Vaza, Volta e Aproveitas
— Volta!
— ãhnn… oi?
— Volta!
— Pra fila? Mas é minha vez!
— Vaza, volta pro mundo, mana!
A fila, até talvez um quilômetro antes do balcão em frente ao portão até que estava bem organizada… ela se manteve calma. Mas quanto mais perto do portão, mais a fila ficava dupla, tripla, até que lá na frente do balcão era uma aglomeração de pessoas perto do homem com calça rasgada e rabo de cavalo no cabelo, que a deixava nervosa!
— Oi?... é… dá pra baixar um pouco a música? Não tô entendendo direito! — Ela teve de gritar, a música estava mesmo muito alta, vinha do outro lado da imensa porta e, cada vez que era aberta para alguém entrar, o barulho de música, copos brindando e pessoas gritando como em uma festa, era insuportável.
— Vaza, mana, tô vendo aqui na ficha, tu não estás pronta.
— O quê?
— E vai dando licencinha, aí, que tem uma galera prontinha querendo entrar. Dá um passinho aí pro lado, querida!
Não era possível! Como assim? E toda a dedicação que tivera, missas aos domingos, confessava os pecados, não dizia palavrões… e tudo isso?… Sentiu um empurrão nas costas e alguém lhe dizendo:
— Ô desculpa aí, mas tu estás empatando a fila! A Galera tá empurrando! Bora pro lado, senão vai acabar levando farelo! Peraí… Camila?
— Tu me conheces?
— Caramba, tu também levaste farelo, mana? Bora fazer a fila andar!
— Peraí, eu te conheço?
— Claro, mana, mas tu não me curtias! Não lembra de mim? Arnaldo! Eu te convidei pra umas baladas, mas só levei carão, passei pra outra! Agora, bora entrar nesse céu, aí!
— Como assim? Como tu vais entrar aí? E… bebendo? Tu estás bebendo na fila do céu, Arnaldo?
— Morri com o copo na mão, mana! E o mais incrível: não fica vazio nunca! Bebo, derrubo, viro direto e tá sempre cheio! Muito doido isso!
— Jesus!
— Oi? Falaste comigo? Ah, ainda estás aí? Já falei pra vazar, mana, tu vais ter que voltar! Ei, você aí, com o copo na mão! Bora entrar! A moça de saia brilhando atrás, sai da fila e vem! A turma lá do fundo, abraçada e cantando “You Can Dance”, pode passar direto! Deixem os copos na entrada que lá dentro tem outros!
— Espera, espera, espera! Como assim? Aí não é… o céu?
— Isso… Peraí… Uau!, bora lá, isso que é animação! Vai chegando que a entrada é grátis, e pega com qualquer anjo o ticket infinito do balde de ceva! … Então, quié? Vamos agilizar, maninha, vais ter que voltar, não fica fazendo onda na porta, por favor!
— Mas… mas…
— Volta, mana. Vaza de volta pro mundo, porque tu tens muito que aprender!
— Mas eu morri!
— E não adiantou nada, pelo jeito!
— Oi…? Mas… eu fiz tudo certinho, segui todos os mandamentos…!
— Que mandamentos, mana, quê tu estas falando?
— Amar a Deus sobre todas as coisas, não tomar seu santo nome em vão…
— Ih.. pára, pára, pára… Tu não entendeste nada quando eu voltei?
— Como assim?
— Eu voltei, faz sei lá… uns 2000 anos?… pois é… Não ficou claro? Troquei toda essa parada aí. Era muita coisa, ninguém ia se salvar. O céu tava ficando deserto e o camarada lá embaixo tava botando gente pelo ladrão! Dei o papo: o lance agora era um só: o amor! Só isso! O resto, eu dei o mundo inteiro pra vocês se divertirem, porque o céu é festa, mana! Tinha uma vida inteira pra aprender!
— Mas… mas…
— Mas, que tem gente que não se ligou nisso! Em vez de amar, ficou com raiva dentro de si, cuidando o que os outros estavam fazendo, preocupando-se que fulano não faz isso, que fulana faz aquilo! O papo era amor, mana, amor! Essa galera da festa aí entendeu: iam às festas, bebiam, curtiam… nas festas, não julgavam ninguém! Queriam alguém pra amar, queriam diversão, e não empatavam a diversão de ninguém! Dei o mundo pra ser feliz! E teve gente gastando o tempo, o precioso tempo que eu dei, preocupado com o que o outro tava fazendo…?!
— Mas eu… eu…
— Tu bebes?
— Não…
— Tu ficas doida dançando? Celebrando que tá viva, sem pensar no amanhã?
— Claro que não…
— Então, mana, o que tu vais fazer aí dentro? Seguinte: Aceita. Vaza daqui, volta lá, vou dizer pro camarada da fila de retorno colocar-te de volta, tu vais nascer de novo, e vê se aprendes!
— Aprender? O quê?
— Beber, maninha. Dançar. Celebrar que tá viva! Aproveitar o presente que dei! Agora rapa daqui, que tem muita gente pra essa festa! Bora…
…
— Ei, Jesus… pegaste pesado com essa! Já posso abaixar o som? Dizer pro pessoal arrumar lá dentro?
— Pode, sim Pedro. Quem é o próximo? Tá com a ficha dele?
— Aqui: Odenílson. Conhecido como “Zé da Aparelhagem”, nunca pisou numa igreja, nunca deu uma esmola, nadinhas!
— Ok. Apronta o céu calmo, colocas um pessoal vestido como mendigos na fila, muito anjo, padre, freira, essa vibe! E silêncio, som apenas de harpas, todo mundo de branco. Vou ali trocar de roupa e colocar uma túnica branca pra receber esse e mandar voltar pra aprender sobre solidariedade…
— Na hora!
— … quando eles aprenderão que a virtude está no equilíbrio?
Luís Augusto Menna Barreto
19.4.2020