terça-feira, 31 de dezembro de 2019

bora cronicar - Entre a Cruz e a Espada

Entre a Cruz e a Espada


Que eu não gosto de academia, todo mundo sabe! Já contei em crônicas anteriores minha saga quando meu paletó emagreceu e resolveu que não entraria mais em mim!
Então, ocorreu que há alguns dias de uma formatura em direito em que eu teria de usar um paletó, a Ana foi ao shopping ver os preços dos paletós, e voltou com o caso resolvido: eu teria de emagrecer! Seria muito mais barato! E a coincidência disso tudo, era que a formanda que nos havia convidado, era a Camila, personal que me acompanha nos treinos! Seriam duas semanas para diminuir alguns números no manequim!
O resultado, também já contei aqui: deu certo! Mas a que custo… foram muitos “dias de Camila”, que me fizeram gostar das segundas-feiras, porque nas segundas, “não tem Camila”!
Passado o apuro de fazer o paletó engordar para eu entrar nele, continuei a rotina de exercícios com a Camila, porque tenho hérnia de disco e, se paro com exercícios e alongamentos, começa a doer muito. Os exercícios não tem o ritmo frenético de quando eu tinha que entrar no paletó, mas “dia de Camila” é sempre um pequeno sofrimento… e eu sofro três vezes por semana: terças, quintas e sextas! Segunda não faço, porque segunda basta-se por si só! Quarta é dia de jogo do campeonato brasileiro na TV! Então, ficou assim: terças, quintas e sextas. Mas todos os “dias de Camila", sem exceção de nenhum, eu desço (faço o treino na academia do prédio onde moro) torcendo para chegar e a academia estar vazia. Não, não vazia porque não tenha ninguém treinando, não tenho nenhum problema de alguém ver minha preguiça… falo vazia de “Camila”. 
A Camila é uma ótima personal… mas tem um defeito grave, quase fatal para uma personal: ela não falta ao treino! Nunca. Nunquinhas! E pior: não se atrasa! Sabe aqueles efêmeros, mas absolutamente maravilhosos minutos de paz, em que experimentamos o paraíso, minutos que são a maçã do Édem, em que tu vês os aparelhos silenciosos, observas os pesos no suporte, ouves a música de ritmo marcado, e pensa: "é hoje, é hoje!”? Olhas para a tela do celular aguardando aquela notificação que começaria com “Luís, desculpa, mas aconteceu um imprevisto…” Sabes tudo isso? Pois é: com a Camila, não tem a menor chance de acontecer! Quando alguém me pergunta sobre a Camila, eu logo queimo o filme dela! Digo logo que ela é terrível: não, falta, não se atrasa, e não dá muita conversa; ela estuda os treinos, personaliza-os de acordo com nossa necessidade e não tem escapatória: tu só vais sair quando terminar todo o programa. Resumindo: um horror! 
