Bora Cronicar
O Velho e o Garrincha - parte 2
Naquela noite, o velho não ligou o rádio nas notícias como fazia todas as noites. Procurou uma rádio com músicas. Passou algum tempo girando o botão do dial no rádio antigo e achou, entre os chiados, uma rádio que tocava uma música com palavras que ele não entendia. Mas gostou assim mesmo, porque o som parecia alegre.
Notou que havia algo diferente em seu rosto e percebeu que deveria ser o sorriso que vira no pequeno espelho. Deixou o rádio ali em cima da mesa minúscula, girou a única lâmpada da pequena peça aos poucos para não queimar os dedos, até que ela se apagou e permaneceu ali, emitindo calor pendurada no fio que vinha da casa ao lado.
Com alguma dificuldade, dirigiu-se para a cama. Largou cuidadosamente a muleta de madeira que apoiava abaixo da axila esquerda, sentou-se na cama e puxou a perna inerte para cima. Uma perna que lhe ficava pendurada, com a metade do tamanho da perna direita, e que carregava como um apêndice. Desde criança, sua perna era muito mais o pedaço de madeira que usava embaixo do braço para poder ir de casa até a escola e voltar todos os dias. Então, quando chegava na escola, bem cedo, sentava-se no canto, para sua perna ficar escondida ao lado da parede. E não saía até a aula terminar e todos os colegas já terem saído. Mas, naquela noite, ele não pensava em nada disso…
Ele simplesmente sorria, de olhos fechados, enquanto a música com alguma estática, preenchia o ambiente. Ouviu um barulho qualquer na porta, pelo lado de fora, e imaginou que era Garrincha. Imaginou-o ali, mancando, sem colocar sua pata no chão, enrolando-se até finalmente deitar por cima do pano em frente à porta. E simplesmente adormeceu assim, pensando no Garrincha…
Os dias seguintes foram diferentes de tudo o que o velho podia lembrar. Ele nem lembrava há quanto tempo morava naquela peça minúscula que lhe consumia um terço do benefício assistencial que recebia da providência social. Nem lembrava há quanto tempo tomava os remédios que lhe consumiam mais um terço. Não lembrava sequer há quanto tempo usava o mesmo calçado que o vizinho, que trabalhava na construção civil, dera-lhe quando recebera equipamentos novos na construção do shopping novo. Ele não tinha quase lembranças, porque tendo dias sempre iguais há tantos anos, nada havia para ser lembrado.
Mas dos últimos dias, ele lembrava de quase tudo. Dos farelos dos amendoins que deixava no dia anterior no pano da porta. Do pano enrolado e ainda com o calor do corpo do Garrincha, cada vez que abria a porta; e do Garrincha que, primeiro, mal espiava lá da entrada da vila e que, dia após dia, arriscava-se a ficar mais perto quando ele abria a porta e saía.
Sentiu-se especialmente emocionado, no dia em que abriu a porta e finalmente o Garrincha permanecera deitado. Notou a pata aleijada, que ficava sempre dura à frente, e viu que no lado na pata havia sujeira e algo escuro, como se fora sangue coagulado há muito tempo. Com alguma dificuldade, pegou o único lenço que tinha, molhou-o e foi até o Garrincha, ainda deitado, mas com olhar atento, arisco e desconfiado. Quando chegou perto, Garrincha levantou-se em três patas, mas não saiu. Ficou esperando a reação do velho. O velho largou a muleta e sentou-se no chão, à porta, e tentou passar o pano na pata. Garrincha, instintivamente, reagiu. Mordeu a mão do velho e disparou correndo em três patas.
O velho com a mão sangrando ficou parado, olhando Garrincha. Garrincha parou adiante. O velho não o xingou. Não esbravejou. Sequer gemeu. A mão ainda sangrava-lhe, e ele sorriu, sem nem ao menos saber que estava sorrindo. Garrincha deu dois ou três passos claudicantes em sua direção.
— Você é um sobrevivente como eu. E eu fico feliz que você sabe se defender…
O velho surpreendeu-se com o som de sua própria voz, que há tanto tempo não ouvia em sua rotina de silêncio, ausente sequer de pensamentos durante tantos anos.
Garrincha aproximava-se devagar, sempre mancando, com a pata aleijada à frente. O velho não se mexia. O sangue na mordida começava a parar de sair… Garrincha aproximou-se mais. Duas ou três vezes, chegou com o focinho perto da mão do velho, mas recuava, desconfiado… até que cheirou a mão do velho, e começou a lamber-lhe sobre a ferida que sua mordida causara.
