bora cronicar
Um Conto do Pilha - parte 3 - final
Da nossa sinaleira até aqui é muito longe! A gente tem que atravessar a cidade. Mas a gente não ia faltar por nada nessa festa. Agora eu aprendi o nome de mais uns meses, e sei que a gente tá em abril! Eu não acho o nome tão bonito como “setembro”, mas agora, é o mês que eu vou mais gostar pra sempre.
Eu descobri porque o Pilha escolheu que o aniversário dele era no dia 23 de abril: porque é o dia do São Jorge. A gente trabalhou dobrado desde que começou abril, e nem fomos no parquinho nesse mês, só pra conseguir juntar dinheiro pra comprar as camisetas! Nossa, eu nunca vesti uma roupa nova! Tem um cheirinho melhor que cola!
Eu acho que nunca tinha visto o Pilha tão feliz, desde que ele se vestiu de palhaço. Pensando bem, acho que só agora entendi quando aquela vez o Pilha disse que queria ser ator, mas não pra viver a vida do outros… era pra não ter que viver a nossa. Também, depois de tudo que ele tinha passado e eu nem sabia. Até o dia que o São Jorge apareceu pra mim, eu não sabia que o “Desbravado" tinha machucado o Pilha. Só fiquei sabendo depois que o São Jorge mandou o Pilha ir lá me buscar. Naquela noite, a gente quase morreu de frio, porque a igreja grande lá da Duque tava fechada e cheia de grade e a gente não achou lugar pra dormir. Daí a gente se enrolou juntos na toalha velha que ele tinha me dado e ficamos caminhando quase a noite toda.
Quando tava ficando dia, fomos direto pra nossa sinaleira. Mas logo que chegamos, o irmão do Pilha que vende DVD no centro, chegou lá furioso, chegou logo dando tapa na cabeça do Pilha e perguntando o que ele tinha feito. Mas não foi tapa de machucar… acho que foi de nervoso. Ele parecia preocupado com o Pilha.
— O que tu fez, Pilha? O que tu fez? O Cigano me falou que o Depravado saiu do pronto socorro com a cabeça enfaixada! E só tá dizendo que vai matar vocês dois!
— Ele desmorreu? — O Pilha perguntou! Mas não tava apavorado. Parecia aliviado. Acho até que ouvi ele dizer “ainda bem”. Mas foi tão rápido que acho que quando ele falou o irmão dele deu outro tapa.
— Vocês tem que vazar daqui! Some! Ele vai vim aqui pegar vocês!
— Mas se a gente não guardar nosso ponto, moleque vem e pega!
— Se tu ficar aqui, tu morre!
Mal ele falou e a gente viu o “Desbravado" virando a esquina. Tava com um pedaço de pau na mão.
O irmão do Pilha tentou atrasar o “Desbravado”:
— Qual é maluco? Deixa pra lá que já dei o corretivo no moleque…
— Cai fora! Vou esfolar os piá.
A gente correu muito. O “Desbravado” nunca ia conseguir alcançar a gente. A gente sabia que ia perder a sinaleira se não trabalhasse, mas se o “Desbravado" desmorreu, era a gente que podia ficar morrido.
Daí, a gente passou o dia se escondendo. O primeiro lugar que a gente pensou foi o parquinho, na nossa árvore. Mas ela tava quase pelada, sem folha. Só nasce folha de novo quando fica quente o ano. Mas ainda tava frio. Daí, o Pilha, que é gênio, pensou:
— Bora pros maricá do parque do rio.
— Tá doido, Pilha?
— Se o Depravado tá procurando a gente, ele não vai procurar lá. Bora, mané!
A gente foi, e passou o dia por lá. Mas quando começou a acabar o dia, tava muito frio. E a gente não tinha comido nada. E a esponja de cola que o Pilha tinha pra emergência, já não tinha mais nenhum cheiro.
— Bora mané. Vou contigo até o muro. Daqui a pouco o Depravado pode voltar aqui.