Tu já passaste a experiência de ver novamente um filme que tu sabes como termina mas, assim mesmo, ficas torcendo para outro final? Pois é: eu sempre sei que a Camila vai estar lá! Moro no décimo andar e ainda assim, desço todos os dias pela escada, quando vou para academia, como que para prolongar a esperança de ela não estar… mas, então, mal abro a porta da escada para o Hal do piso da academia, e ouço: “oi Luíííííííís” (ela sempre estica uma vogal, cheia de entusiasmo ao cumprimentar)! 
Enfim, minhas esperanças morrem a centímetros da porta da academia! 
Porque estou contando tudo isso de novo? Por que ao encerrar o ano, a Camila teve uma surpresa: eu entrei entusiasmado na academia. Disse “oi, Camila” usando todos os fonemas, não apenas o meu usual resmungo:
— Oi Luíííííííííííís!
— Humpf…!
Foi assim:
— Oi Luíííííííííííís!
— Oi, Camila! 
Daí, foi assim: sobrancelhas pra cima, naquele inevitável movimento de surpresa; depois a cabeça meio de lado, como querendo entender, e a confusão mental.
Então… ela começou a unir alguns pontos:
Instantes antes de eu descer, ela recebeu um telefonema inusitado: a Ana, justamente a Ana, a pessoa que mais me empurra para a academia, havia ligado:
— Oi Camila.
— Tu já estás na academia?
— Oi Anaaaaaa. Já tô aqui!
— Tem como trocar o dia do Luís? Ele pode fazer amanhã?
— Amanhã não tenho como, porque ninguém desmarcou. Parece que pouca gente vai viajar nesse final de ano.
A Camila ficou intrigada e, obviamente, pensando que eu que havia pedido para a Ana ligar e desmarcar, porque quando preciso, peço sempre pra Ana fazer isso por mim! Então, quando eu desci e cumprimentei a Camila entusiasmado, ela não entendeu bem e ficou intrigada.
Eu notei a expressão intrigada, e expliquei:
— Sabe o que é, Camila…
(Dez minutos antes de eu descer pra academia):
— Essa prateleira tá toda bagunçada, né? — A Ana falou, referindo-se a uma das prateleiras da minha pequena biblioteca/escritório em casa.
— Hum… — (uma resposta prudente… algo que não se decifre. Tinha medo do rumo que aquilo podia tomar).
— E também o teu “cantinho de escrever" precisa arrumar, né? 
— (…). — Aqui, eu arrisquei um “é" quase mudo, algo entre um suspiro e uma concordância inaudível. Definitivamente, o rumo da conversa era perigoso… decidi que esperaria apenas mais uma afirmação!
E a afirmação veio:
— A gente pode aproveitar pra arrumar também…
Eu confesso que não ouvi o resto! Terminei de amarrar o tênis da academia correndo e, da porta, eu disse “tô indo”.
Foi nesse meio tempo que ela ligou pra Camila.
— Sabe o que é, Camila, a Ana começou a pensar em arrumar a casa…

