Bora Cronicar
O Velho e o Garrincha - parte 3
Não houve o que fizesse Garrincha usar a coleira que o velho ganhou do vizinho que trabalhava na construção civil. O velho até tentou, mas jamais conseguira. De alguma forma, Garrincha sempre evitava. Na única vez que ele conseguiu colocar a coleira no Garrincha, ele espichou seu pescoço fino e, deitado, empurrando com a pata boa, conseguiu tirar a coleira.
Depois, mordeu-a forte, olhando para o velho, e largou-a aos pés da muleta. Desde então, o velho nunca mais tentou colocar a coleira no Garricha. Com o tempo, o Garrincha passou a dormir dentro de casa. Primeiro, ele colocou o pano pelo lado de dentro da porta. Mas, depois de alguns dias, em uma noite que o velho acordou por ouvir barulho de tiros na rua (o que não era tão incomum, levando em conta o local em que morava), notou um calor ao seu lado. Era o Garrincha. Encostado justamente em sua perna ruim. Parecia não se importar, e estava tão bem acomodado, e dormia um sono tão tranquilo, que o velho sequer ousou acorda-lo.
O Garrincha, enfim, mudou a rotina. E, de alguma forma, alterou as despesas, já tão apertadas. Era preciso comprar algo para que também o Garrincha comesse. E talvez o Garrincha não conseguisse acostumar-se com apenas uma refeição por dia e, às vezes, um pedaço de pão puro à noite. Optou por dividir a sopa com o Garrincha, dividir o saco de amendoim, e comprar um cacho de bananas por semana. Dividiam uma banana todas as noites. Para isso, o velho teve de deixar de comprar um dos remédios. Justamente o que lhe ajudava a dormir. Com o tempo, descobriu que com Garrincha ao seu lado, dormia a noite toda, e não deu falta do medicamento. E era sorrindo que dividia a banana com o cachorro e, ao fim, era mais barato do que o remédio. Uma vez por mês, com a economia feita, dava-se ao luxo de comprar um saco de bolachas de água e sal, e, divida as bolachas de tal forma, que todos os dias passaram a acrescentar bolacha à sopa.
Passaram a ser vistos juntos, todos os dias, no parque. Assim que o velho sentava, pegava Garrincha e colocava-o também em cima do banco e logo sentia Garrincha descansar sua cabeça sobre a perna ruim. Às vezes, ouvindo gritos dos garotos, Garrincha assustava-se, e saía correndo. O velho ralhava com os garotos e preocupava-se porque perdia Garrincha de vista. O coração afligia-lhe, mas Garrincha sempre aparecia, quando os garotos afastavam-se. Ainda que agora fossem companheiros, Garrincha jamais perdera o olhar inquieto e arisco.
Um dia, quando já a vida de ambos havia-se estabilizado com a nova rotina em que tinham um ao outro, depois que Garrincha acordou do sono da tarde no banco, junto à perna ruim do velho, ambos retomaram o caminho de casa. Mas na esquina do parque, esperando o sinal fechar para atravessar a rua, dois garotos vinham em uma bicicleta e, perdendo o controle, bateriam no velho. Garrincha jogou-se contra o pneu dianteiro, fazendo a bicicleta desviar-se e derrubando os garotos.
