terça-feira, 23 de novembro de 2021

bora cronicar - Nem Queira Saber

 


— Pergunta-me o que aconteceu na casa da Vanusa!

Tudo bem, eu usei ênclise, porque ficaria desagradável a primeira linha da crônica começar com um erro de colocação do pronome obliquo. Mas agora que eu já disse isso, vou colocar a frase como elas realmente falam:

— Me pergunta o que aconteceu na casa da Vanusa!

Sim, nesse momento, tu já farejaste a encrenca. 

Tu estás ali, na mesma poltrona em que estavas na crônica “Nem Te Conto”*, latinha de cerveja na mão, televisão ligada no jogo que não é do teu time, ou seja, estavas em completa paz, apenas tu e o cachorro em casa, e ela chega com a variação do “Nem Te Conto”, essa tal de “me pergunta o que aconteceu na casa da Vanusa”!

Quanto ela chega dizendo “Nem Te Conto”, ao menos tu tens um fio de esperança enquanto o cérebro processa todas as informações, porque tu sonhas por breves milésimos de segundo, que é verdade que ela “nem te contará” o que aconteceu. Tudo bem, é uma esperança muito breve; mas uma esperança breve é melhor que uma não esperança! 

Mas quando ela vem com “me pergunta o que aconteceu”, não sobra nada para tu te agarrares! Não há margem de esperança! O cérebro recebe e interpreta a frase, entendendo que, embora aparentemente retórica, a frase é, na verdade, peremptória, é uma ordem!

Tu sabes que acabas de perder a chance de ver o jogo, a chance de simplesmente não precisar torcer nem secar, a chance, enfim, de tomar uma cerveja como ela deve ser tomada: na ilusão que tu és o senhor absoluto do lar (ilusão que inevitavelmente é quebrada diante de uma frase como “me pergunta o que aconteceu na casa da Vanusa”). Aliás, essa Vanusa, tu sequer sabes quem é!

Mas não é só isso: tu tens que estar sempre preparado para reagir rápido. Se tu demoras degustando a decepção do jogo interrompido e da cerveja que não terá o mesmo gosto, lá vem:

— Va-iiiiiiiii (assim, separado e com o “i" esticado), pergunta logo o que aconteceu na casa da Vanusaaaaaa!

Claro, essa é a hipótese boa, no caso de ela estar num dia de excelente humor e com paciência; porque a variante dessa forma de “reperguntar" é um olhar mais zangado, já condenando a televisão ligada no jogo e chocando com os olhos a cerveja que estava na tua mão, a qual tu sequer terás a coragem de continuar tomando:

— Anda, pergunta logo o que aconteceu na casa da Vanusa!

Então, reconhecendo a derrota, com a inteligência do homem médio que sabe que há batalhas que já iniciam perdidas, e na vã esperança de seres recompensado nas lides amorosas após tu lavares toda a louça, tomares banho e esperares ela terminar de ver a novela, tu te rendes e obedeces, perguntando como ela havia delicadamente sugerido a ti:

— Ta bem (suspiro, pausa longa): o que aconteceu na casa da Vanusa?

Então ela solta essa:

— Ah!, nem queira saber!…

Pronto! Agora tu entendes que não perderás nenhum detalhe!


*Para ler "Nem Te Conto", CLIQUE AQUI


Luís Augusto Menna Barreto

2 de outubro de 2021

terça-feira, 16 de novembro de 2021

bora cronicar - Nem Te Conto

 


Ah, se fosse verdadeira a frase do título… Mas não é! Estejas preparado, pois, quando ouvi-la!

O centroavante acaba de receber o cruzamento, e por conta daquela estranha precisão digna de cientistas da NASA, ataca a bola com a testa, num movimento de proposital impacto, de modo a que, com a força aplicada, muda a trajetória da bola que, antes paralela ao gol, agora descreve um ângulo quase reto, perpendicular, infinitamente mais rápida que qualquer raciocínio. Somente um movimento reflexo, desses que o cérebro parece ter guardado para uso em ocasiões especiais, em que não temos tempo de recorrer a qualquer lógica, a qualquer elaboração mental, pode salvar o gol iminente!