Luís Augusto Menna Barreto

31.12.2019

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

O Açaí de 20, a Plaqueta e a Black Friday

O Açaí de 20, a Plaqueta e a Black Friday

Do Bléqui nunca se soube.
Ganhou o apelido naquela sexta-feira. E do apelido, não se pode dizer póstumo, porque o destino foi-lhe incerto.
Aquela loja, a primeira de uma grande rede, instalou-se em Marajó City ao findar de outubro. Foi um rebuliço! Os nativos dividiam-se entre o amor e o ódio! Os preços realmente eram mais baixos. Mas talvez fosse coisa de inauguração. 
O fato é que do Bar do Seu Nonô ao açougue do Retalho, do Hospital à Igreja, o assunto era a loja, os produtos e os preços. 
Um dos mais irritados era o Mariposa, comerciante local que, até então, dominava na cidade:
— Meia dúzia de badulaque diferente, que o povo daqui nem vai saber usar, e já correm tudo pra lá!
Falava com o copo na mão, sem se dirigir a ninguém especificamente, enquanto o Manobra, com alguma dificuldade equilibrava-se apoiado com uma das mãos no taco de bilhar segurando o copo de cerveja com a outra, e o Retalho manejava o cutelo em uma peça de carne. 
— Fala Mariposa! Manobra, toma uma pra acordar! — Era o Goela, passando. O Mariposa logo desconfiou:
— Tá indo pra onde, Goela? Já sei, pra loja nova! Agora é isso! Agora meu comércio tá lá, às moscas. Assim, acabo tendo que demitir os funcionários!
— Que “funcionários”, já, Goela? Lá só tem o Bolacha que fica dormindo no balcão e tu não pagas ele faz bem uns 3 meses!
O fato é que o Goela estava indo mesmo na direção da loja nova. Estava com um mandado de intimação para o Rogério Augusto Pantoja, até então "Açaí de 20”. Tá, pra quem não sabe, quanto mais grosso o açaí, mais caro paga-se pelo litro. Daí, que açaí de vinte reais seria grosso pra caramba!
Pois o Goela tinha que intimar o Açaí de 20 para uma audiência de pensão de alimentos do filho da Plaqueta. Perguntando aqui e ali, o Goela soube que o Açaí de 20 estaria na loja nova! O Goela foi faceiro por ter um motivo de ir até a loja, até porque, era um dos raros lugares que tinha ar condicionado ligado direto! Na verdade, logo depois da loja inaugurar, houve uma espécie de “surto de resfriado” na cidade. O pessoal, que não estava muito acostumado com ar condicionado, adorou ficar entrando e saindo da loja bem fresquinha, e pronto: com os constantes choques térmicos, na semana da inauguração foi um festival de tosse-tosse na cidade!
Mas, enfim, o fato é que o Goela encontrou o Açaí de 20 na frente da loja, em uma cadeira de plástico. 
— Fala, Açaí.
— Qual é, Goela? Nem vem pro meu lado com papel do Fórum!
— Já era! Te botaram na justiça. Ou tu assinas, ou tu assinas, sabe como é!
— Quem foi? A Vera Vira Copo ou a Delícia? 
— A Plaqueta!
— Égua, dessa eu não esperava! Já tinha falado com essa pequena que ia dar uma forra pra ela! Ia comprar umas fraldas pro moleque nascido.
— E porque tu não compras, leva pra ela e tentas resolver antes da audiência?
— Tô esperando a “bléqui fráidi”. 
— Égua! Que é isso, já?
— Bléqui fráidi, Goela. Tá aí na faixa, olha!
Em cima da entrada principal, havia uma faixa anunciando que a loja abriria na quinta-feira, às 23h59min, com toda a loja em promoção, descontos de 50% até 80%.
— Já tô esperando, Goela!
— Tá doido, Açaí? Hoje é terça! 
— Daqui não saio, Goela! Vou ser o primeiro a entrar e vou comprar o que puder e revender nas ilhas. Vou “enricar”! 
A notícia espalhou-se rápido. Muito mais eficiente do que a faixa ou o comercial na rádio local que tocava duas horas por dia nas caixas de som amarradas aos postes, foi o Goela ter falado para a Tutela, que o Açaí de 20 já estava fazendo fila esperando a tal “bléqui fráidi”.
Para maior desespero, ainda, do Mariposa, todo mundo começou a ir para a frente da loja, para ver se era verdade. Como muitos sequer sabiam ler e os que sabiam tinham preguiça, ficavam com a notícia do boca-a-boca. No Bar do Seu Nonô, já estavam comentando:
— Pois é, o “Bléqui" disse que tem coisa quase de graça, na meia noite!
O “Açaí de 20” já havia virado “Bléqui”. E a notícia dos descontos da loja nova virou febre.
Na quinta-feira, eu estava terminando de despachar o último processo do dia, por volta da 16h, e perguntei para o Goela:
— E aí, Goela? Tu vais pra fila da black Friday, também?