O velho virou-se assustado, pronto pra ralhar os garotos… mas viu Garrincha sob a bicicleta. O cachorro, assustado, tentava em desespero sair dali, mas ficou com uma pata traseira presa entre os aros da roda da bicicleta. Os garotos, assustados correram. O velho jogou a muleta de lado e sentou-se. Uma cena patética: o velho sentado, tentando soltar a perna do aflito Garrincha, e este grunhindo em um misto de desespero e raiva, ameaçava com mordidas. O velho tentou várias vezes, mas nem mesmo ele conseguia. Algumas pessoas juntaram-se próximas à cena, olhavam as mãos agora ensanguentadas do velho e alguns tentavam afastá-lo, das mordidas. Um policial próximo, instintivamente levou a mão à arma…
E foi em meio a este cenário, com pessoas gritando, Garrincha latindo e grunhindo, debatendo-se, que surge uma mulher, com uma espécie de grosso pano enrolado nas mãos, colocou o pano por sobre o garrincha, que então não mais conseguiu morder, e segurou-o com firmeza, possibilitando ao velho, que soltasse a perna do cachorro. Decidida, pegou Garrincha, enrolado no pano e teve de esforçar-se para contê-lo, entre os uivos de dor e a tentativa de desvencilhar-se. O velho, com incomum agilidade, pegou a muleta e pôs-se de pé. Atônito, com as mãos sangrando, apenas seguiu a mulher. O velho tentou chama-la uma ou duas vezes, mas desistiu, duvidando da própria voz, achando que sabia falar apenas com Garrincha. Sentia as mãos arderem, e foi deixando um rastro de sangue que lhe caía das mãos. Seguiu a mulher que se virou sem falar nada, por duas ou três vezes, para ver se ele ainda a acompanhava. Tinha talvez, entre 30 e 35 anos. Movia-se rapidamente e o velho esforçou-se alem do comum para segui-la de longe pelos dois quarteirões que ela o fez percorrer. Até que, finalmente, ela entrou em uma vila, não muito diferente da que o velho morava.
Chegando ao portão da vila, viu que a única porta aberta era da última casa ao fundo e dirigiu-se para lá. Chegando, nada viu além de móveis simples, mas notou tudo limpo e também notou que havia uma geladeira e pelo menos um quarto e um banheiro além da pequena sala com cozinha, onde uma segunda porta aberta dava para uma espécie de minúsculo quintal. Ouvindo os uivos do Garrincha, resolveu atravessar a pequena residência e deparou-se com duas mulheres: a que pegou garrincha e uma senhora talvez de sua idade, segurando Garrincha em um pequeno tanque de lavar roupas. Apenas a senhora falava, enquanto a mulher mais nova seguia as instruções. Estavam lavando um corte na perna do animal, mantendo-o, ainda firme, por entre o pano. O velho olhava com angústia.
Depois de algum tempo, a mulher silenciosa entrou na casa e voltou com uma caixa de papelão com um pano velho dentro. E depositaram Garrincha na caixa. Este tentou sair, mas simplesmente não conseguiu. Com a pata aleijada e uma das traseiras sem conseguir apoiar no chão, acuou-se, sem tirar os olhos nervosos de todos, prontos para disparar mordidas em quem se aproximasse.
Então, finalmente, a velha senhora olhou para aquele velho de muleta, rosto atônito e mãos sangrando que lhe sujavam o piso limpo, e falou:
— Ele vai ficar bem. Não quebrou a pata, mas talvez fique alguns dias sem conseguir caminhar. Esta é minha filha Beatriz. Ela é muda. — Beatriz abanou para o velho. — Agora, vamos dar um jeito nestas suas mãos, Clarêncio.
O velho desequilibrou-se na muleta, como quem perde subitamente as forças. Quase nem lembrava de seu nome. As raras pessoas que falavam com ele, chamavam-no simplesmente de velho. Nem lembra há quantos anos não ouvia o som de seu nome.
A senhora sorriu… e completou:
— Você não lembra de mim? Eu sou a Júlia.
Luís Augusto Menna Barreto
25.3.2019
Bom dia poeta, quem será Julia ??? Aconteceu um fato desagradável para trazer de volta Júlia para vida do Clarencio, já diz o dito popular" há males que vem para um bem"....espero que o reencontro com Júlia seja transformador e bom para a vida de todos eles....e que o Garrincha se recupere totalmente...
ResponderExcluirOlá Tel!!!! Júlia é a menina que um dia, sessenta anos atrás, pediu a ele o apontador!
Excluir(O Velho e o Garrincha - parte 1)!!!!!
Amanhã (terça-feira) a parte final!
Super obrigado, Tel!!!!
A menina dos amendoins caramelados, como pude esquecer esse detalhe tão importante na vida dele,...que bom que ele a reencontrou, perdoe minha fallha....
ExcluirEssa mesma, Tel....!
ExcluirE ela fechará este pequeno conto amanhã!!!
A julia voltou no momento exato!! Será destino? E a partir desse momento onde ficou Julia?Fiquei cheia de questionamentos Poeta!!
