Tem coisas que depois que passa, eu fico relembrando e quase nem acredito.
Foi um dia muito confuso.
Mas no Marajó, isso é sempre possível!
O primeiro “ping" eu nem notei. (Todo mundo sabe que “ping ping” é quando a gente quer descrever o barulho de algo pingando, né?). Cheguei no gabinete, e havia como que uma gota d’água na mesa e algumas micro gotinhas em volta.
Naquele momento da chegada no trabalho, naquela fase que a gente ainda nem percebeu direito que não está mais dormindo e que, sim, é verdade, estamos no trabalho, nem cheguei a ponderar do porquê haveria uma gota em cima da mesa, e simplesmente passei as costas da mão na gota e pronto.
Algum tempo depois…: “Ping”!
Hein?
“Ping”…………………………………………. ping… Testa enrugada… momento de surpresa… olho pra cima.
Em outra crônica, já comentei que o pé direito do fórum, uma construção antiga e bonita, na beira do rio, é muito alto. O que acho que não comentei é que uso óculos e tem coisas pequeninas que não enxergo. Espremi os olhos. Não consegui ver muita coisa no teto. Instintivamente, olhei para a janela, mesmo sabendo que estava sempre fechada. Espichei o ouvido. (Tá, “espichei o ouvido” é só uma expressão, porque, fora o “Camarão”, um garoto da minha rua, lá no sul, nunca vi alguém que conseguisse realmente “espichar" a orelha voluntariamente). Disse isso pra descrever aquele momento em que a gente faz todo o silêncio que consegue e foca a atenção para tentar escutar alguma coisa. Naquele momento, o que eu tentava escutar era o barulho da chuva, porque no Marajó, especialmente no inverno, a chuva vem de uma hora para outra. Mas nem era inverno, ainda!
A propósito: o inverno no Marajó, começa mais ou menos por novembro e vai mais ou menos até março. E não que faça frio. A diferença é simplesmente porque é o tempo das chuvas. Assim, óh: no verão, todo dia chove. No inverno, chove o dia todo. Simples assim.
“Ping”. Bem em cima da mesa. Já repararam que goteira tem essa característica? Goteira sempre cai em uma lugar que efetivamente importuna e temos que arrastar algo de lugar. Nunca é em um cantinho discreto onde poderíamos colocar um balde sem que incomode ninguém! Pois essa era bem em cima da mesa. Mais que isso: bem onde fica o processo quando eu o coloco na mesa para lê-lo.
Como não escutei barulho de chuva, pensei em fazer o que tinha de ser feito: chamar o Goela.
Acho que nem tinha reunido ar no pulmão pra chamar o nome dele, e ele entrou com aquele passo descansado:
“Doutor o delegado tá aí com a Merenda.”
Merenda? Eu estava há dois meses, já, no Marajó e já havia aprendido que “merenda" era um lanche reforçado. Quando alguém diz “vou merendar”, pode significar que almoçará ou jantará. Daí que quando o Goela disse-me que o delegado estava trazendo a merenda, fiquei sem entender direito. Mas o que até aqueles dias eu já havia entendido muito bem, é que o melhor que eu poderia fazer quando algo parecia diferente, era simplesmente esperar pra ver como se resolveria. Dai, fiquei quieto e disse para o delegado entrar.
Na porta apareceu uma mulher loura, muito pequena, com as mãos para trás. Estava algemada. O delegado entrou conduzindo a mulher.
“A Merenda vai me enlouquecer, doutor.”
Ah, tá: “Merenda” era a loura! Ainda bem que eu simplesmente esperei!
Fiquei quieto e esperei.
O Goela entrou novamente, com o auto de flagrante que o próprio delegado havia trazido e o Barganha (Diretor de Secretaria), havia recém autuado. Olhei rápido:
FLAGRANTE POR FURTO NOTURNO - ARTIGO 155, § 1º DO CÓDIGO PENAL - AUTUADA - CAROLINA DO SUL DEIVIS - VULGO MERENDA.
“Ela tá numa gritaria desde ontem, doutor. Quer sair pra ver a Naza. Mas já falei que não tem como! Os navios estão passando lotados. Acho que hoje nem vai encostar o navio, vai passar direto. Véspera do Círio, navio passa lotado de Breves pra Belém, doutor”, dizia-me o delegado.
Era muita informação.
Resolvi concentrar-me e retomar: tinha uma goteira; chamei o Goela; apareceu o Goela com o delegado, que apareceu com a Merenda, que se chama Carolina do Sul, que disse que quer ver a Naza… … suspirei.
“Doutor, a gente autuou a Merenda ontem à noite. Tava furtando no navio pra Belém.”
O “navio pra Belém” é o seguinte: Todos os dias, saem pelo menos três navios de Belém, em direção à Breves, no Marajó e no sentido contrário, de Breves, Marajó, pra Belém. Saem às 18 horas e, entre 2 horas e 4 horas da madrugada os que partem de Belém encostam na cidade; e entre 22 horas e 23 horas, encostam os que saem de Breves para Belém. Eles atracam no trapiche municipal o tempo das pessoas descerem e outras subirem, e retomam viagem. Os navios que passam possuem de 2 a 3 conveses. Normalmente os camarotes ficam no convés superior e, nos inferiores (com acesso direto ao trapiche municipal) ficam as redes. Isso, redes! São centenas de redes. Cada um que compra sua passagem, vai com sua própria rede e ata no navio que, evidentemente, vem com traves em todos os conveses para que os passageiros atem as redes. Daí, fica uma ao lado da outra, encostadas mesmo.