Eu sabia que ia apanhar da mãe, porque eu não tinha arranjado nem uma moeda, já a gente não trabalhou nada. No caminho, a gente foi passar na nossa sinaleira, pra ver quem ia ter tomado ela de nós. Mas daí, foi uma surpresa: o mano do Pilha tava lá! Ele não foi vender DVD pirata e ficou lá segurando nosso ponto.
— Quanto tu precisa, moleque? — ele me perguntou.
— A mãe manda eu dar 8 pilas todo dia.
— Toma 6 e te vira. E fiquem espertos. Olho nas costas. Pilha, tu vem comigo?
— Não. Vou com ele no muro, desdobrar a mãe dele. Valeu.
— Valeu um caramba! Me devem 10 por hoje! — Mas o irmão do Pilha disse isso sorrindo. Acho que ele é parecido com o Pilha. Eu não sei o nome dele e, desde aquele dia, eu chamo ele de Pilhão!
A gente foi pro muro olhando tudo que é lado. O Muro fica nessa rua grande com o valo no meio. Num lugar que não tem muita casa. Mas quando a gente tava chegando, meu coração congelou mais que o frio que tava fazendo: ouvi o choro da mana. Quando a gente dobrou, vi a bebê no chão, chorando. Daí eu corri pra bebê. E quando tava correndo, vi barulho de batida e ouvi a mãe gritar. Daí, atrás do papelão, meio por cima, vi uma cabeça enfaixada. Meu Deus, era o “Desbravado”! Eu vi o braço dele levantado com um pau na mão, e ele baixou forte duas vezes e ouvi dois gritos da mãe!
Quando eu tava segurando a bebê, vi o Pilha dar um pulo por cima do papelão e cair em cima do “Desbravado”. Mas logo ele jogou o Pilha de volta e vi o “Desbravado” levantar e vir pra cima do Pilha com o pedaço de pau. Eu acho que a mãe lutou muito com ele, porque ele tava com a bermuda abaixada e andando arrastando os pés, indo pra cima do Pilha. Ela deve ter conseguido fazer isso pra ele não conseguir correr se ela fugisse.
Eu tava paralisado de medo e tentando proteger a mana que chorava muito. Daí, eu rezei pro São Jorge. Eu sabia que ele já tinha me salvado e devia ter muita gente pra salvar toda hora; mas eu pedi que se ele pudesse vir de novo, eu nunca mais ia desobedecer a mãe, e não ia mais gastar as moedas com doce!
O Pilha tava tentando levantar e o “Desbravado” deu uma paulada nele. O Pilha caiu de novo e deu um grito. Achei que ele ia correr, mas o doido do Pilha levantou ligeiro e se jogou de cabeça direto na barriga do “Desbravado”. Acho que o "Desbravado" não tava esperando por isso e caiu. Mas logo levantou e deu outra paulada. Essa acho que doeu, porque o pilha se abaixou e não levantou.
O “Desbravado" foi pertinho dele. O Pilha tava no chão. Ele levantou o pau pra dar no Pilha. Eu achei que o Pilha ia se esconder e fechar os olhos. Mas não. O Pilha ficou encarando ele. Parecia nem ter medo! Eu ouvi o Pilha dizer:
— Bate, desgraçado! — e não sei como, mas o Pilha até sorriu: — Eu vou pr'um lugar que tu nunca vai ir!
— Tá delirando, moleque! Pois tu vai pro inferno e é agora!
E quando o “Desbravado" foi bater, a gente ouviu um estrondo! O “Desbravado" olhou assustado pra trás e arregalou os olhos.
Um policial a cavalo chegou dando tiro pra cima. Um cavalo branco lindo. Nunca tinha visto um cavalo tão grande. Depois chegou outro policial. Algemaram o “Desbravado" e eu vi ele ligar pedindo ambulância. Ele foi primeiro no Pilha, mas o Pilha disse que tava bem, que era pra ver a mãe, e apontou pras pernas embaixo do papelão. A mãe tava sangrando na cabeça e na boca, mas tava acordada.
