhe fazia companhia, naquela luxuosa UTI privativa daquele maravilhoso hospital. Uma tela de LED na parede, passava a notícia na barra inferior, que as ações do grupo estavam caindo diante de rumores que o presidente do grupo não resistiria. No celular de Álvaro, chegara a mensagem de texto de sua ex-esposa: “Desejo melhoras. Mês que vem estarei no Brasil. Ligarei para seu secretário para informar as datas.” Havia uma mensagem na caixa postal, com o número da filha, que o motorista e ninguém mais no mundo poderia ouvir, porque apenas Álvaro tinha a senha de acesso aos recados. O filho saberia da morte do pai, somente onze dias depois. Passariam décadas até que os bens de Álvaro fossem dilapidados e divididos entre ex-esposa, filhos e advogados que brigavam por cada centavo. Uma vez por ano, o túmulo de Álvaro receberia flores, levadas por seu antigo motorista.
O filho de Plauto chegou ao hospital a tempo de ouvi-lo dizer que não esquecesse o carregamento de detergente e sabão em pó que chegaria à tarde, e deveria ser conferido caixa por caixa, porque na última vez, faltara uma caixa e ele estava desconfiando que o entregador que havia surrupiado uma para si. Suas últimas palavras, foram: “você tem que pegar esse desgraçado que pensa que vai me roubar!”
Ariovaldo, o “Mochila”, recebeu todo o atendimento que era possível. As enfermeiras deram-lhe banho, pentearam-lhe o cabelo e fizeram o possível para melhorar seu hálito. Estava fraco e ofegante. O clínico escolheu com cuidado as palavras e foi até a pequena multidão em frente ao hospital e disse: “acho que hoje, o Mochila vai se por junto com o sol”. E todos entenderam, que Mochila estava morrendo. E, de alguma forma, todos na cidade deram um jeito de despedir-se do Mochila, que retribuía com um sorriso. Quando saiu do correio, Marcela, a “Telegrama”, recolheu a rede que ficara atada, colocou-a na mochila de pano pendurada também na árvore e que continha todos os bens do Mochila e levou para ele. Ele sorriu satisfeito. Tinha nas mãos, e era capaz de pegar, tudo o que fora necessário por toda a sua vida. Todo o resto que lhe importava, estava recebendo de cada um dos moradores daquela pequena cidade. Quando mochila expirou, o padre havia-lhe abençoado. Houve missa, com a Igreja cheia.
E sempre haveria flores colocadas por várias mãos, em seu túmulo.
Luís Augusto Menna Barreto
28.5.2019
Achei interessante o eufemismo usado pelo clínico para anunciar a morte do "Mochila"...Eu não gosto de Adeus,e para com o Mochila não é diferente!! 💔
ResponderExcluirAchei carinhoso... pareceu-me que havia respeito e beleza.
Excluir... a rede vai ficar vazia na praça...!
Obrigado, Michele!
Texto criativo e inteligente. Faz um paralelo entre a vida e a morte de três personagens distintos: o rico, o burguês e o pobre. Lembrou-me Jesus, no Sermão da Montanha, quando ensina que onde estão os verdadeiros valores, está a felicidade. Parabéns, caríssimo Luís!
ResponderExcluirUm milhão de obrigados, guria...!
ExcluirA idéia do texto era exatamente essa... como um "auto puxão de orelha", perceber onde está o que importa... o que restará de nós...!
Realmente, muito obrigado!!!
Três homens com estilos de vida totalmente diferentes, mas que muito se assemelham no final, pq morrer é igual pra todos. Mais um cronicar reflexivo, quem passa a vida para juntar riquezas, acaba ficando só. ...
ResponderExcluir... exatamente, minha amiga Eunice... esse tipo de riqueza, muitas vezes isola.
ExcluirRico, por outro lado, era o Mochila... pelas flores de seu túmulo, pode-se medir o tamanho das existências...!
Super obrigado!!
Maravilhosa reflexão!!!
ResponderExcluirAcredito e gosto de pensar que nào somos só isso que conseguimos tocar, juntar e perceber com a nossa curta visào física. O maior propósito nosso aqui,não é juntar...juntar e juntar.
No meu pequeno entendimento...fazemos parte de um PROJETO tão sério...tão grandioso e tão importante...que o lado material (se conseguíssemos entender um pouco mais), haveríamos de lutar só pelo básico, pois já não faria sentido juntarmos tanto. Até porque, nem sabemos quanto tempo durará nossa estadia aqui.
Uma coisa é certa: "dessa vida só levamos a vida que vivemos".
Olá, Armelinda... super obrigado por tu sempre vires aqui.
ExcluirEu também penso como tu... por isso que tenho tanto medo da "linha de chegada"... porque acho que não estou nem perto de realizar o plano que o Criador tem pra mim... tenho medo de estar guardando os talentos...
Acho que eu me sinto muito confortável no lugar onde estou, fazendo as coisas que faço... mas acho que o plano era outro... e simplesmente minha covardia impede de eu sair dessa "zona de conforto"...!
Quanto ao Mochila... acho que ele estava feliz e tranquilo. Não havia revolta. Tudo o que tinha, cabia-lhe nas mãos. Sua casa, ele levava em suas costas e era qualquer lugar onde pudesse atar sua rede e chamar a todos de vizinho!
Três personagens, três situações econômicas, mas no final das contas, o que menos tinha foi o que mais ganhou o que realmente importa e que infelizmente, ninguém se dá conta do valor.
ResponderExcluirO que menos tinha, foi o que mais levou...
Excluir... ah, Mochilas....!!!
Bonito, Doutor!
ResponderExcluirObrigado, escritora...!
Excluir