ResponderExcluirEu não sou tão narrativo... acho que por isso, escrevo histórias curtas...! Gosto de contos com lacunas, para serem preenchidas pelos leitores.... .... mas amanhã, com a parte final, muita coisa será respondida..!!!!!
ExcluirObrigado, Michele!!!!
Como diz o ditado popular, "até as pedras se encontram" olha aí a volta de um amor dos tempos de escola, que maravilha. Outra vez, minha crença no destino, se reforça. Que lindo o desenvolvimento dessa amizade, onde um faz tão bem ao outro. Perfeito, amei.
ResponderExcluirE eu amei esse teu comentário tão carregado de carinho!!!
ExcluirO destino, esse incompreendido.... a Mão de Deus que tanto cuida nossos caminhos!!!
Obrigado, Nice!!!!
Ah!, que lindo encontro!!!! Apesar de ser em um momento de dor física...houve a cura de uma dor emocional...a saudade que o Clarêncio sofreu por tanto tempo!
ResponderExcluirComo disse a Nice: que destino danado...!
E...novamente a DEUSCIDÊNCIA aconteceu!!!!
Adooooooooro esse teu “neologismo”!!!
ExcluirCom tua permissão, vou passar para meu vocabulário: “DEUSCIDÊNCIA”!!!!
Obrigado, Armelinda!!!!
Méri, isso não é uma crônica. Isso é um conto.
ResponderExcluirE é um conto LIIINNDOOO!!! LINDO, LINDO, MESMO.
Hoje não quero falar nem de teoria nem de técnica literária. Quero falar de conteúdo.
Quero enfatizar o fato de Garrincha não aceitar a coleira. Quão metafórico é isso! E que metáfora forte!
É verdade, alguns "BICHOS" não aceitam coleira. Eu sou um deles.
Outro aspecto bem metafórico: o "BICHO" ferido esbraveja e morde. Ele não "desmaia", ele "vira fera".
Valeu, escritor!
PARABÉNS e um grande abraço!
Uau!!!!!! 😍
ExcluirSuper obrigado!!!! Imaginei Garrincha como um ser que a vida ficou o tempo todo ensinando que teria de virar-se sozinho... não aprendeu e nem teve chance de “ser coitado”! Tem a valentia do sobrevivente...!
Quanto à coleira era quase um recado, quando a tirou e colocou aos pés da muleta: “eu não ficarei porque sou obrigado! Ficarei o quanto me fizeres gostar de ti”!
De fato.... quando comecei, era pra ser só uma crônica... mas perdi a mão! Está um pequeno conto! Amanhã, o primeiro final!!!
Obrigado, escritora!!!!!!!!!
Oi amigão. Tudo nesta vida têm passagens que embaralham a nossa jornada. Hoje um fato presente com ligações passadas e o que trará para o futuro? Vamos esperar pra saber. Uma coisa é certa quem planta colhe na razão direta do que plantou, agora quem plantou manga jamais colherá açaí.
ResponderExcluir.... mas sempre tema esperança de que quem tenha plantado o açaí, compartilhe com a gente, e queira um pouco da nossa manga!!!
ExcluirNão é isso, amigão?!!!!!
Ahhhh meu amigo tu mexes com o nosso coração com estas crônicas. Dizem que cães e gatos curam seus donos. São como filhos. O que será que vira de bom para Clarencio e Garrincha?? 🤔 No aguardo das novidades!
ResponderExcluirEu diria ainda que o AMOR cura seus donos!
ExcluirAmanhã, o primeiro final desta história, amiga Sônia!!!!
Que lindo esse amor, como a vida eh em.... Ahhh Garrincha quem diria que iria trazer tantas coisas boas na vida do velho. O amor cura, trasforma vidas também e velho ou seja Clarêncio saiu da solidão seu amigo 🐕 achou a Julia 😍 ohhhh vira um filme na mente ao ler te. Parabéns poeta emocionando todos sempre com suas crônicas 👏👏👏👏😊☺
ResponderExcluirNem sei o que dizer. Estou realmente feliz demais com teu comentário!
ExcluirEu espero que gostes da parte final, amanhã!!
Super obrigado, guria!!!!