O velho suspirou. Em toda a sua vida, fora aquele cachorro manco naquele momento, que lhe fizera o gesto mais carinhoso.
E finalmente, o cachorro permitiu que lhe fizesse carinho na cabeça:
— Você tem as pernas tortas, mas sabe correr como ninguém… vou chamar você de Garrincha!
Luís Augusto Menna Barreto
22.3.2019
Eu não segurei as lágrimas!! Lágrimas de emoção!! Quanta sensibilidade!! Sua,do velho,do Garrincha!! Não existe amizade mais verdadeira que a dos animaizinhos de quatro patas...Como sao fiéis,como são adoráveis!! Amei a crônica!!!
ResponderExcluirSuper obrigado, Michele....!!
ExcluirParece que a relação de ambos começa a ficar estável... dois seres que talvez por suas dificuldades, entendem-se...!
... mas haverá, ainda, a continuação... mais surpresas aguardam essas duas vidas tão diferentes, mas com tanto em comum...!!
Amigo, a solidão trás uma tristeza que machuca a vida da pessoa. Ter alguém com quem dividir estes momentos gera bem estar e promove um querer servir.
ResponderExcluirExato, amigão!!!! E parece que tanto o Velho como o Garrincha, perceberam que podem “curar-se” da solidão um com o outro!!!!
ExcluirObrigado, amigão!!!!
Tão diferentes e com tanta coisa em comum, suas deficiências e limitações tão parecidas. Dois seres solitários, mas com a oportunidade de se ajudarem mutuamente. Suas almas se reconhecem. Que linda crônica, amei.
ResponderExcluirNice!!! Eu também gostei muito desta...!
ExcluirComo escrevi por partes, os personagens parecem que de alguma forma, querem dizer-me mais coisas, querem contar-me mais... daí, que segunda-feira terá a parte três... e nem descarto que não seja necessária uma quarta parte!!!
Super obrigado!
Acho que caiu um cisco no meu olho...!
ResponderExcluirTexto totamente encharcado de emoção e ternura! Mostrando que não importa quanta solidão tenha vivido ou quanta tristeza tenha sofrido, sempre há tempo de ser feliz! Quando menos se espera ou de onde menos se imagina pode surgir um motivo totalmente inusitado e iluminar e trazer sentido a uma vida que antes era completamente fria e cinzenta.
Bendito "Garrincha"!!!
Mil obrigados, amiga Armelinda!!!
ExcluirBenditos os “Garrinchas” e os que sabem vê-lo além de suas eventuais deficiências!!!!!
Realmente, obrigado!!!!!
Olha, amigo escritor, esse pedaço de fio temático poderia ser o embrião de um de uma novela, ou de um romance.
ResponderExcluirVeja bem:
Onde o "velho" nasceu? Quem eram seus pais? Como fora sua infância? Com quem ele conviveu? Que fatos marcantes lhe aconteceram? O que houve com sua perna? Por quê? Houve amores? Qual a grande dor? E depois? Garrincha morre? Quem morre primeiro? E depois?...............................?
Sabe, amigo?! Está na hora!
Ahhh..... escritora.....! Acho que sou escritor de retalhos.... de pedaços curtos...!
ExcluirAlguma coisa do velho está dita em feedbacks desde a parte 1... acho que ao todo haverá 4 ou 5 partes...!
Mas sei que na TUA mão, isto viraria um romance que faria chorar...! Que nome teria o Velho em tua mão, tu que escreves mulheres?!
CLARÊNCIO.
ExcluirTu te lembras que Clarêncio usa a muleta por causa de uma briga que teve com o irmão?
ExcluirBrigaram por quê?
Penso que Clarêncio é um bom nome! E suponho que ele tenha tido uma vida rica de experiências, mas seus mais amados já se foram... Talvez haja um filho, nora e netos que não conhece... E o irmão que brigaram já deve ter lhe perdoado, mas elesse não sabem disso... Bem... Vejo cenas...
ExcluirComo é bom um final feliz para os dois, um cuidando da solidão do outro...como interpretei na parte 1, o Garrincha ajudou o velho mais que o velho ao Garrincha, que sabia se defender bem...rsrsrs...O Garrincha trouxe alegria ao viver daquele triste senhor
ResponderExcluirInterpretaste certo, de fato.... mas a história ainda não terminou....! Há acontecimentos ainda que movimentarão a vida desses dois....!!!
ExcluirLegal....mas torcendo por um final feliz para os dois amigos, que embora diferentes,são iguais nos obstáculos que a vida lhes impôs.
ExcluirSempre torço pra finais felizes!!!!
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