— Não, doutor. Eu e o pessoal da bola já temos outra estratégia. Vamos concentrar no açougue do Retalho, tomando uma, e esperar a muvuca da entrada passar. Daí, a gente pretende ir na loja na madrugada, quando tudo estiver calmo.
— E o que vocês pretendem comprar?
— Nada demais, doutor: a gente quer mesmo, é comprar bebida, que diz que até bebida vai ter em promoção!
Guardei o “hein?!” pra mim, e resolvi nem argumentar sobre não entender a vantagem de concentrar bebendo e pagando caro por bebida, para depois comprar bebida barato… conhecendo o Goela e o pessoal da bola como eu conhecia, a probabilidade de eles beberem muito mais do que iriam comprar depois, era enorme! Mas, enfim, era a febre da “black Friday”.
O movimento em direção à loja, foi algo inacreditável! Por volta de 20 horas, não havia mais condições de nenhum veículo passar na rua da beira, em frente à loja! Segundo contaram, o Bléqui (antes Açaí de 20) havia ficado todos os três dias na frente da loja. Até tentou organizar uma fila, mas depois ficou impossível, e as pessoas empurravam-se em frente às portas fechadas que abririam às 23h59min. Contaram que o Bléqui chegou às vias de fato um sem número de vezes, com cada um que falava em entrar primeiro. Reivindicava a socos o direito de ser o primeiro a entrar. Mas de um tempo pra diante, nenhuma briga mais ouve, porque a aglomeração era tanta que não havia sequer como espichar o braço para dar socos. 
A cidade, com exceção da rua da Beira, estava vazia, e toda a população parecia aglomerar-se na rua da loja. O fim da multidão já havia chegado no açougue do Retalho, e muitos dos que esperavam a loja abrir, passaram a entrar na “concentração" do pessoal do Goela. O Retalho nunca vendera tanto, afora o fato de que ele não tinha nada a ver com os descontos prometidos, e vendia caro o litrão de cerveja e o copo de cachaça!
Naquela mesma noite de quinta para sexta-feira, eu viajei para Belém. Quando o navio encostou no trapiche, por volta de 22h, a multidão na rua da Beira já era inacreditável. O Padre reclamava que na procissão da padroeira não havia tanta gente. Houve muita gente desembarcando e correndo no sentido da multidão. O navio partiu para Belém com muito pouca gente e foi uma das viagens mais confortáveis que já fiz, tendo muito espaço pra atar minha rede no navio!
Do havido, eu soube somente quando cheguei na semana seguinte:
Da turma do Goela, dizem que apenas o próprio Goela e o Tronco deram conta de entrar na loja. O resto ficou pelo caminho, ou amanheceu dormindo no açougue do Retalho. O Goela, sem querer, marcou pontos com a Afrodite, porque disseram que quando ela saiu de casa procurando o Goela com o dia amanhecendo, ele estava dormindo abraçado a um liquidificador bem na porta do fórum. Como de bobo ele não tem nada, logo disse que tinha encarado a multidão pra comprar o liquidificador pra Afrodite, embora ele não faça a menor idéia do que houve para aquele liquidificador aparecer na mão dele. 
Descobriu, pela fatura do cartão de crédito, que havia comprado na loja do Mariposa, pelo dobro do preço! 
O Bléqui (que jamais voltou a ser Açaí de 20), desapareceu! Ninguém lembra dele na loja, ninguém lembra depois! Quer dizer… notícia teve: a loja, que tanto rebuliço causou na cidade com a tal “black Friday”, fechou as portas. 
Tu estás te perguntando "o que isso tem a ver com o Bléqui?”, caro leitor?
Bem… como ele desapareceu, logo começou a correr notícia de que uma visagem dele passou a aparecer para pessoas que compraram na black Friday. E essa notícia espalhou-se também. Quem mais a divulgava, inclusive, era o Mariposa! 
Tem quem jure, aliás, que desde a noite da black Friday, o Mariposa ocasionalmente era visto à noite, levando um lençol branco meio escondido… Mas depois da Tutela ter sido perseguida pela visagem à noite, a notícia não teve mais volta e ninguém mais entrou na loja nova! 
No dia da audiência, já em março, nem notícia dele, e a Plaqueta jurava que ele estava com uma morena numa ilha próxima, onde havia montado, ele mesmo, um armarinho. 
O nome do estabelecimento era “Bléqui Fráidi - a loja onde todo dia tem desconto”
Foto real da frente da loja Americanas em Breves, Marajó, Pará, na noite de quinta para sexta-feira em  28.11.2019, às 23h30min.
Luís Augusto Menna Barreto

