Oi, tia. Eu sou o Pilha.
Eu sei que tu não tá acostumada a me ouvir contar histórias. É sempre meu amigo que conta nossas histórias. Mas hoje, eu que quero contar.
Eu não sei o nome dele. No dia que ele chegou na minha sinaleira, eu perguntei o nome e ele não sabia. Eu perguntei como a mãe dele chamava ele. Eu não perguntei como o pai dele chamava, porque quem vai pra sinaleira pedir pros ricos, nunca tem pai. Ele me falou que a mãe dele chama de “estrupício”, de “peste”, de “moleque”… Mas eu não ia chamar assim. Daí, teve uma vez que eu disse pra ele: “deixa de ser mané!”. E ele ficou parado, olhando com cara de bobo. Daí, meio que pegou.
Quando ele chegou na minha sinaleira, ele era muuuuuuuito mané. Não sabia nada. E ele era muito pequeno, não chegava na metade da altura das portas dos carros dos ricos. Eu tive que ensinar tudo pra ele. Eu lembro que ele nunca tinha andado de carro, e daí, eu ensinei como fazer pra ele conseguir. Ele disse que ficou tonto, que foi esquisito, porque ele que ficava parado e o mundo que passava correndo*. E eu quase morri de rir, no dia que levei ele pela primeira vez num elevador. Ele achou que tinha morrido e só ficava gritando que não queria ficar morrido, que queria desmorrer**.
Ele fala muito. Fica o tempo todo falando. Ele fica repetindo “Pilha, lembra aquela vez…”, “Pilha, e aquela outra vez que a gente…”. Quando ele já contou muito todas as histórias que lembra, ele inventa uns jeitos diferentes de contar: “Ei, Pilha, já pensou se naquele dia que a gente fugiu do hospital, um rico parasse e nos desse carona? Pra onde tu ia querer que ele nos levasse? Ja pensou se ele nos levasse no Mac Donalds? Eu ia comer uns…”
Eu não gosto muito quando o mané inventa histórias. Porque ele é muito sem noção.
Outro dia, ele foi direto brincar com uns carrinhos que uns meninos ricos tinham deixado na caixa de areia do parquinho***. Ele acha que rico é como a gente. Pra nós, só é da gente o que a gente tá usando, enquanto a gente tá usando. Se a gente larga alguma coisa na rua, e outro pega, o outro que fica dono. É igual a nossa sinaleira. Se a gente não chega cedo e outro pega, é do outro, a gente perde o ponto. Rico não. Se ele larga um brinquedo, o brinquedo ainda é dele, e mesmo que ele não fique brincando toda hora, ninguém pode pegar um pouco. Então, quando ele começa a inventar histórias, é tudo sem noção. E eu tenho medo, porque ele começa a falar coisas que não existem, ou que a gente nunca vai fazer, e daí, depois, ele fica achando que a gente tinha que conseguir alguma coisa parecida com as histórias que ele inventa, e ele fica com raiva.
Um dia ele inventou uma história que a gente tinha três roupas. Ficou o dia todo falando das três roupas e que a gente podia trocar, e que elas não sujavam. Daí, no fim do dia, ele tava todo triste, porque a gente só tem uma roupa, e usa o tempo todo, e quando a gente tava indo embora do parquinho, ele disse que queria ter três roupas. E onde a gente ia guardar três roupas? Se ele tivesse duas, a mãe dele já ia vender uma pra comprar as pedras.
Então, eu tenho que ficar de olho nele, e ir ensinando as coisas.
Agora, ele anda mais quieto. Eu sei que ele ficou brabo comigo. E eu sei que foi por causa da Clarinha. Ele acha que ela vai me roubar dele e a gente vai deixar de ser amigo. Eu nunca vou deixar de ser amigo dele. E eu sei que a Clarinha é rica, vive no mundo dos ricos. E eu nem sei o que deu em mim, pra ir falar com ela. Mas ela é tão bonita.
Depois que o São Jorge salvou a gente duas vezes****, a gente foi numa festa da Igreja que tem o nome dele, lá no final da rua com o rio no meio. E lá tem um vidro pintado com o São Jorge matando um dragão. Eu acho tão bonito, é tão colorido. E daí, eu já fui lá com o mané, um montão de vezes, só pra ver aquele vidro. Eu sei que a pintura não é minha. E eu não quero pra mim. Eu só gosto de ir lá e ficar olhando. E quando vou lá, o Padre não fica dizendo pra gente ir embora. E teve uma vez, que ele até deu um copo de leite bem quentinho pra nós dois e disse que a gente podia sempre voltar pra ver o vidro.
Eu acho que com a Clarinha é assim: uma sensação parecida de olhar o vidro do São Jorge, tomando leite quente num copo limpo! Só que é muito mais forte. Quando ela vai no parquinho, dá vontade de ir lá perto e até falar com ela. Quem leva ela no parquinho é a Tetê. Eu já conhecia a Tetê, porque ela já namorou meu irmão, antes de prenderem ele. A Tetê fica de olho, de longe, mas pelo menos não fica mandando eu sair de perto da Clarinha. A Clarinha não é como as outras crianças ricas. Ela não gosta que joguem pedrinhas no Uálquim. E também grita com outros garotos ricos quando eles correm atrás do cachorro de pata torta do velho “Muleta”. Eu acho que a Clarinha nasceu errado. Não era pra ela ser rica. Porque ela nem pensa igual os ricos!
O mané tá com muita raiva da Clarinha, porque naquele dia, ela disse que não me conhecia, e o bigodudo que tava dirigindo jogou ele no chão. E o mané disse que a Clarinha é uma mentirosa porque falou que ele era assaltante e depois disse que não conhecia a gente. E depois de tudo, o mané achou que eu poderia estar com raiva dele.
Sabe… eu não fiquei com raiva. Eu não sei explicar. Acho que eu tava mais preocupado com a raiva do mané. Ele disse que tava com raiva de Deus, e eu fiquei preocupado. E eu tava preocupado com a Clarinha.
Sabe tia, eu não fiquei brabo com a Clarinha quando ela olhou pra mim, e disse para a mãe dela que não me conhecia. Eu acho que naquela hora, eu fiquei feliz demais com a Clarinha. Eu não sei explicar, tia, mas eu vi que a boca disse que não me conhecia, e os olhos da Clarinha diziam outra coisa. Foi por isso que ela olhou nos meus olhos. Não foi pra mentir na minha cara. Foi pra falar comigo com os olhos, enquanto a boca falava com a mãe dela. Então eu vi que ela nasceu errado mesmo.
O mané não entende, acho que ele é muito pequeno. E ele tá com raiva, então eu também sei que não adianta eu querer explicar pra ele, porque quando a gente tá com raiva, a gente só ouve o que quer. Mas eu sei, que se a Clarinha dissesse que me conhecia, ela nunca mais ia poder me ver. Nem ir no parquinho.
Tia… se ela disse pra mãe dela que não me conhecia… bom… tia…
… a Clarinha gosta de mim!
(FIM)
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**Vide Eu, o Pilha e a Caixa Mágica
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***Vide Eu, o Pilha e os Brinquedos de Deus
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****Vide Eu, o Pilha e os 35 Pilas. Vide também, Um Conto do Pilha
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Luís Augusto Menna Barreto
31 de outubro de 2021