Pois é neste momento exato que tu a ouves! Tu não a viste chegar, afinal, as mulheres tem esta arte de chegar propositadamente sorrateiras (outro dia falo sobre a diferença de homens e mulheres chegando em casa). Pois assim, mais do que a presença dela, a frase pronunciada pega-te de surpresa, tal qual o centroavante antecipando-se ao zagueiro.

Tu estavas ali, tranquilo, sentado no sofá da tua casa, televisão ligada no jogo que nem é do teu time e, por isso, até melhor de ver; nenhum pensamento na cabeça, quem sabe com aquela latinha de cerveja ao lado, e ela chega com a frase da qual tu não escaparás:

— Nem te conto o que aconteceu!

A partir desta frase, o teu cérebro, já meio entorpecido pela cerveja e pela deliciosa ausência de pensamentos, dispara bilhões de choques elétricos: primeiro, chegam vibrações do ar, as tais ondas sonoras, captadas por nossa audição… É um momento de torpor, ainda, em que o cérebro recebe os sons, como se fossem refugiados, ainda sem nomes, ainda sem destinos, ainda sem maiores informações, para então coloca-los em fila, interroga-los, organiza-los e destina-los. Os sons são transformados em palavras que entendemos e organizados de maneira que tenham alguma lógica. A seguir, ainda no tempo em que a bola viaja da testa do centroavante em direção ao gol e o cérebro do goleiro também está disparando mil informações para que o corpo reaja, tu recebes do teu cérebro a frase no sentido literal, que é a primeira interpretação, com as primeiras informações que o cérebro dispõe naqueles microssegundos: “Nem te conto…”.

Enquanto a bola viaja micrômetros e teu cérebro vai processando novas informações das ondas de luz da tua visão periférica, tu chegas e ensaiar um sorriso diante da literalidade da informação: “nem te conto…”.

Algo dentro de ti responde ao cérebro: “ótimo! Já está bom! Nem me conte! Cancele quaisquer outras informações! Eu fico apenas com o ‘nem te conto’”…

Mas é tarde! A bola avança mais, suspensa no ar, ainda sem se render à força da gravidade, e teu cérebro, esse desobediente, envia mais informações: a entonação da voz dela, sugerindo que não foi uma frase isolada; a aproximação em uma trajetória que o cérebro prevê como destino a frente da televisão, postando-se no caminho entre teus olhos e a tela. E o pior: a definitiva informação de que a frase encaixa-se nos exatos padrões de outras tantas pronunciadas rigorosamente iguais ao longo dos anos: “Nem te conto o que aconteceu!”.

Então, agora já com todas as informações sobre a frase, já com o contato visual irremediavelmente estabelecido, teu cérebro entrega a correta interpretação da frase:

“Nem te conto o que aconteceu”: significa que ela vai sim, contar-te algo que seguramente não será mais importante do que um jogo de futebol que não é do teu time, ela vai dar-te detalhes sobre fatos que tão logo tu os receba, serão involuntariamente deletados, embora tu saibas que num breve futuro, tu serás inescrupulosamente sabatinado sobre o que ela “nem te contaria”, sem qualquer chance de acertares uma das respostas. “Nem te conto o que aconteceu”, é o prelúdio de uma novela para a qual não queres o ingresso. “Nem te conto”, significa, enfim, que ela contará TUDO, absolutamente TUDO o que não queres saber sobre a última fofoca acerca das pessoas que nem sabes quem são, e não será pelo microssegundo da bola viajando ao gol! Será pelo tempo do jogo inteiro, com direito à prorrogação e pênaltis. E tu estarás como que na Tribuna de Honra da fofoca, onde todo o foco do olhar dela será em ti, sem que possas nem comemorar o gol, nem xingar o juiz.

Quanto à bola que o centroavante havia cabeceado em direção ao gol, e que tu ansiavas para ver o desfecho, saboreando tua cerveja?

— Nem te conto o que aconteceu…


Luís Augusto Menna Barreto

15.11.2021