24.12.2019

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

O Sumiço do Gerente e a Black Friday

O Sumiço do Gerente e a Black Friday

O Gerente jogava muito. Dono de um estilo elegante, adonava-se do meio campo, com a cabeça erguida, toques rápidos e passadas largas. Era um Zidane Marajoara! Ganhava a vida assim, nos gramados do arquipélago, ora jogando por uma cidade, ora por outra. Os prefeitos sempre o “contratavam" para levar o time da cidade até a final do campeonato, o que sempre dava muito status e rendia frutos políticos, especialmente em anos eleitorais. Gerente chegara a tentar a sorte na capital, no clube do Remo, mas não deu certo. Não lhe faltava futebol. Faltava-lhe disciplina! No Marajó não havia treino. Era chegar no domingo, fardar, entrar em campo e fazer o que sabia fazer: conduzir os companheiros com toques precisos que imprimiam uma velocidade alucinante ao time. 
Ele encostava pouco na bola, dificilmente dava mais de dois toques antes de encontrar o espaço exato numa linha às vezes reta, às vezes curva para que a bola passasse entre várias pernas adversárias e chegasse no ponto exato onde o companheiro de time haveria de estar segundos após ele tocar na bola. Sua precisão organizava o time e ele gesticulava aos companheiros. Era como se gerenciasse a equipe, determinando o que cada um haveria de fazer, sem que ele precisasse realmente ficar com a bola. Daí que lhe rendera o apelido: Gerente!
Como já era certo acontecer, o time que o Gerente defendia, estava na final! Seria domingo, dia 29 de novembro de 2015! Na quarta-feira, dia 25 de novembro, Gerente estava no açougue do Retalho, jogando sinuca com o Manobra, motorista da ambulância, e com o Mariposa, que se fingia interessado no jogo, mas todos sabiam que estava esperando a Pequena passar para jogar uma saliência. Como o açougue fica na rua da beira, dava pra ver o navio apontando longe no rio. Dali com meia hora haveria de encostar no trapiche municipal, perto de 23h, onde não demoraria mais do que 10 minutos. Já dava para ver alguma movimentação das pessoas que iriam para Belém, movimentação de carregadores que saltariam para o navio antes mesmo de estar atracado, bem como alguns “amigos do alheio” como a Estrupício, que geralmente entrava de pés descalços e saía com sandálias e alguma mochila nas costas, bens dos mais desatentos ou dos que dormiam profundamente nas centenas de redes atadas nos dois conveses. 
Mas a surpresa deu-se quando o Navio estava para encostar e o Gerente despediu-se do Manobra e falou para o Retalho pendurar a conta do goró. Gerente foi para o trapiche com ares de quem embarcaria, o que causou espanto! O retalho tirou a caneta da orelha e anotou a dívida num bloco pendurado em um barbante perto da parede atrás do balcão, sem dar muita atenção. O Manobra apoiava-se com dificuldade no taco de bilhar e não entendeu direito, e também nem percebeu os dois enfermeiros que passaram ofegantes, carregando um doente na maca e xingaram o Manobra por não estar no hospital para conduzir o doente na ambulância até o navio. Mas o Mariposa, que havia apostado dois mil reais no Glorioso, o time da cidade, arregalou os olhos! Foi até frente do açougue e espichou o pescoço para o lado do trapiche! Era fácil ver o Gerente que se destacava pela altura acima da média marajoara. 
— Ele tá embarcando! Ele tá embarcando, Retalho!
— Quem? Tá doido, Mariposa?
— O Gerente, ele tá embarcando…
O Mariposa foi saindo em direção ao trapiche com um copo na mão, enquanto o Retalho não entendia muita coisa, mas não deu importância… ele estava acostumado a ouvir conversas sem sentido depois de alguns copos dos fregueses. O que ele estranhou, foi que quando a Pequena passou pelo Mariposa e olhou daquele jeito malicioso de canto de olho, o Mariposa nem deu atenção e seguiu como se nem a tivesse notado. Acostumada com os gracejos do Mariposa e de olho em descontos na loja dele, ela ficou furiosa de ter sido ignorada! Na mesma hora apressou o passo e o Retalho ouviu apenas algo parecido com “ah… mas ele vai ver a pssica que vou jogar nele!”  