Quando o navio encosta no trapiche municipal, tem todo um movimento de gente entrando e saindo. Entram os carregadores da beira, que são aqueles que pegam as bagagens dos passageiros que descem. Os “padeiros”, que é como são chamados os que entram com um imenso cesto com pão quentinho feito na própria madrugada. … e entram, também, algumas pessoas como a Merenda e outros eventuais amigos do alheio que ficam de olho em quem ainda está com sono muito pesado, ou distraído e levam as bagagens embaixo da rede em que dormem. São inúmeras as histórias de pessoas que acordam na cidade de Breves, sem a bagagem. E tudo é muito rápido e o movimento no navio é muito intenso. A Merenda era uma “especialista" neste tipo de ação. Pegava coisas pequenas: uma sandália, uma sacola com compras… eventualmente uma bolsa. Ela nunca pegava mala ou mochila, justamente porque era conhecida na cidade. E, se ela saísse com uma mala ou mochila do trapiche, todos iriam desconfiar.
Na verdade, depois de algum tempo, todo mundo já sabia que ela aprontava. Mas poucas vezes era pega, porque sempre saia pulando para outros navios e barcos atracados no trapiche e desaparecia no escuro da beira. Mas, dessa vez, havia sido pega.
“Doutor, eu não tava roubando, eu queria ir ver a Naza!” A Merenda estava com um “quê" de sincero desespero nos olhos. Mas eu confesso que naquela hora da manhã eu ainda não estava processando muito bem as coisas.
“Ela foi pega com uma mochila com roupas, doutor”, disse o delegado.
“É minha a mochila!” Gritou a Merenda.
“Ping……”
“A gente conferiu e as roupas são todas maiores que ela, doutor”.
“Peguei a mochila da Carolina enganado. Eu tava com pressa, doutor, o navio já ia sair…”
Eu sei que eles continuavam falando, mas, na minha cabeça, eu fiz um recesso:
Deixa eu processar de novo. Com calma: cheguei cedo, "ping" na mesa, chamo o Goela, entre o delegado com a Merenda que é Carolina do Sul Deivis, que disse foi presa por furto, que disse que pegou enganada a mochila da Carolina, que queria ir ver a Naza!
Nesse momento acho que chacoalhei a cabeça sem querer de um lado para o outro, como que querendo despertar!
“… todo o ano eu vejo a Naza. Tenho que ver esse ano também.”
“Tá vendo, doutor?”.
Ping…………..
Bem em cima do auto de flagrante que tava aberto.
“Goteira sem chuva, doutor?”
Descobri que não estava chovendo!
“Isso deve ser cano vazando lá em cima, doutor. Mande o Goela buscar o Garantia, doutor. É ele que arruma na delegacia, quando dá goteira.”
E o Goela, nesse mesmo instante, entrou novamente no gabinete:
“Doutor o Iutá (essa letra no começo da palavra, aí, não é um “L”, é um “i”) tá aí com a Draga. Querem falar com o senhor. Tão dizendo que a mochila é da Draga mesmo!
Eu estava como que em um estado letárgico ainda. Tentei lembrar a última palavra que eu havia dito, mas acho que tinha sido “boa noite” pro Manobra, quando passei na frente do açougue do Retalho, ontem.
Ainda sem eu ter dito nada, entrou um senhor louro, com olhos bem azuis e a pele curtida de um pescador, ao lado de uma mulher imensa.
“Doutor a mochila era minha, ela pegou errado.”, falou a mulher.
“É dela, doutor, é dela”! Dizia a Merenda.
“Doutor minhas filhas vivem pegando errado uma coisa da outra”, falou Seu Iutá. A culpa é minha. Criei elas sozinho, doutor, e quando um pai cuida de gêmeas, é assim, a gente acaba comprando tudo igual pras duas pra não ter briga em casa. A Mãe morreu no parto, doutor.”
Ai ai ai… muita coisa pra processar de novo: gêmeas? GÊMEAS? Meu Deus! A Draga dá mais ou menos três vezes o tamanho da Merenda! Fiquei com o olhar meio parado, meio perdido na direção de todos.
Ping.
Seu Iutá tomou a palavra: “É, doutor, quem não tá acostumado com elas estranha, né? Mas sempre foi assim. Essa Carolina aqui (apontou pra Merenda, que eu tinha lido, era Carolina do Sul Deivis) quase não nasce, doutor. A mãe já tava morta quando tiraram ela, gitinha, quase não conseguiu chorar. Essa outra Carolina aqui (apontou pra Draga, que também era Carolina) nasceu já berrando, grande que só.” E foi-me oferecendo os documentos das duas. Eu li os dois documentos: “Filiação: Iutá Deivis e Jorja Raimunda Deivis” nos dois. Data de Nascimento: 4 de julho de 1998. Nome da Merenda: Carolina do Sul Deivis. Nome da Draga: Carolina do Norte Deivis.
Tudo bem, respira. Agora diga-me: tem como acreditar nessa história? Qual a probabilidade de um homem chamado Iutá, no Marajó, conhecer um Jorja? Daí pra terem filhas chamadas Carolinas querendo ver a Naza, foi o de menos. Mas nascerem em 4 de julho????
…
Vou resumir:
A Merenda não havia furtado naquele dia. E era verdade: queria mesmo ver a NAZA. Mas Naza com “z”, não NASA com “s" que é a agência espacial americana. Era outubro. Véspera do Círio de Nazaré, um dos maiores eventos de Fé Católica do Brasil, senão o maior deles! E “Naza" ou “Nazinha”, é o jeito carinhoso e íntimo com que o povo do Pará refere-se e devota-se à Nossa Senhora de Nazaré!
…
A goteira? Era um cano acima do forro, que havia rachado. O Goela chamou o Garantia, que resolveu o problema.
A propósito: o nome do Garantia, é Uóxinton!
Por Luís Augusto Menna Barreto