Fomos todos pro Pronto Socorro. Mas antes da gente entrar na ambulância eu ouvi: o policial do cavalo branco tinha um rádio no ombro e alguém chamou. E eu ouvi:
— Cabo Jorge na escuta, copiou?
Eu sabia. Eu sabia! Ele tava disfarçado mas era ele! No cavalo branco! São Jorge!
Faz tempo, já! O frio já foi embora! E eu nem sei como, mas o Pilha descobriu a igreja dele, aqui nessa esquina da rua grande, do lado do viaduto!
E a gente cuspiu na mão e fez a promessa: até morrer, todo ano, nós vamos na missa e na festa do São Jorge!
(Fim)
Luís Augusto Menna Barreto
23.5.2019
Bom dia amigão. Como sempre vc se superando nas crônicas. Muito legal. Tem que ser lida com emoção.
ResponderExcluirBarbaridade, amigão!!!!! Também achei emocionante essa história que o Pilha contou-me! E mesmo sem haver uma maneira de apagar a dor que passou, ele consegue ter energia e um sorriso no coração pra seguir adiante!
ExcluirE viva São Jorge!!!
Ahh...Esse pilha danado em, menino de ouro esse coração gentil, amigo fiel este sim merece 👏👏 e a ti tá be. Poeta.
ResponderExcluirUfa são Jorge ouviu o pedido no mané e ajuda chegou a tempo. Lindo poeta essa briga do Pilha eta, tadinho ele foi um herói pra mãe do mané.
O Pilha é valente! Tem a valentia dos bons, dos que tem o coração tranquilo, dos que acham a vida um presente, mesmo com todo o sofrimento que possa haver!!!
ExcluirEu quero um amigo como o Pilha!!
Mesmo vivendo um momento tenso, a inocência fez acreditar no livramento, que veio na hora certa. Perfeito desfecho do conto do corajoso Pilha.
ResponderExcluirSuper obrigado, Nice...!!!!!!
ExcluirQuando comecei, achei que o Conto seria maior... mas até em casa eu recebi “pressão” pra aliviar o sofrimento do Pilha...
Daí ele me disse: “Tio, tudo bem. Vai contando aos poucos. Bora falar que fui na festa do São Jorge!!!!
O Pilha e toda sua inocência na superação dos obstáculos... Emoção pura!!
ResponderExcluirO Pilha, sendo o Pilha: aquele amigo leal e corajoso, com o coração maior que ele! E quando passa o problema, ele nos apresenta um sorriso e uma alegria que contagia....!!!!
ExcluirObrigado, Michele!!!!
Esta série de crônicas, as Crônicas do Pilha, tem algumas peculiaridades.
ResponderExcluirUma delas é que o autor se transveste de personagem-narrador e cooprotagonista de todas as tramas.
Outra, é que tal personagem não é nomeada. Ela é o "eu" dos fatos.
Muito boas. São, de fato, crônicas de excelência.
PARABÉNS, Méri!
P.S.- Ah! O que é MARICÁ?
Vegetação. Um arbusto muito espinhoso, que pode chegar até uns 3 metros de altura, e que no Rio Grande é comum perto dos rios!!
ExcluirMas o Pilha sempre teve o amiguinho que narra na primeira pessoa...! Vejo sempre pelos olhos dele.....!
ExcluirPilha...Pilha!!!! Você é o melhor amigo que alguém pode ter!!!!!!
ResponderExcluirQue grandeza de alma!!!!
Sou sua fã!!!! Grande admiradora dessa garra e dessa luz que habita dentro de ti!!!!!! 👏👏👏👏👏👏
Acho, Armelinda, que o Pilha é uma dessas almas iluminadas, que não deixa prender em si o sofrimento... ele enfrenta as dificuldades, passa pelas tristezas, mas está sempre alerta pra seguir em frente procurando ver a vida com olhos bons....!!!!
ExcluirExatamente, Poeta!!!!!
ResponderExcluir👏👏👏👏👏👏