Quando o Mariposa venceu os duzentos metros que separam o açougue do Retalho até o Trapiche, o navio estava, já, desatracando, e o Gerente, subindo para o convés superior, onde fica a lanchonete do navio. O Mariposa tentou gritar:
— Gerente! E o jogo? E o Jogo? 
O Gerente, tendo ouvido o Mariposa, tentou gritar de volta, mas tudo o que o Mariposa conseguiu ouvir, por cima do barulho do motor do navio e das marolas do rio, foi algo como:
— … “frade”!
“Frade”? O Gerente iria rezar, pedir proteção, confessar os pecados? O que aquilo queria dizer?
Não entendeu direito. Pensava nos dois mil reais apostados e sabia que sem o Gerente no meio campo, o Glorioso nunca ganharia o título! E agora? O prefeito! Tinha de avisar o prefeito! Era caso de interesse municipal! 
A manhã de quinta-feira foi agitada. Com a notícia que recebera do Mariposa na madrugada, o prefeito marcou uma reunião de emergência com a base aliada na Câmara dos Vereadores (seis dos nove vereadores), com os comerciantes próceres da cidade, e com o Aglutina, o técnico do Glorioso! Decidiram por fazer sair a lancha particular do prefeito, pilotada pelo Dentadura, o piloto de lancha mais rápido do Marajó, que faria o percurso até Belém em menos de 6 horas, para procurar o Gerente. Mas onde? Não importava! O importante era fazer alguma coisa, mostrar para a população que havia empenho para trazer o Gerente. 
Eu soube disso tudo na sexta-feira. No meio da manhã, o Recado, um dos assessores do prefeito, entrou no Fórum apressado e pediu para falar comigo. O prefeito havia pedido para o Goela ir com o Dentadura e realizar a missão de achar e trazer o Gerente a tempo do jogo de domingo!
Claro que diante de uma situação de interesse municipal desta envergadura, concordei e chamei o Goela!
— Ele não está doutor! — Apressou-se a Tutela a vir na porta do gabinete dizer-me!
— Como assim?
— Ele saiu na lancha do prefeito hoje cedo!
— Hein?
Pois é, o Goela já havia ido, e o Recado deu-me a mensagem com quase um dia de atraso.  Mas, enfim, era um caso de interesse municipal, e relevei o Goela haver saído sem avisar
O comentário na cidade não era outro. No bar do Seu Nonô, no açougue do Retalho, na loja do Mariposa, no trapiche, na praça… “O Gerente voltaria a tempo de dar o título ao Glorioso?"
Eu viajei na sexta-feira à noite, mesmo. Às 22h, embarquei no navio que, depois de mais ou menos 10 horas, atracaria em Belém, e até aquele momento, ninguém sabia se encontrariam o Gerente, se ele jogaria ou não a final.
O que foi? Sobre um final para isso? Eu fui embora, não vi nada! 
Tudo bem, o que eu soube depois, foi que o Glorioso foi campeão. Gol do Gerente cobrando uma falta marcada de forma duvidosa aos 38 minutos do segundo tempo. Cartão vermelho para o Rasga Diabo, zagueiro do time adversário, o que rendeu quase vinte minutos de confusão tendo que o Tonelada, policial militar entrar com o contingente todo: dois policiais (contando com o Tonelada). O cartão vermelho parecia brilhar. Aliás, os cartões amarelos generosamente distribuídos durante o jogo, também pareciam brilhar.
O que o Gerente gritou do navio, para o Mariposa, foi “tô indo comprar na black Friday”!
Voltou de Belém com uma “chopeira”, chuteira nova e uma camisa do Remo.
Ah!, e no vestiário dos árbitros, havia um apito profissional e dois cartões novinhos em folha, em cima de um envelope volumoso, cujo conteúdo eu não faço a menor idéia do que havia! 

Luís Augusto Menna Barreto

2.12.2019.